A Minha Sanzala

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27 de março de 2024

saudade

Me perguntam se eu sofro de saudade. Eu não sofro de saudade, eu sinto saudade dos momentos em que estive, das vidas que vivi, das correrias que corri. Eu sinto, não sofro. 
É verdade que tem momentos em que me invade a tristeza porque tenho que apanhar os fragmentos quando algo parte o meu coração ou fere o meu cérebro, tendo que os rejuntar, curar e compor as minhas responsabilidades. Mas isso não estraga as minhas saudades porque nesse momento eu aprendi qualquer coisa e quando se aprende não se magoa, revive-se. Na verdade eu tenho muitos momentos de reviver e se tenho vontade de os fazer eu faço sem sofrer, apenasmente revivo para trazer ao presente algo do meu passado. 
Não me importa o passado de outrem desde que não seja roubado do meu. Eu gosto dele e sinto saudade, porque sem ele eu hoje não seria eu, mas talvez seria uma manta de retalhos de passados alheios e aí se calhar eu ia sofrer saudade de não ter o meu passado.

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26 de março de 2024

viagem de sonhos e outras formas

Deixo-me embalar em sonhos e viajar por fantasias, visitando terras, nadando em rios ou simplesmente a ver o nascer do sol. Deixo-me ir ao sabor da imaginação, sem querer que reparem em mim, que percam tempo comigo ou ouçam as minhas mentais canções. Sou solidão na vagabundagem dos meus sonhos, na mendicidade de afectos, na alegria dos olhares encerrados, porque gosto de viajar sem me preocupar com malas, sacos e sacolas, corridas e cansaços, dores e sonos. Sou a minha própria existência, uma retrato da minha presença. 
A minha solidão e a minha saudade não doem porque voluntariamente me transformo num vazio existencial de imaginação interterritorial.


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25 de março de 2024

viver a vida

Seguindo um conselho dado nem me lembro por quem:
«Um Conselho para a vida:
Vive-a»
E assim tenho feito. Pé ante pé, dia após dia, vivendo cada um, sem estar à espera que amanhã o sol nasça. Eu sei que há pessoas que são o meu lugar favorito e com elas vou compartilhando momentos, instantes, sem pensar que o longe é distante ou o junto é encostado, sem ter formas de medir distâncias ou carinhos. Cada dia vou sendo eu nesses instantes de modo a que juntando instante a instante dê uma qualquer unidade de tempo. Imagina só que um dos lugares favoritos gosta de andar à chuva, que é que eu posso fazer se não me molhar? Molho-me e cada instante é sorrir na festa da vida porque as coisas maravilhosas têm tendência a se multiplicar. Está na nossa positiva forma de ver a coisa.
Tem coisa que desconsigo fazer: é não expressar o que sinto. É que sentimento não tem palavra nem consegue ter telepatia.
Eu não quero ter exaustão de vida na minha maneira de ser e estar.

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22 de março de 2024

agradeço ao tempo o tempo que vivi

Faz tanto tempo e eu ainda sinto tanta falta. Estás quase a fazer anos, deves estar grisalha, uma ou outra ruga. Deves manter-te esguia, costas direitas, cara fechada para não mostrares o que te vai na alma. Hoje acordei e senti falta de te olhar. Fui à varanda mas tu não estavas na tua varanda. Já não temos as nossas varadas. Já não há varandas porque não temos tempo de estar ali a saborear o amanhecer ou o pôr-do-sol. 
Na verdade tu não envelheceste nada. Mantenho-te na minha memória com os teus vinte anos pois nunca mais te vi, nem uma foto tua apareceu no meu horizonte. Por artes mágicas, neste mundo que dizer ser pequeno nunca mais nos cruzámos e eu não sei envelhecer memórias por isso tenho-te na minha cabeça tal qual a última vez te vi.
Tudo isto a propósito de que eu tenho saudades de tudo o que me marcou na vida e, embora estes anos todos tenham passado, eu não posso esquecer que foste tu que me fez ser mais do que aquilo que parecia ser o meu destino.


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21 de março de 2024

parabéns filhote

Me sento a ver o mar. Esse zulmarinho que me encanta e me leva a voar pela imaginação numa interminável viagem à volta de mim. Dou comigo de caras a me procurar mentiras quadradas e triangulações de sonhos sonhados e fico feliz porque afinal desencontro-me. Rebusco-me ratoeiras passadas para desinfestar e desencontro-me com elas. Vasculho entulhos subterrados nas profundezas da memória à procura de desencantos e outros cantos arredondados e canso-me para nada.
Sou feliz porque faz anos hoje que fui pai pela segunda vez. Como posso eu encontrar migalhas, farrapos, desperdícios e gastos pneus da vida se os meus olhos brilham alegres.
Parabéns, Filhote


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Ler, Comunicar e Arte Médica no Agora



Arrancam no próximo dia 26 de março as Tertúlias «Saud”Arte», uma iniciativa desenvolvida pelo médico Juan Rachadell e pela psicóloga Sónia Silva, integrada no Projeto Humanidades Médicas. A iniciativa tem lugar no auditório da Unidade Hospitalar de Portimão pelas 19h00.

A primeira tertúlia, sobre o tema «Ler, Comunicar e a Arte Médica no agora», vai ser proferida pelo médico João Carlos Carranca, que para além da sua carreira médica na área cirúrgica é ainda escritor, tendo simultaneamente passado pela imprensa escrita e pela radio.

O Projeto Humanidades Médicas “pretende utilizar técnicas de Medicina Narrativa para melhorar a experiência partilhada entre os prestadores de cuidados de saúde e os utentes na ULS Algarve com a intenção de dinamizar atividades em áreas que juntam a Ciência e Arte da Medicina. A Ciência não inclui apenas a prática médica, mas toda aquela equipa, multidisciplinar e interdisciplinar, que com o seu correto funcionamento zela pelo doente e ajuda a recuperar o equilíbrio num momento de fragilidade e, mais importante ainda, o faz manter a saúde. A Arte a que fazemos referência é aquela beleza que conseguimos perceber através dos nossos sentidos na Literatura, Pintura, Cinema, Arquitetura, Artes Performativas e outras disciplinas, que nos emociona e que muda a nossa visão do mundo”.

