Programas K'arranca às Quartas no Blog

5 de dezembro de 2025

o segredo do morro de salalé

Nas vastas terras avermelhadas da banda, mesmo onde fica a Vila que já foi Arriaga e que agora lhe chamam de Bibala, tinha um imbondeiro generosamente grande que até parecia a fortaleza do  Morro de Salalé que ficava na ponta da sua sombra. Não era apenas um monte de terra, mas uma arquitetura gigantesca, uma torre de argila pura que parecia tocar o céu. Tão antigo quanto a memória da primeira chuva, ele era a casa de milhões de salalés, os pequenos obreiros que, ao longo de séculos, teceram aquela maravilha. Apetecia fazer um telhado para evitar o desmoronamento em dia de chuva no sopé da Chela. 

Para o povo das aldeias à volta, o Morro não era só um ninho de insetos. Era o guardião do silêncio, o lugar onde a sabedoria dos mais velhos se misturava ao murmúrio incessante da natureza. Ninguém lhe tocava, pois dizia-se que lá, onde a argila era mais fina e o sol mais forte, residia o espírito de Nzinga, a rainha-mãe dos salalés, que podia conceder um único desejo a quem fosse puro de coração.

Havia na aldeia uma jovem chamada Kianda, conhecida pela sua curiosidade indomável. Enquanto os outros jovens temiam o Morro, Kianda sentia-se atraída por ele, sonhando em descobrir o segredo da rainha Nzinga. O que ela desejava não era riqueza nem poder, mas sim a capacidade de ouvir a terra, de compreender os sussurros do vento que pareciam carregar histórias esquecidas.

Num ano, a seca apertou o povo da Bibala. A água dos poços secou, e os rios encolheram-se como os cabelos dos velhos cansados. O desespero abateu-se sobre a vila. O velho Soba lembrou-se então da lenda de Nzinga e do desejo que ela podia conceder.

Kianda, movida pela compaixão, decidiu ir.

À luz da lua crescente, ela iniciou a subida. O Morro, liso e duro como pedra, parecia observá-la. Sentia os pequenos salalés a correrem por debaixo da superfície, como um coração a palpitar. Ao chegar ao topo, o ar tremeu. Não havia um palácio de rainha, nem um trono de ouro, apenas um único buraco no cume, por onde soprava um bafo quente e perfumado a terra.

Kianda ajoelhou-se e, com a voz quase sussurrada, pediu: "Rainha Nzinga, não peço por mim. Peço para que a minha gente possa ouvir onde a água se esconde, para que saibam onde cavar e onde a vida espera."

O silêncio que se seguiu foi mais alto do que qualquer grito. Sugundos depois, do buraco, subiu um ténue pó de terra avermelhada que a envolveu. Kianda desceu o Morro, vazia de esperança, mas com um estranho zumbido nos ouvidos.

Ao chegar à aldeia, notou algo novo. Quando fechava os olhos, conseguia sentir a paisagem. Ela ouvia o barulho fresco da água subterrânea a correr, como o som de um tambor distante, vindo de uma zona de mato seco.

Guiada por este novo "ouvido da terra", Kianda levou os homens para lá. E cavaram. E cavaram. Até que, finalmente, a água jorrou, pura e abundante, salvando Bibala da seca e da morte certa.

Kianda nunca mais regressou ao topo do Morro. Ela não precisava. A rainha Nzinga tinha-lhe concedido não um desejo, mas um dom: a capacidade de ser a voz da terra.

A partir desse dia, o Morro de Salalé não foi só o guardião do silêncio, mas também o sussurro da esperança. E Kianda, a "mulher que ouve a água", tornou-se a nova guardiã da sabedoria, lembrando a todos que, mesmo nos mais pequenos obreiros da natureza, se esconde o maior dos milagres.



Sanzalando

4 de dezembro de 2025

eu e o mar

Era ainda cedo quando cheguei à praia. A areia ainda estava fria e o vento da manhã trazia consigo o cheiro fresco de mar. Fiquei ali parado, quieto, como se tivesse medo de assustar o mar, de lhe acordar num acordar sobressaltado, daquelas calemas que vão até na falésia da fortaleza e suja a estrada de terra, pedras e mar..

O horizonte era uma linha azul infinita que parece é recta mas é curva tal e qual a terra o é. Olhos arregalados, porque sempre me disseram que o mar era grande, mas ninguém dissera que era também vivo. As ondas vinham e iam como se respirassem, e cada uma parecia querer contar-me um segredo.

Sentei-me na areia e fiquei a ouvi-las. A primeira onda contou-me sobre peixes que brilhavam como estrelas debaixo d’água. A segunda falou de barcos que cruzavam mundos. A terceira… a terceira só suspirou, como quem carrega uma saudade antiga.

- O que foi? — perguntei-lhe.

A onda não respondeu, recuou muda após tocar-me os pés suavemente. Levantei-me e entrei alguns passos no mar. A água estava fria, mas não assustadora.

- Eu não entendo — disse baixinho. — Mas prometo voltar para ouvir mais.

E foi aí que o mar, pela primeira vez, sorriu-me, com uma onda pequena e morna que me chegou aos joelhos. Era como um abraço, pensei.

Naquele dia, descobri que o mar não se vê apenas com os olhos. Vê-se com a alma, e ouve-se com o coração. E por isso, desde então, sempre que a vida me parece grande demais, eu volto à praia, sento-me na areia fria e deixo o mar contar-me mais um pedaço da sua estória infinita.



