A Minha Sanzala

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11 de outubro de 2006

09 - Estórias no Sofá - Uma estória de Miserela - 3 de 3

A minha família se fechava cada vez mais no seu silêncio e as suas aparições iam rareando. Sem mulher, sem projecto de filho e agora sem família. A dela, bem, eu nunca a havia conhecido porque ela também não. Era, segundo se dizia órfã desde nascida.
Em casa, no serviço, no carro, eu matava as minhas saudades nos espelhos. A minha persistente dúvida nunca me era respondida. Eu só a via até às mamas.
Neste tempo todo passaram-se cinco dias que me valeram anos. Pelos que me foram roubados à vida.
A barba era desfeita de dois em dois dias. Os espelhos já não serviam para fazer a barba. Eram o meu mata saudades.
Gervásio vivia em dois mundos, no que me levava ao trabalho e o que eu vivia em frente aos espelhos.
Um dia, assim sem mais nem menos, chego do trabalho e encontro na sala, numa penumbra de janelas cerradas, a minha família. Põem o dedo na boca em sinal de silêncio. Toda a minha cara virou sinal de espanto. Ia desatar num pranto. Eu pensei que para estarem ali assim a tinham encontrado jazida num sítio qualquer. Mas eles não tinham cara fúnebre. Olhei-os com tal intensidade que lhes vi os interiores. Mais desarrumados que o meu. Não encontrei visível uma resposta. Estático ali estava eu despercebidamente fora do mundo real.
Minha mãe se levantou, D. Senhorinha, dona de porte atlético para os seus cinquenta, caminhou para mim e me levou arrastando pelo braço para o passeio da minha rua, como querendo desvendar-me um grande segredo que nem as paredes podessem ouvir. Fim de tarde outonal que estava a me ferver o sangue e a alma.
Sabes, meu filho, começou ela a querer segredar-me um segredo. Lhe olhava estupefacto porque ela nunca agira assim comigo. Era sempre pão pão queijo queijo. Aqui há coisa, soletrava eu interrompendo a fala dela.
Aqui na nossa terra, tentava ele continuar o diálogo comigo, há um costume ancestral. Para que uma grávida tenha uma boa hora, para que o seu rebento seja forte e saudável, assim como tu, a futura mãe tem de passar uma noite sobre a ponte de Miserela. De manhã, a primeira pessoa a passar e a encontrar será o padrinho ou a madrinha. Se a criança for rapaz chamar-se-á Gervásio, se for rapariga chamar-se-à Senhorinha. Nós somos assim ligados a estas tradições. Tu, estudaste fora, viveste muitos anos fora daqui estás muito mudado. Modernizaste-te.
Mas que treta é essa agora aqui? perguntei eu do alto da minha ira. Para quê esta lenga lenga toda a esta hora.
Sabes, continuou ela no seu ritmo de fala, com as novas vias já ninguém passa em Miserela como antigamente. A tua mulher sempre esteve em nossa casa estes dias tendo só regressado hoje porque só hoje, dia de caça, passou gente por lá.
Mas isto deve ser uma brincadeira. Só pode. Gritava eu cada vez mais alto. Meu pai apareceu, deu-me um abraço como que a querer abafar-me a raiva. Enraivecido afastei-o.
Sabíamos que és contra estas coisas por isso agimos assim. Com a tua mãe, felizmente foi só uma noite. Eram outros tempos.
Severina, a minha mulher apareceu-me no passeio. Envelhecida, cansada, inquestionavelmente grávida ainda. Se agarra-me ao pescoço num abraço e nesse instante desata a chover camuflando as lágrimas que brotávamos.
Mundo louco este, babuciei.
Posted by Picasa

3 comentários:

  1. Viva Carlos:

    Vim aqui ler a tua ultima proposta.
    Gostei.
    Qualquer dia dá para fazeres um livro :-)

    Um abraço,

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  2. OLÁ

    No ultimo post coloquei um comment,por acaso é o 3º - para «tentar» explicar o meu problema de saúde, caso queiras ler, vai até lá.

    HOUVE COMENTÁRIOS DE ALGUNS AMIGOS/AS QUE, PENSAM QUE TENHO PROBLEMA DE ADAPTAÇÃO À VIDA PROFISSIONAL, MAS NÃO SABEM O QUE SE PASSA COMIGO.

    Mesmo depois desta explicação, ainda há quem diga:coisa e tal, passa ao lado.
    Será que escrevo em japonês?
    ao menos, TU entendes-me?
    Diz de tua justiça.
    Abraços.

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  3. JAMostardinha:
    essa do livro nem me passa pela cabeça. Satisfaz-me o ego saber que me lêem aqui. Um grande abraço.

    Kalinga: tentarei dizer-te o que penso.

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