O Projeto Humanidades Médicas, fundado em 2022 por uma equipa multidisciplinar e interdisciplinar, tem como objetivo fomentar as competências da empatia e entreajuda nas diferentes classes profissionais do hospital, entre si e com a população da região, tendo como objetivo final de melhorar a experiência dos cuidados de saúde para trabalhadores e utentes da Unidade Local de Saúde (ULS), mediante estratégias humanizadoras.

Um dos meios para atingir estes objetivos serão as Tertúlias “Saud”Arte” no Auditório do Hospital de Portimão, sempre na última terça-feira de cada mês, das 19:00 as 20:00 h, com temas enquadrados na intersecção entre a Arte e a Ciência. Estas palestras são de acesso gratuito, abertas aos profissionais da ULS Algarve, bem como à comunidade e população em geral, sendo que as mesmas serão também transmitidas online.






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19 de março de 2024

Dia do Pai

Acordei e recebi o desejo de feliz dia de pai. Saboreei-o como se fosse o primeiro dia de ser pai. Eu não vou dizer que a vida é um conto de fadas e que eu sou feliz todos os dias e que pai é para a vida toda cheia de felicidade. Também não vou dizer que eu sou a pai careta, avô birrento, mão de ferro e caricia de arame farpado. Eu não sou o príncipe que salva o mundo nem o carrasco que o prende. Sou eu que nem o eu de sempre, faz muitos anos que até tenho de fazer contas para não me esquecer. Cresci cada dia desde que sou pai, amadureci cada dia que passei a pensar no meu pai, arrumei-me de aprumo cada vez que me lembro que sou o dito filho de dito. 
Quando eu era pequenino eu pensava tu eras um herói que não teve tempo de se mostrar como tal. Hoje eu ainda não cheguei lá, ainda não consegui atingir o patamar que te coloquei. Achas, meu pai, que um dia eu vou conseguir chegar lá sem ter livro de instruções?


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18 de março de 2024

os hexágonos da marginal

Me sentei na marginal. Os hexágonos estão no seu lugar. Como é curioso que depois de tantos anos de mar em fúria a lhes bater eles não tenham fugido dali e continuem a sua função de aguentar esse mar? Devem ser assim que nem eu: gostam de mar. 
Acho que quando lhes fizeram ficar ali estáticos a levar com os dias maus desse mar tantas vezes calmo e sereno , lhes impuseram uma regra que mesmo chegado ao limite eles tinham de ali ficar. Eles, perfeito, todo este tempo ali se têm aguentado. Eles me ensinaram a ser persistente. Os hexágonos da minha marginal, onde um dia, apenas um dia, lhe fui lá pescar, me ensinaram que a persistência é a melhor das resistências. Eles resistem e eu lhes sigo. 
Tem duas saídas de esgoto, lhes imagino era futuro da época que deixou da funcionar faz mais que muitos anos. Mas até nós temos esgoto por onde deitamos no ar os pensamentos fedorentos da nossa imaginação. Não tem bela sem senão, dizia a minha avó que deve ter aprendido com a avó dela.
Mas os hexágonos estão lá e eu aqui a nos segurar o mar ou ao mar.


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17 de março de 2024

são tuas as minhas palavras

Vou por um aí degustando palavras como quem saboreia o vento num dia de calor. Com elas percorro desertos, desenho silêncios e rabisco coisas de pensar. Vou por ai pregando, com elas, aos quatros cantos dum quadrado as sabedorias que acumulei, as crenças que acreditei e as fés que tive. 
Soubesse eu mais palavras das que já gastei, em pilha de folhas que rasurei com um lápis mal afiado, e hoje eu era um palavreado de estilo e não um estilo sem palavras.
Vou por aí, ao teu lado a lado nenhum, com a minhas palavras que me dizes serem ditas por ti, braço dado, cantando e sorrindo, as palavras que soletrei para uma sebenta de capa vermelha que um dia te darei.
Sorriste. Sorri. Afinal de contas as minhas palavras são tuas, sempre!

Sanzalando


24-02-2016

16 de março de 2024

palavras

Deito-me na areia da praia de mil cores e deixo-me ir atrás de cada pensamento ou sonho, de cada momento ou ilusão. Vou de alma e sem corpo. Há coisas fáceis e outras difíceis de perseguir. Eu vou, porque só indo é que faz sentido. Podia ficar aqui deitado zerado mas não era a mesma coisa, não me deixo ficar no cansaço da mente. Eu vou atrás. Dum pensamento faço outro e por aí fora. Encadeando sonhos numa renda me faço vida, mesmo aqui deitado na praia das mil cores. É, amo-me sem espinhas, como dizia quando era criança e conseguia fazer algum feito notável: sem espinhas.


Sanzalando



15 de março de 2024

caminhando sobre palavras

Vamos caminhando nos nossos passos compassados, sincronia da palavra e ouvidos, interrompidos aqui e ali pelo marulhar mais forte de uma onda se atirando num suicídio contra a areia de mil cores. O zulmarinho nos serve de pano de fundo, fonte de inspiração, elo de ligação, corrente de afastamento, aconchego de mimos.
Lhe olho e os meus olhos enxergam a realidade e descubro que as montanhas de sal se desfazem com o vento ou com a água. Convenço-me que as palavras são como setas que uma vez disparadas não voltam ao ponto de partida. Lhe sinto nas suas lágrimas salpicadas e empurradas pela brisa que a luz me atormenta e que os risos estejam abafados.
Caminhamos no teu passo que a passagem se vai encurtando e chego quando chegar ao destino não predestinado Somente caminho no teu caminho para que tu possas ouvir as minhas palavras, os meus silêncios, os meus gritos, o meu choro, minhas gargalhadas. Tu és a razão de eu estar onde estou, mesmo que eu queira estar onde estou a pensar em estar onde não estou
Caminho deixando pegadas na areia fofa desta praia, final de zulmarinho que começa para lá da linha recta que é curva.
Caminho nas palavras porque nada é certo na certeza de ter sempre razão.