Sanzalando

Programa 96 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 26 de Novembro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
Hoje fizemos um programa especial, apesar de todos os K'arranca às Quartas o serem. 
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica ou Coluna ou seja lá o que fôr sobre A literatura lusófona e este Programa 
Falei do Afonso Cruz  Esta Música tem uma história trouxe os Quatro e Meia e Na escola, numa colaboração de José Leite; 
não faltaram os Tesourinhos Musicais hoje com Os Censurados
POEMA de Joaquim Pessoa - Morrer de amor é assim 
e João Portelinha da Silva, cronista no K'arranca às Quartas que falou de Agostinho Neto e António Jacinto
e e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.
Falei do quando em vez de como e do que
O K'arranca às Quartas é um programa para ouvir com ouvidos de pensar e o tema, sempre o tema de ouvir para pensar



Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

uma esplanada na minha cidade

Na minha pacata cidade, aninhada entre o deserto e o mar, havia uma esplanada que parecia uma janela do tempo. Não era um lugar qualquer; era um ponto de encontro onde as gerações se entrelaçavam, um testemunho vivo de que o tempo, embora implacável, também podia ser generoso.

Depois do almoço o lado esquerdo da esplanada pertencia aos "Velhos Sábios". João Trindade Junior, Figueiras das Ameijoas, João Aldrabão, Artur Gomes, e mais uns quantos. Sentados em cadeiras de chapa, gastas mas confortáveis, os senhores todos com cabelos grisalhos e alguma brilhantina, olhares serenos falavam do dia. O cheiro do café e as páginas dos jornais amarrotados contrabalançavam a conversa ao tom de desafio. Ali, o João Aldrabão, um pescador que não sei se lá foi alguma vez, até parecia o Raul Gomes, pai do Artur, a falar de peixes que eram tão grandes que acho não cabiam no barco onde iam e mais com histórias de mar para dar e vender, jogava xadrez verbal com o João Trindade, benfiquista de gema, despachante de alfândega e ar muito sério porém sorriso que mostrava o desafio. Nestes tempos sem pressa, o melhor remédio é uma boa prosa e um café forte, costumava dizer o Sr.Reis, enquanto observava o movimento da rua com um sorriso enigmático e via o seu café cheio.

O lado direito eram jovens. Uns já considerados adultos outros ainda adolescentes. Era um ponto de aprendizagem, com o lado contrário e também de má linguagem, num corte e custura que nem velhas alcoviteiras. Todos eram passados a pente fino. À tarde, a esplanada começava a ganhar uma nova energia. Aos poucos, os jovens da cidade começavam a aparecer, paulatinamente ocupando o lado esquerdo porque eles eram homens de trabalho. A maior parte estudantes, uns ainda com livros outros já sem eles, gastavam o tempo até terem tempo de ir para o Áero-Clube jogar bilhar, na maior parte das vezes ao perde- paga. 

A Esplanada da Oásis deixou de ser apenas uma esplanada do café, tornou-se um símbolo de união, um lugar onde o passado e o futuro se encontravam no presente. Era um lembrete de que, apesar das diferenças de idade e de experiência, todos partilhavam a mesma humanidade, a mesma necessidade de conexão e a mesma sede de histórias para contar e ouvir. E assim, na pacata cidade, a esplanada continuou a ser um refúgio, um porto seguro onde as gerações se encontravam, aprendiam e celebravam a beleza da vida em todas as suas fases.



Sanzalando

2 de dezembro de 2025

o meu papagaio de papel

Numa ensolarada tarde de verão, na minha cidade de ventos do deserto onde a minha avó dizia que o que estragava tudo era o vento leste, vivia eu que além de adorar chuinga também gostava de papagaios de papel. Sempre sonhei em ter o maior e mais bonito papagaio de papel, e que voasse tão alto que pudesse tocar as nuvens.

Um dia, enquanto saboreava um gelado comprado no Tico-Tico, de morango ou baunilha por serem tão diferentes eu agora não me lembro, tive uma ideia brilhante. "E se eu fizesse um papagaio de papel que parecesse um gelado gigante?" Usei a imaginação e desenhei na cabeça um papagaio de papel com listras vermelhas e brancas, uma ponta castanha como se fosse o cone e um delicioso aroma de morango e baunilha voando no ar.

Passei a semana a desenhar e a construir o meu papagaio de gelado. Usei papel colorido, varetas leves feitas de caniço e muita cola feita de farinha. A minha mãe, habilidosa, ajudou a cortar e construir a cauda, que ela fez parecer um a derreter, escorrendo em cores berrantes.

Finalmente, o dia do papagaio ficar pronto chegou. Levei o meu papagaio de gelado para o campo aberto, perto do campo do Benfica, lá para o lado dos estaleiros do Guerra, onde não havia postes nem antenas nem outros empecilhos. Ali era eu e o meu papagaio que era diferente de todos os outros que eu já tinha visto. Ele era grande, colorido e tinha a forma de um delicioso gelado. Não, já tinha feito joeiras coloridas mas agora eu queria um papagaio de papel como um dia vi num qualquer filme de matiné, possivelmente feito em Macau ou arredores. Eu agora tinha um papagaio de papel. Joeira era para os outros. 

Segurei o fio de sapateiro com firmeza e, com um empurrão do vento, o papagaio de gelado subiu no céu. Ele dançou e girou, as cores berrantes brilhavam ao sol. Náo tinha ninguém para olhar o meu papagaio de papel, original e lindo. O papagaio subiu cada vez mais alto, até parecer um pequeno gelado a voar em direção ao sol.

Enquanto o papagaio voava, senti uma onda de felicidade. Eu tinha criado algo único, algo que trazia alegria. Veio uma rajada mais forte, dei-lhe guita, ele subiu e rodopiou numa volta gigante e se desfez com estrondo quando bateu na areia dura do velho acampamento do Guerra. O meu papagaio de papel feito em forma de gelado tinha 'derretido' ao sol da minha alegria



Sanzalando