A Minha Sanzala

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22 de novembro de 2017

68 - Estórias no sofá - conversa fiada

Os anos vão passando e eu deixo um bocado de mim em cada dia. Nos dias de sol, sorrio e gargalho, nos outros também porém aqui e ali posso estar carrancudo de aspecto ou circunspecto do ar que se me dá. Sento-me num café e converso com quem chega, mesmo não sabendo se querem conversar comigo. Educadamente me apresento primeiro, é claro. Os meus pais lá no céu não me perdoaram outro comportamento e eu aqui na terra tenho por hábito de não falar com desconhecidos e para que isso não aconteça me apresento com nome completo, Joaquim Manuel Florimundo, falador nato e ouvidor ao vosso serviço, natural da terra mas quase sempre vivendo no mundo da lua. Há quem me olhe assim num misto de chega para lá e outros que me retribuem com um sorriso o nome. 
Começo sempre a minha conversa monóloga com coisas lindas, agradáveis, que até nos olhos se tornan brilhantemente coloridas. Mesmo que o meu coração esteja amarfanhado por qualquer desilusão inventada no fervilhar dos meus dias serenos, mesmo que eu esteja cheio do vazio gigante da minha vida, não me falta amor próprio nem amor alheio, para eu me esconder em falas tristes de chorar por mais. Pois além do mais, amor é não desistir e se desistir vai ter que pedir perdão, por isso haja amor pois então.
Mas me cruzo diariamente com gente que só falta alguém chegar perto e dizer: você morreu. Porque eles morreram mas não sabem. A cara deles é fúnebre, defunta mesmo. Cara de morto vivo e ainda por cima ignorante. Aí eu chego, falo de vazios menos vazios que eles mesmo. Não lhes vou contrariar porque ninguém gosta. Aos poucos lhes digo o cada dia de mim que fica para trás e eu não sei se tenho tempo para a frente para fazer o que ainda me falta fazer, lhes peço ajuda. Aqui começo a ter resposta. Florimundo está a conseguir chegar lá. Já minha mãe, D. Ernestina, me dizia que eu tinha era lábia para vender carro avariado a mecânico. Mas nunca vendi carro porque nunca tive nenhum. Lhes conto o bocado de mim que fui deixando no lastro do passado e o resto que ainda não se foi porque lhe preciso para viver o meu futuro. Eu lá vou dizendo onde eu gostaria de ir, desde as Maurícias, India, ou ao café da esquina, depende do ar e dos horizontes imaginários.
Os corações se começam a abrir, as palavras vão sendo devolvidas, pouco a pouco a conversa monólogo passa a diáloga. Ninguém sabe onde ir, o que fazer, porque todo o seu resto foi perdido no passado e o presente é sempre escuro, mais escuro a cada dia. A conversa vai acendendo uma luz e eu Florimundo dou-me por feliz por ter ali um interruptor chamado lata descarada para conversar ao deus dará e se ele dá que dê.
Tem tanta gente que se odeia e não acredita nas palavras bonitas. Deviam ter conhecido a minha mãe. D. Ernestina. Para ela o amor era soberano. Quem amava ia chegar mais perto do deus porque o coração dispara luz brilhante, me dizia ela constantemente. Luz e amor se misturam como se estivessem para fazer um bolo. Acho ela morreu a rir. Os olhos dela eram assim.
Eu, Joaquim Manuel Florimundo, me confesso porque tenho vontade de fechar os olhos, recordar as conversas fiadas e por desfiar, rever os buracos negros e a falta de confiança, a dor, a sombra, a agressão e a morte que circula pelos passeios destes dias. Mas, acordado, respiro fundo, procuro as cores vivas que vivi, os mergulhos que dei nas profundezas da angustia e a alegria de ter vindo à superfície respirar.
Mas na minha conversa fiada aprendi que cada dia de viver é melhor do que cada dia se já tivesse morrido e não estaria aqui a contar.
Aos poucos vou ensinado a respirar, não o ar que isso é nato, mas cada segundo, engolir os sabores agradáveis do bem viver. Ah, eu sofro mais que qualquer outro e o outro diz que sofre sempre mais e por aí adiante, por isso, no cada dia que deixo qualquer coisa sorrio.
Joaquim Manuel Florimundo aprendi a viver com a vida e fui na conversa com ela.



Sanzalando

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