Sanzalando
01-05-2007



14 de março de 2024

Crónica 2 do K'arranca às quartas


Sanzalando

O Programa K'arranca às Quartas nº 8 - 13 Março de 2024

Programa de Rádio com palavras, livros e música - livro de hoje - O livro do Desassossego de Fernando Pessoa. 

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Crónica 2 do Programa K'arranca às Quartas

Programa de Rádio com palavras, livros e música  - Crónica de 13 de Março de 2024. 

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tem horas e momentos na vida

Quando realmente se cansa, quando honestamente chega o seu limite, quando já está seco e vazio, sem nada para dar e sem uma solução aparente que justifique tudo, é quando você aceita que já deveria ter saído há muito tempo?
Quando aquelas carícias que um dia tocaram na sua alma não te fazem mais sentir absolutamente nada além de uma certa rejeição, quando aqueles beijos pelos quais você morreu começam a tomar gosto de dor e quando naqueles olhos em que você se perdeu já não têm mais o brilho que via você começa a encontrar o mundo real.
A realidade é quando você aceita que não deveria estar ali. Nenhum conselho, nenhum exemplo ou testemunho pode fazer aceitar o que não quer.
É hora de realmente aceitar que deve partir, que deve deixar ir e começar a olhar ao seu redor com os olhos da verdade e não com os do amor que sua ilusão tanto protegeu.
Doloroso e devastador é quando chega o momento em que o seu próprio coração aceita e explica para si mesmo que chegou a hora de partir. 
A mente entende melhor, mais rápido, mas o coração demora, porque tem muitas cicatrizes  e não quer aceitar o ponto de ir embora, que não há mais nada que possa ser feito, que não tem mais forças para aguentar. ou justificar. 
É uma triste evolução da vida quando se está a acabar o inverno. É hora de mudar a página do calendário e ver se há pássaros a voar, borboletas no jardim e sorrir se ainda o souber fazer.



Sanzalando

13 de março de 2024

uma palavra

Eu estou certo que se disser palavras ao vento elas vão e se desfazem em letras e estas em pontos até ao micron ilegível do pensamento. E aí tenho um pensamento perdido, deitado fora ou simplesmente desistido. Se eu escrever essas palavras com a famosa tinta permanente da caneta me oferecida pelo minha família no dia em que me formei, essa palavra fica gravada para sempre num retalho de papel que se irá desfazer com a humidade depois de amarelar com o tempo e o significado ficou perdido na intencionalidade da escrita porque nenhum dia é igual a outro, nenhum momento é o mesmo momento de outro. Se eu te disser ao ouvido a palavra tu ouvirás e sentirás o sentimento que a palavra tem. Esta palavra é bem diferente das outras palavras todas que eu disse antes, embora eu só tenha uma palavra.


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12 de março de 2024

digo eu

Sigo no carreiro das palavras, silêncio nos pensamentos, ouvindo o mar como música de fundo. Não é o meu mar mas é a maresia deste mar que me liga ao mar de lá. É o silêncio que me leva aos sons de lá. É a palavra que lá que me dá a força para cá. É uma energia que chega por ondas magnéticas e outras estéticas porém às vezes de formas patéticas.
Cruzo-me com alguém que me diz:
- Você faz-me pensar...
Sorri, como sempre sorrio quando as palavras não saem, brilhei os olhos como que espantado, agradecido e massajado no ego.
Fiz cara de desentendido, tal como envergonhado
- Escreve cada coisa...
Mais surpresa para os meus ombros.
Faz horas que não escrevo porque ontem me calaram de espanto e para tanto me mostraram que eu devia ser culto porque gente culta não se escraviza. Olha-se e é-se sempre livre, até da ignorância. Gente culta tem vantagens.
Carrego palavras que digo a ti pelos cantos dum livro de poesia, prosa de encantos nos silêncios respiratórios que me fazem, como direi, pausas pensativas.
É verdade. A felicidade não se compra. Vive-se! Digo eu a olhar para uns gráficos negros que me turva o pensamento, mas acredito que não haja machado que corte a sua raiz.


Sanzalando

11 de março de 2024

Meus retalhos 28

Iniciada a cirurgia, era até uma cirurgia de ambulatório, assim com anestesia local. Coisa pequena de acabar e o doente ir embora. Estava a correr tudo bem, as mãos trabalhavam mas ambas as bocas não se calavam. Falava-se de futebol e deste para a política como se ambos tivessem semelhanças. Se calhar têm, eu é que nunca pensei nisso. Mas corte daqui, puxa dali, laqueia-se acolá e assim num não acredito no que vejo:
- Porra. gritei eu bem alto
- Que foi Dr.?
- Você está bem? Está tudo Tranquilo por aí?
- Aqui sinto umas dores, de você a cortar mas de resto tudo normal e a conversa até distrai.
Se o doente pudesse ver-me, através da barreira criada por panos esterilizados veria a minha palidez. Eu além de pálido devia estar transparente para além de mil vezes suado.
É que olhei para a mesa e tinha as duas seringas de anestesia completamente cheias e a gritarem-me que ainda não tinham sido utilizadas.
Eu só estava a fazer uma herniorrafia inguinal e sem anestesia. Claro que fui rapidamente corrigir o meu erro e tudo correu bem, até que o doente me disse:
- Depois do seu porra deixou de me doer.


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9 de março de 2024

Canção de uma noite de insónia

Faz conta eu sou Minas, Baía ou Bento, família de músicos e subi no palco e cantei

Eu era imagens e palavras não delineadas.
As noites sem dormir acumuladas.
Memória de desejo não realizado
Eu era amor não entregue,
o não correspondido
O tempo expirou e o tempo não foi utilizado.

Eu era a efemeridade de um suspiro,
eu era o sentimento reprimido.
Vivi no exílio do amor, do tempo e da paixão.
Mas minha vida abriu um precedente,
Isso aconteceu de repente.
Todos os medos e vazios que eu possuía,
Eles fugiram aterrorizados,
vendo que o amor me correspondia.


