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20 de abril de 2025

É páscoa mas também é dia de pensar e fazer.

Vagueio nos passos que vou dando numa avenida imaginária. Lá fora faz vento e de quando em vez cai chuva parece é maquete de dilúvio. Molha os desprevenidos e entristece os vagabundos mentais que, como eu, que gostam de sentir o sol na rua mesmo que fiquem dentro de casa.
Hoje oferecem-se ovos e coelhos de chocolate, porque segundo a tradição pagã, são símbolos de fertilidade, mesmo que a família seja grande. 
Mas eu só posso encolher os ombros e nunca lutar contra tradições porque isso far-me-ia lutar contra paixões, o que seria em vão para lá do cansaço que iria sentir.
Mas lá porque é Páscoa eu não deixo de pensar, não deixo de ter o meu vagar para vagabundear por estreitas ou largas avenidas imaginárias.
E hoje li:
“Um médico não tem de ser um cientista”
Conheço médicos que nunca escreveram nada. Nada de publicável, pelo menos. Nem uma carta para o editor. Quando se lhes perguntava porquê, sorriam como quem pergunta de volta: “Era suposto?”. E continuavam. Sem pressa. Sem culpa.
Mas se entrassem num quarto de hospital, mudava tudo. O doente ficava mais calmo. As enfermeiras confiavam. Até o ventilador, juro, parecia fazer menos barulho. Não era por causa da autoridade — era por causa da atenção. Ele estava mesmo ali. Inteiro.
Também conheço outro tipo de médico. Este publica muito. Aparece em revistas boas, escreve e fala inglês melhor do que muitos ingleses e sabe sempre a última evidência de tudo. Também é um óptimo médico. Mas não apenas por publicar. É por outra coisa. Por ser curioso e querer transformar. Vontade de deixar a casa um pouco mais arrumada para o próximo.
Entre estes dois extremos há um vasto território. E é nesse intervalo que alguns tentam fazer crescer uma ideia perigosa: a de que o valor de um médico se mede em artigos. Como se a presença clínica fosse secundária. Como se estar dedicado a lidar com o doente fosse um subproduto de não ter conseguido publicar.
O problema não está em publicar. Publicar é bonito, generoso e é uma maneira de contribuir. Mas o problema começa quando se confunde o acto de publicar com a essência da medicina. Quando se começa a acreditar que quem não escreve, não pensa — e que quem escreve, sabe sempre o que fazer.
A ciência é fundamental. Sem ela, estaríamos ainda a fazer asneiras sem fim e a provocar mais mal do que bem. Os que escrevem os artigos que nos fazem evoluir são heróis, no seu género. Mas não são, por isso, melhores médicos. Medicina é mais do que isto.
A Medicina tem um lado profundamente invisível, que não cabe em parágrafos nem se traduz em gráficos. Nem pode ser resumida aqui.
É fácil esquecer isso num tempo em que tudo parece depender de métricas. O número de publicações. O fator de impacto. Mas a medicina não começou com índices nem o doente é indexado.
Talvez um dia se volte a distinguir uma coisa da outra. O cientista que publica. E o médico que cuida, trata e salva. E esta diferença começa na própria formação e na Ordem dos Médicos.
Nos melhores casos, essas duas figuras coincidem. Quando não coincidem, ambas continuam valiosas. Só não são — e nunca serão — obrigatoriamente a mesma coisa.
Publicar pode dar estatuto e elevar a ciência da Medicina. Mas é junto do doente que se decide se somos, ou não, verdadeiramente médicos.
João Cravo
E aqui vem-me à memória outras avenidas que, ao que vou ouvindo, estão vazias. Avenidas grandes e avenidas que são e sempre foram ruelas, estão vazias porque fechadas ao público. Falo da Páscoa no SNS. Os médicos, aqueles seres que dão conforto, aliviam o sofrimento e curam dores e outras doenças cansaram-se ser gente culta, enciclopédica e ao mesmo tempo peregrinos esfarrapados duma crença que alimentou sonhos. Durante anos esses seres habituaram os habitantes das avenidas, ruas e ruelas que eram cultos mas pouco lhes importava a família, os bens materiais e o seu próprio bem estar físico e mental. Tinham a alma esfarrapada mas o sorriso abria-se ao entrar na enfermaria, ao abrir da porta do gabinete. Tinham lágrimas nos olhos porque a noite mal dormida por preocupação daquele enfermo que apesar de todos os esforços se fora, como que ingratidão para tanto saber e entrega. Mas aquelas lágrimas ninguém viu, a sua família por acaso até as sentiu mas nada ouviu.
Boa páscoa


Sanzalando

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