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28 de junho de 2025

Cheguei ao Porto 12 - nem imagino de quantos

A tradição não perdoa. Mesmo que com exame marcado para um dos dias a seguir, dava pelo menos uma volta à Ribeira, bebia um copo no Palácio de Cristal. Era um ritual sagrado comer sardinha assada e pão, bater com o alho-porro na cabeça de estranhos, lançar um sorriso tímido ao amor eterno daquela noite, e fingir que o cansaço das noites de estudo não pesava. E naquela altura pesava. Deslembo-me.

Naquela noite, deixávamos a bata, como quem queria dizer ao mundo: “Hoje, sou só mais um.” No meio das marteladas, ninguém se lembrava das tensões arteriais, dos exames de bioquímica ou das rondas nas enfermarias. Éramos jovens, invencíveis, com os corações cheios e os bolsos vazios.

Recordo-me de uma noite de São João em que um dos nossos — Armando, sempre mais poeta do que futuro médico, decidiu fazer um brinde em pleno tabuleiro inferior da ponte D. Luís. Gritou para o Douro, copo de plástico em riste:
"À saúde dos doentes e à loucura dos sãos!"

E rimos todos, com aquele riso fácil que só os 20 anos e uns tantos finos depois permitem.

Havia um encanto em ver a cidade acesa, em ver as varandas com manjericos e quadras tolas, os velhos a dançar com as crianças, os namorados a perderem-se nos becos. E nós ali no meio, entre a responsabilidade que se aproximava a passos largos e o desejo de sermos, por mais um instante, apenas estudantes com cheiro a sardinha na roupa e fogo no coração.

No dia seguinte, voltávamos à rotina com olheiras fundas e cheiro a fumo no cabelo. Mas sabíamos, sabíamos mesmo, que aquela noite nos curava de um ano inteiro de cansaço. Acordávamos como que renascidos.

Afinal, também isto é Medicina: saber quando parar, rir, dançar, viver. E São João, naquele Porto dos anos 80, era a nossa melhor receita para esquecer tantos amores sofridos, tantas sebentas lidas, tantas noites de fome e saudade.

Um dia voltarei para me visitar, como se fosse fazer um safari pelos caminhos do meu passado, pelos rostos que olhei, pelas lágrimas que chorei, ou fiz chorar, como se as lágrimas tivessem criado um mar interior da minha alma e eu pudesse agora visitar como se fosse uma atração turística e mostrar que um dia eu passei ali momentos de felicidade, degraus do meu caminho.


Sanzalando

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