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8 de março de 2024

meus retalhos 27

Pouco passava das 23 horas quando sou chamado ao Serviço de Urgência. 
- Dr. chamámos como chefe de Equipe porque temos aqui um caso demasiado invulgar e que eu não sei  como resolver.
- Dr., diga lá o caso para ver se eu o posso ajudar nalguma coisa.
- O Senhor X está em quase coma com uma sepsis e exige antes de morrer casar com a companheira dos últimos anos. Como é que eu posso resolver isto agora. Eu não sei se ele chega a amanhã...
Silêncio enquanto meti a minha cara de pensador e rebusquei alguma coisa parecida no meu passado. Nada. Zero.
- E mais Dr. está ali fora a companheira dele, bem como familiares directos dele.
Mais pensativo fiquei. 
- Deem-me dois segundos que eu vou tentar ler alguma coisa. Entretanto liguei para o Director Clínico que disse que não sabia como resolver a situação. Liguei para um advogado amigo que me aconselhou procurar a Conservadora do Registo Civil da região e em último caso tinha de ser eu a fazer a cerimónia e no dia seguinte oficializar o registo na Conservatória. Lá me ditou uma minuta que eu imprimi no computador do meu gabinete e lá desci. Eu ia celebrar um casamento... 
Desci, fui à Unidade de Intermédios onde estava o paciente, já sem capacidade para responder às minhas questões para lá de um sim ou não. Chamei todos, companheira e familiares, li o documento que havia imprimido e no momento de assinar chegou a Conservadora que me substituiu na cerimónia e utilizou o meu impresso que eu também assinei como testemunha.


(felizamnete depois de longo período o paciente teve alta, casado oficialmente)


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Dia da Mulher


São 8 de um Março e apesar de no lado sul estar céu azul e um abrasador calor, do lado norte parece vem por aí trovoada e um frio gélido. Aqui brilha o sol, ainda. Faz frio, ainda. Mas a luz está optima para uma fotografia. Pena é que não tenho aqui à mão uma paisagem como a dos postais ilustrados, sem moscas e mosquitos e sem o perfume do lixo, o sabor de fumo e pó. As estão ruas desertas por uma doença misteriosa que vai derrubando árvore a árvore num silencio cor de cimento. É por essas e por outras que junto o meu silêncio, atrás da minha janela a ver o mundo mundar num novo caminho que ninguém ainda sabe qual é. 
O dia continua a ter 24 horas, ainda. A noite ainda tem a lua, quando as nuvens deixam-me vê-la a mudar os seus quartos no ciclo que aprendi na escola, com a frase que ela aqui é mentirosa. Faz conta o novo mundo vai ter tudo direitinho, não vai ter polícias e ladrões, assaltos e assaltantes, homens e mulheres, grandes e pequenos. Faz conta o mundo vai ser diferente, mais igual para todos. Faz conta o lixo vai ser todinho reciclado, até aquele que ainda não foi feito mas apenas pensado por qualquer mente que não compreende que o mundo se mudou para outro lugar de paraíso. Faz de conta que não é preciso haver o dia disto e daquilo porque a perfeição se chamou normalidade. 
Hoje, canta-se o Hino à Mulher, compram-se rosas que um qualquer imigrante ilegal e maltratado regou, reforçam-se as mentiras ditas nas calorosas noites escaldantes, esquecem-se os pensamentos e actos violentos de cada dia. 
Hoje é o dia em que a igualdade impera e a véspera do que se esquece. Hoje é véspera do dia em que mundo se normaliza no anormal quotidiano, em que o mundo desigual se desiguala cada vez mais e em que há Mulheres que não têm nenhum Direito a não ser o de sofrer por o serem.


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7 de março de 2024

Crónica de 06 Março de 2024


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amor dá que pensar

Sigo veloz, à velocidade do pensamento. Salto de um para outro, sem rede ou qualquer protecção que me defenda dum errado pensamento. Sigo veloz porque tenho muito para pensar e não quero deixar nada ao acaso, nada desfeito numa falha mental. Não me perco quando me machuco, quando erro ou falho por não ter pensado. Chateio-me sim por não ter pensado. Me perco quando cometo o erro ou falha duas vezes. Me machuco quando insisto na segunda chance da mesma forma que na primeira. 
Não me perco por amar, nem deixo de morrer por amor. Amo por pensar porque só amar não é bom. Amor dá que pensar e eu tenho ainda tanto para ambos.


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Programa K'arranca às Quartas 06-03-2024 - nº 7

Programa de Rádio com palavras, livros e música o livro de hoje - Confissão de Lúcio de Mário Sá Carneiro. 

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6 de março de 2024

Confissão de Lúcio - Obra de Mário Sá Carneiro


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as minhas saudades

Mermão, vamos fazer mais como se estou numa de saudade porque não estou a poder ir nas Festas do Mar? É que já não sou a criança que tinha férias porque estava calor, porque podia fugar nas aulas para ir ver as garinas e dar mergulhos na praia. Porque a vida deu voltas que eu queria e as que eu não queria mas gostei e então estou que nem posso ir dar uma de picadeiro em fim de dia, comer um cachorro quente ou beber um fino da cuca porque estou longe num querer estar.
Sabes, mermão, vais dizer que lá está ele sofrendo de saudades. Mas não é nem isso. Eram outros tempos e eu tinha outros olhares, tinha outros quereres, outras opções. Mermão, estas saudades não são de morrer, são mesmo de viver intensamente. Te explico: 
- Viver sem memória é assim mais ou menos como estar morto, mover-me entre fantasmas à deriva num mar de imagens, numa calema de sonhos desenhados numa memória de fantasia.
Eu estou bem vivo e com gosto de hoje poder ter saudades das Festas do Mar.


