A Minha Sanzala

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7 de novembro de 2007

27 - Estórias no Sofá – Estória do avô de Catete

Caminho longe do zulmarinho, mas suficientemente perto para lhe ouvir o marulhar e lhe adivinhar a maresia.
Pé depois de pé, lá vou caminhando com o pensamento a fervilhar. Eu sei que não há nada mais interessante que a conversa de dois seres que se amam e que permanecem calados. Eu, caladamente caminho ouvindo-me estórias.
Ela se aproximou dele trazendo a angústia desenhada na cara. Ele olhou-a sem esforço de movimentar a cabeça, apenas os olhos se dirigiram para ela e sentiu vontade de chorar. Ela esboçava lágrimas naqueles olhos castanhos claros, os mesmos olhos que lhe haviam dado a volta à cabeça faz tempos idos.
Ela lhe abraçou e ao ouvido lhe falou:
- queres ouvir uma estória que me contou o meu avô?
- qual avô?
- o velho de Catete.
- ok. Conta-me!

Havia uma sanzala pequena que era atravessada por um rio que não era fundo. Os habitantes da sanzala tinham necessidade de atravessar todos os dias esse rio, mas te lembro que nenhum deles gostava de molhar os pés, pelo que caminhavam pulando de pedra em pedra como se elas fossem uma intermitente ponte entre as suas margens.
Quando chegava a época das chuvas, tudo se enublava e o rio crescia de águas turvas revoltosas, pelo que não se via o caminho das pedras pelo que não podia ser usado.
Era nestas ocasiões que as pessoas que precisavam de atravessar o rio se socorriam de um homem muito alto que lhes punha nos ombros e os levava de margem a margem, tantas e quantas vezes fosse necessário.
Assim se foram passando os anos até que um dia, em plena época de chuva o gigante resolve mudar-se e não mais querer regressar a esta sanzala. A sanzala ficou triste porque as pessoas tinham de ficar do seu lado da sanzala. A única coisa que lhes ocorreu foi sentar-se choramingando e esperar semanas inteiras com a esperança que o gigante voltasse e devolvesse a comodidade nas suas vidas.
Conforme os dias iam passando as suas lavras se iam perdendo, as colheitas não eram vendidas, os panos se iam rasgando, a fome aparecia no ar.
Todos concluíram que não havia mais razão para viver ali. A mudança de sanzala se tornou tema obrigatório em todas as conversas.
Uma manhã todos se surpreenderam ao ver chegar um forasteiro. Olhando de alto a baixo verificaram que a sua roupa estava seca.
- como cruzaste o rio? perguntou o mais velho.
- daquele lado aprendemos a caminhar sobre a água pelo que não
necessitamos do gigante para chegar até onde queremos. Basta molharmo-nos de vez em quando e se for necessário caminhar sobre as águas. As coisas nem sempre são fáceis, mas sempre podemos ser o que queremos. Quando se fecham as portas logo se abre uma janela que por certo é uma grande janela.
- heim?
- ainda que a gente não aprenda a caminhar sobre as águas sempre podemos nos molhar, nadar ou boiar até passar a tormenta. Não dá para esquecer que a chuva um dia vai parar.

Se beijaram, secaram as lágrimas e eu continuei o caminho tentando adivinhar a cor do zulmarinho.
Sanzalando

4 comentários:

  1. São estórias do actual...algures em Portugal é assim, infelizmente não são só do tempo dos nossos avós. Gostei...continuas inspirado e ainda bem
    Beijos IR

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  2. Essa mão que escreve largamente, dá às letras um correr de rio sempre em busca da sua foz e do zulmarinho.
    Gostei, mermão
    Bjs

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  3. O preço da autonomia, que afinal não é assim tão elevado.
    SJB

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