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5 de março de 2024

meus retalhos 26

São 9 horas da manhã e é segunda feira. D. Genoveva vem à consulta. É a sua primeira consulta de cirurgia e comigo. D. Genoveva foi enviada pelo médico de família por varizes dos membros inferiores. 
- Menina, vamos lá ver essas pernocas. - dirijo-me doce e suavemente enquanto sorrio para a minha nova doente. 
- Dr. tenho aqui um exame que o meu médico de família me mandou fazer. Doppler, acho eu.
- Menina, quero ver primeiro essas pernocas e depois então vejo o exame.
As pernas oleosos de quem acabou de pôr creme deixam transparecer algumas varicosidades que bem vistas as coisas eu diria noutro dia que era para não fazer nada a não ser gastar as pernas em caminhadas. Mas... era noutro dia e neste dia eu não podia fazer isso. D. Genoveva fazia questão de se queixar das pernas e eu não tinha coragem para a desgostar dizendo que não ia fazer nada.
- D. Genoveva, minha menina, tem aqui umas duas ou três que merecem ser esclerosadas. Quer?
- Claro, Dr. Detesto ver essas veias assim parecem umas estradas nas minhas pernas.
- Ok. Menina. Então deite-se ali na marquesa e começamos já hoje.
E num estante ali estava ela deitada pronta a ser picada. Devo dizer agora porque me esqueci antes que a doente só tem 94 anos e tem cuidado com as suas pernas.

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4 de março de 2024

esqueci o tempo

Me deixo vaguear por pensamentos, palavras, conversas ou só silêncios. Quero ver a cor do tempo, quero ver o tempo que sobra para eu reler todas as mensagens que escrevi e nunca ninguém vai ter tempo para ler. Reinventei mil vezes na minha cabeça todas as cenas do filme da minha vida, todos os momentos até os apagados. Recantei todas as músicas, todas as canções que ouvimos nos bancos do jardim, na varanda de casa, no sofá da sala, ou nos passeios de carro de fim da tarde. Quero voltar sempre àquele momento em que não nos despedimos mas nunca mais nos cruzámos. 
Vais pensar eu louquei-me, deliro-me ou simplesmente não tenho o que fazer.
Nada. Nenhuma destas parcelas é verdadeira. Só quero saber o que é que aconteceu no tempo, as palavras que eu não devia ter dito ou devia ter ouvido, o gesto que fiz ou o silêncio que guardei. Estou no branco neutro da minha desculpa, no cinzento claro da ignorância. 
Estou vazio desse tempo deste o tempo que foi dele.


Sanzalando

1 de março de 2024

meus retalhos 25

Eram para aí umas 2 da madrugada duma noite quente de verão. Ainda não me tinha mudado para a cidade de praia, onde havia de me fixar de vez, era novo no ramo médico, dois ou três anos de experiência e muita garra e vontade, muita dúvida e poucas certezas. O mundo era novo e as noites de urgência eram aventuras que se tinha gosto de ter. Mas às duas da madrugada certeza não tinha nenhuma e sono já era algum. 
- Dr. temos aqui uma menina de 16 anos que vem com cólicas na barriga. 
- Põe ali no gabinete pequeno para eu ver. 
Lá veio a menina chorosa e dobrada sobre sim como que a dizer-me que lhe doía a barriga.
- Olá, sou o Dr. C e estou aqui para ajudar. Conta-me coisas para eu adivinhar o que tens. O Sr. Bombeiro pode esperar aqui à porta se faz favor.
- Dr. estava na praia d'El Rei e comecei a ter vómitos e dor de barriga assim como que a espaços largos.
- Que praia é essa? mostrando a minha ignorância de praias da região Oeste.
- Em Óbidos.
- Ok. Deita-te ali na marquesa e mostra-me a barriga. 
Ela deitou-se, menina de 16 anos a dar para o gordinho, com a barriga mal à mostra. 
- Vá lá, camisola para cima e calças para baixo, tenho de olhar e ver a barriga toda. Encolhe a barriga... faz inchar a barriga... - os movimentos dos músculos abdominais eram normais. Não temos peritonite, pensei eu aliviado de não ter que ir ao Bloco àquela hora.
Levantei-me da secretária e sentei-me ao lado dela naum banco para fazer o segundo gesto que era a palpação abdominal.
Comecei pelo epigástro, ali mesmo a meio onde acaba o tórax e começa a barriga. Curioso, faço pressão aqui e as calças ali mexem. 
- Baixa mais as calças e as cuecas - disse eu intrigado e sem saber o que estava a acontecer., longe daquilo que ia acontecer.
Volto a fazer pressão e mando um grito: Preciso dum enfermeiro aqui no gabinete.
Conforme eu fazia pressão no abdómen ia aparecendo a cabeça dum bébé lá no sítio por onde eles nascem. 
- Tens família ou vieste sozinha? 
- O bombeiro é o meu pai.
Acabámos de fazer ali o parto, chamámos o pessoal do bloco de partos para fazer o que ficou por fazer e eu dirigi-me ao bombeiro, pai e avô.
Contei-lhe o que se passou e ele incrédulo disse-me:
- Impossível ser a minha filha, ainda hoje estivemos na praia e ela não estava grávida.
- Pois, há milagres inexplicáveis. Mas pode vir comigo e se não saiu daqui da porta pode ver que não há mais nenhuma outra ou janela neste gabinete por onde tenha entrado a cegonha.

Sanzalando

29 de fevereiro de 2024

sentado, espero Março

Me sento em silêncio e olho o zulmarinho. Aguardo o mês de Março. É mês de festa na cidade, é mês de festa em casa porque faz não sei quantos anos que me baptizaram, registaram e eu passei a existir de papel passado. É pena que eu não consiga pôr em palavras aquilo que os meus olhos olham, aquilo que a minha alma sente, aquilo que a saudade faz-me viver em cada instante do meu antigamente. 
Como posso eu escrever em tons de lágrima se eu não choro cada pedaço meu? Como posso eu sofrer de angústia se cada segundo meu foi uma experiência de vida? Como posso eu estar triste se os cabelos rareiam e a pele não tem mais a textura do antigamente se é sinal que eu estou aqui agora a rever cada passo que dei?
Me deixo só olhar o zulmarinho e esperar Março, faz de conta o tempo passado é presente e tempo futuro é grande para eu ter tempo de recordar cada instante como um agora.

Sanzalando

28 de fevereiro de 2024

K'arranca às quartas - 6º programa

Programa de Rádio com palavras, livros e música 
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Os Cús de Judas - Podcast do K'arranca às Quartas


Sanzalando

meus retalhos 24

Pouco passava das 15:30 horas de segunda feira. Dia caótico de segunda feira na urgência, o que me é normal. Entra o INEM pela reanimação dentro trazendo um trabalhador da construção civil literalmente como se fosse um espeto. Grande aparato, grande alvoroço e juntam duas equipas de enfermagem, os que iam sair e os que entravam. Lá tive que usar a minha voz de comando de modo a haver orientação e ordem num trabalho que nem eu ainda tinha conseguido imaginar no meu cérebro as imagens tridimensionais que via. Um ferro, usado na construção de pilares, com cerca de 8 mm de diâmetro que entrava abaixo da grelha costal à direita e saia na face externa da coxa esquerda. Estávamos ali com cerca de 1 metro de ferro que percorria o interior daquele sinistrado tal qual um espeto. Felizmente os colegas no trabalho, que auxiliaram a equipe da VMER, não ousaram retirar o sinistrado pela via como entrou mas sim optaram por cortar . Interessa dizer que o sinistrado caíra de um andar superior e entrara em queda num pilar que estava a ser construído. 
Feito o reconhecimento exterior, tendo os parâmetros vitais estabilizados, pedidos necessários feitos há que levar ao bloco e tratar o que houvesse para o fazer. Não havia hipótese de fazer nenhum exame de imagem pois o ferro iria deturpar qualquer imagem na sua proximidade. Como eu dizia, fazemos um tac in loco.
No bloco, seguindo a rotina habitual, feitas as observações mais pormenorizadas decidi avançar pela abertura abdominal e ver os estragos e a maneira como retirar aquele corpo estranho que nos incomodava no posicionamento para além de tudo o mais. Duas lesões no intestino delgado, identificadas e marcadas para mais tarde reparar. Agora temos aqui o problema maior, o ferro rasgou a veia cava e faz de clampe, isto é, rasgou e faz pressão de modo que não há sangue a voltar para o coração vindo da extremidades inferiores. Cada vez que mexíamos no referido era um lago que subia que nem mar em maré cheia.
O meu colega gritava de pânico ao mesmo tempo que empalidecia de susto. Eu pensava e acho disparei a pulsação para níveis inimagináveis. Eu não queria transparecer o pânico em que estava pois tinha de pensar rápido e resolver a situação. 
- Zé, vamos deixar o ferro aqui, vamos coser a veia cava e depois então retiramos o ferro. Olha, tem um rasgadura no fígado. 
O Zé, meu colega e ajudante nesta cirurgia dizia para mandarmos o doente para Lisboa. 
- Não, Zé. Ele não ia chegar lá porque não há retorno venoso. Temos que ser fortes, Zé. Respira e tudo vai correr bem.
Mimas, enfermeiro experiente estava a meu lado e dava-me força e estímulo para continuar. No fígado fiz um tamponamento com compressas grandes e agora viro-me para a cava. Na verdade apetecia-me cavar dali para fora mas o doente não ia gostar.
Sutura na cava feita, mexido o ferro e verificámos que não sangrava. Mas e agora tiramos o ferro pela coxa ou pela parte superior do abdómen? O ferro era irregular, tipo estriado. 
- Mimas arranja lá um alicate da Ortopedia. pedi eu enquanto pensava. 
Veio o alicate de pressão, ajustamos ao ferro na porção inferior , na coxa. 
- Mimas, vai puxando devagar enquanto eu e o Zé verificamos aqui o interior.
- Zé, toma conta do Fígado para não estragarmos mais. Eu tomo conta aqui da veia cava. eu dizia isto mas convicto que não seria assim tão fácil retirar aquele metro de ferro rugoso sem estragar mais.
Não foi fácil mexer. A força feita levava e o ferro. Com tentativa e modificações lá conseguimos ir tirando o ferro sem males maiores. Finalmente o ferro saíra e tinham decorrido apenas três horas. Era preciso verificar tudo novamente e reparar os danos identificados. 
O Zé recuperou e ajudou mais a partir do momento que tirámos o ferro. Fizemos todas as reparações possíveis, lavamos para aí com uns 15 litros de soro, e encerramos deixando uns drenos pelo caminho. 
Pós-operatório sem um único incidente.
Uns tempos mais tarde ele apareceu-me em visita ao hospital e contou-me que quando fora à sua terra natal, Cabo Verde, tinha levado as fotografias que eu lhe dera e que havia pedido para alguém tirar (não tinham ainda inventado os telefones que fotografam), e passaram a chamar-lhe o Reencarnado



Sanzalando

27 de fevereiro de 2024

uma carta sem destinatário

Querido amigo

Espero que esta carta te encontre em boa forma física e mental e com um sorriso de orelha a orelha, pois estou quase a chegar naquela praia paradisíaca que você chama de lar! Eu sei que pode parecer um pouco louco, certo? Eu, já um completo estranho, aparecendo do nada e pedindo cama e roupa nesse retiro costeiro onde um dia aprendi a andar, me apaixonei e me deixei embalar em sonhos. Mas você sabe, a vida é cheia de surpresas e eu, desconseguido de mim não sou coisa rara nem estranha!

Deixa-me contar um pouco de mim para que possas me reconhecer quando chegar ao aeroporto. Não vou falar da cor do meu cabelo ou dos meus olhos, porque seria impossível veres. Quero que me vejas além do superficial, assim como tivesses uns óculos especiais.

Para começar, embora não pareça sou uma alma inquieta, sempre em busca de novas aventuras e emoções. Sou como um cão de rua, farejando cada canto e caminhando por aí sem sul nem norte. Lembras-te de algum cão da nossa vizinhança de antigamente? Aquele que ladrava quando um qualquer passava, ou quando não passava ninguém? Aquele que saltava o muro e ia atrás das bicicletas parecia só ladrar para mais depressa pedalarmos?  Bem, esse seria eu no hoje de agora.

Tenho uma paixão desenfreada pela natureza e pela escrita embora ainda não consiga escrever duas linhas seguidas, sem gaguejar nos ditongos ou tropeçar nas vírgulas. Às vezes me desconecto do mundo em lugares como praias ou florestas para me inspirar e pegar as palavras que voam no vento e escrevê-las na minha tentativa de ser eterno. Sinto-me mais vivo quando estou ao sol, com os pés na areia ou perdido numa floresta densa. Não preciso de luxos ou confortos extravagantes; apenas um cenário ilustrado e estarei no meu elemento.

Além disso, sou um grande amante de histórias. Não importa se são livros, filmes ou simplesmente anedotas que, como dizia a nossa amiga de infância que faz décadas que eu não sei nada dela, são as aventuras do dia a dia, estou sempre ansioso por mais. Sou como um velho que coleciona palavras em vez de objetos brilhantes. As histórias são os meus tesouros mais preciosos, embora a minha preciosidade esteja em não ter grande história.

Ah, e não posso esquecer de mencionar meu amor pela comida saborosa e bem apresentada. Sou um explorador culinário, sempre disposto a experimentar pratos exóticos e sabores desconhecidos, mesmo nada sabendo de paladares ou de especiarias. Para mim, cada refeição é uma aventura em si e cada dentada é uma nova descoberta que me mata a fome.

Quanto às minhas habilidades, bem, digamos que sou uma mistura de tanta gente que sou incapaz de definir. Posso arranjar quase tudo com fita adesiva e um pouco de engenhocas. Não sou o tipo de pessoa que desiste facilmente frente a um desafio mas, em vez disso, vejo isso como uma oportunidade de demonstrar minha criatividade e utilidade.

Então, amigo, quando me vir chegado no aeroporto, é só procurar alguém com o brilho da aventura nos olhos, o cheiro de sal na pele e um sorriso ansioso por explorar o desconhecido. Serei eu, pronto para mergulhar nas maravilhas do seu mundo costeiro da minha infância.

até breve
com carinho,

eu


Sanzalando

23 de fevereiro de 2024

ler

Ler um livro nas calmas é um saborear contínuo de sensações e emoções. Imaginemos que saltamos logo para o fim e ficamos a saber como acaba. Perdeu-se o encanto, a beleza do caminho. Um livro é sempre melhor que um nada. Há livros que gosto, outros desconsigo gostar. Uns devoro, outros lentamente vou página a página. Há livros que não chego na página 10. Mas eu prefiro esses a não ter nenhum. Ler é saber, adquirir conhecimento. É riqueza. Qualquer livro traz-nos sempre qualquer coisa. Nos dia velozes de hoje, em que a informação quase chega antes do acontecido e a gente precisa parar e ir ler, saber o ontem de há muito ou pouco tempo. Só com os agora deste momento o saber é quase nenhum, falta o passado, falta a história.  É preciso ler.


Sanzalando

22 de fevereiro de 2024

insónia de memória

Acordado na noite como se fosse mais uma parte do meu dia com muito para fazer. Sentado no sofá, vagueei por insónias, desejos, cóleras e prazeres passados num tempo que já nem a memória localiza. Era uma noite diferente. Além de ser noite em mim, também era noite na rua. O céu era negro e salpicado de estrelas, A lua era nova pois brilhava parecia tinham lhe puxado o lustro. Eu sentado contando minutos, horas ou outros tempos que nem os carneiros passavam para eu lhes contar. Olhei as flores que tal como eu não dormiam. Estavam viçosas do lado de lá da janela banhando-se em luar. Eu não sentia vento e elas também não porque não ventava. A noite além do céu negro estava cheia de silêncios. As nuvens que lentamente se modificavam ao ritmo desse silêncio faziam-no silenciosamente. O sono não veio e eu vagabundei no tempo, fui até tão longe que já estava com medo de não saber o caminho de voltar. Vi coisas do nada, voei idades, acariciei caras que faz tempo já não são como me lembro delas. Vi gente faz tempo não fazem parte deste tempo. Quando a aurora começou a romper o céu os meus olhos pesados vergaram-se e eu não sei como voltei ao tempo de hoje, pois o sol quente me bateu na cara, manhã alta.


Sanzalando

K'arranca às Quartas Programa 5 - 21-02-2024

Programa de Rádio com palavras, livros e música 
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21 de fevereiro de 2024

olhar sincero

Sou apaixonado por olhares sinceros, do tipo que arranca a alma. Adoro olhar nos olhos de uma pessoa e sentir o resto do mundo ausente. É uma sensação tão pura e verdadeira. Mas ligações assim são tão raras, você olha para muita gente todos os dias, mas quantas vezes se sente a olhar com pura sinceridade?
Quando achar alguém assim, aproveite, pois esse momento tão especial pode durar apenas alguns segundos, talvez algumas semanas; mas se você tiver sorte, a sua vida toda.

Sanzalando 

20 de fevereiro de 2024

eu, neorrealista

Todos os meus caminhos levam-me à origem. Deve ser defeito ou apenas uma engrenagem  empenada. Eu parto para longe e quando dou por mim eu estou no lugar de partida. Eu acho que sou uma encruzilhada de seres que se encontram no ponto da paixão, que se refugia no cérebro e que se imagina no ponto central. Eu sou aquele que fugiu de mim para estar mais dentro da minha existência. Eu sou um abraço de nada cheio de amor.
Eu, a realização de mim. 

Sanzalando

19 de fevereiro de 2024

eu, cabeça no ar

Deixo o meu corpo seguir as leis da vida. Às vezes eu lhe tento forçar mas ele range e eu volto no meu lugar de comodidade.
Eu bem que não quero deixar o meu corpo se acomodar como se ele fosse uma nódoa da minha vida física. Eu lhe tento treinar para ele acompanhar a minha jovem cabeça, mas tem vezes que ele diz para ela ir que ele logo chega lá. Eu assim não lhe contrario e eu vou com a cabeça e a imaginação, o desejo e a intenção. O corpo se espraia no relax em quando eu mental vai sem físico.
Imagina o meu cérebro toca rock e o meu corpo dança slow. Eu assisto e me ouço, sem contestação nem argumentação. 
Eu bem que digo na minha cabeça para ela não sair do lugar mas ela teima em deixar o meu corpo e vai por aís como uma canção voa no vento.
Já minha mãe dizia que eu era um perfeito cabeça no ar. Eu só agora percebi que ela tinha razão. Cabeça vai e corpo fica.


Sanzalando

17 de fevereiro de 2024

saudade

Tem horas que eu dou comigo a sonhar saudades. Vais ver eu ainda me descubro que saudade tem hora. Vais ver eu ainda vejo a minha saudade num muro parece é cinema. Ainda vou rir de saudade de ter as saudades que eu tenho.
Imagina só olhar no relógio e ver que são horas de ter saudade, deixar de ouvir o ruído do mundo e ouvir apenas o som da saudade. 
Quem foi que disse que saudade é tristeza. Eu tenho saudade e ainda bem, porque assim eu posso ver que cheguei neste agora com vida passada lá atrás. Eu brinquei, saltei, chorei e ri num tempo para ter tempo de fazer tudo isso. O meu futuro encurtado já não tem veleidade de me dar tempo para eu parar a olhar para nada. Mas ainda tenho tempo para olhar para trás e saber que tenho um futuro para ver.
Na minha rua, no meu café, na minha praia, no meu jardim e no meu mato. Eu tinha tanto no passado deste presente que o meu futuro só tem de ser é brilhante.

Sanzalando

14 de fevereiro de 2024

meus retalhos 23

Ainda não era meio-dia duma segunda feira de inverno. A urgência deitava doentes para a rua porque não cabiam na sala de espera. A gripe tinha atacado e a força do pessoal também estava na mó de baixo. Doentes espirravam e o pessoal tossia, e vice-versa. Mas estávamos ali para o que fosse preciso e quando o fosse. A boa disposição disfarçada lá estava nos piropos, nas respostas e até apenas no olhar. 
Joaquim, enfermeiro com muitos anos de casa e mais os que tivera na tropa numa guerra que não era a dele, dizia que o inimigo atacava quando a gente não espera. E a gente ria com a vontade de mandar tudo para as urtigas. Doía-me o peito da tosse. O nariz da enfermeira estava mais vermelho que o do palhaço. Joaquim, apesar do frio mantinha a sua farda branca de manga curta. Apesar das dores do corpo, do pingo do nariz ele dizia que se não foi bala também não é vírus que lhe atira ao chão. Ele estava a ser a nossa força, ele era a descontração, a piada na ponta da língua e era quem mais sabia que gripes e afins não são com caldos de galinha. Para ele era mais avinha-te, abifa-te e abafa-te. No caso dele era mesmo só mais avinha-te. Então naquele dia acho ele tinha abusado da dose. A certa altura estávamos todos à procura do Joaquim. Desaparecera. Misteriosamente, entenda-se. Nunca ele se tina ausentado sem avisar. Ou a mim, seu amigo desde a minha chegada ou os colegas, muito cumplices de histórias passadas.
As horas passaram e o Joaquim nada. Vamos manter o nosso silêncio e continuar a procurar. Combinamos meia dúzia de nós que o conhecíamos bem. Pensávamos.
Hora de mudança de turno e nada. Continuei e os colegas dele se foram. Nem um recado chegou. 
No dia seguinte continuávamos na mesma. Terminava o meu turno na urgência e fui para a enfermaria. Preocupado. Não era hábito. 
Uns dias mais tarde soube. Ele tinha uma doença incurável e resolvera fazer tratamento à sua maneira. Muito álcool e até esquecer o que já há muito havia esquecido, a vida.
Fomos a sua casa, resolvemos levá-lo, assim a modos que contrariado porem sem violência. Resolvemos tudo, falámos com todos e todos foram um só, incluindo o Joaquim que ficou connosco mais dois anos, mesmo sem piadas, mesmo sem calores mas sempre pronto para nos acompanhar nas noites de folia. Nós éramos jovens e o Joaquim com as suas estórias era o nosso aglutinador. Enfermeiro à moda antiga.
30 anos depois ainda o recordo com saudade e com ciúme de não lhe ser um igual na disposição


Sanzalando

12 de fevereiro de 2024

meus retalhos 22

Sábado para Domingo, num fim de semana algo agitado, com escaramuças na Praia da Rocha e seus golpes de arma branca. Fins de semana típicos de verão em que a paixão se sobrepõe à razão e de copo em copo até ao golpe fatal, pelo menos para fim de férias. 
Somo chamados à pequena cirurgia com certo grau de urgência. O que faço sem grande esforço. Questão de feitio ou sentido pessoal.
Entro na nossa salinha e está uma jovem com cara de há pouco ter feito 20 anos e um jovem pouco mais velho. Ambos choravam convulsivamente.. Achei que o choro era mais de susto que de razão física. Mas quem sou eu para fazer julgamentos e ainda por cima de madrugada? Quero é despachar e bem. Sempre digo que quando eu trabalho é por mal de alguém e eu não gosto do mal alheio.
- Então o que é que temos aqui? perguntei olhando para a tolha que estava no colo do jovem, cheia de sangue. 
- Quem te naifou? mais uma vez em adivinhação que verifiquei ser errada.
Ele assim num espaço de choro, cara de medo e envergonhado me diz:
- Casámos hoje, viemos para o hotel e quando comecei a fazer aquela coisa com ele só senti um calor e dor e quando olhámos eu era sangue por todo o lado. Pensámos que era por ela ter perdido a virgindade. Mas o sangue era meu e nós não sabíamos que ao deixar de ser virgem a gente também sangra. E isto não para. isto assim escrito demorou muito tempo a ser dito pois havia soluços, choros e pausas no meio até de palavras.
- Mostra-me lá o instrumento - disse eu tentando aliviar o ambiente - Epá, rasgaste o ferio. Tenho que dar aqui um ponto e reparar isto. Bem e aviso que vão ser precisos 8 dias de pausa para não voltar a acontecer.
O choro parou, e entrou a cara estupefacta de quem havia descoberto algo que não podia ter uso.




Sanzalando
recomeça o futuro sem esquecer o passado