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19 de novembro de 2025

Fui de Comboio a Vapor de Mocâmedes a Sá da Bandeira


Lembro-me bem daquele entardecer em Mocâmedes. O mar ainda não dormia, silenciosa a brisa trazia um cheiro salgado que se misturava ao aroma de carvão queimado da grande máquina preta que estava ali parada à espera das 11 da noite. Na estação, um comboio a vapor, mais pequeno bufava como um gigante impaciente, arrumando carruagens prontas para cortar o interior do sul de Angola rumo a Sá da Bandeira.

Eram para aí umas nove quando subi para a carruagem cor de prata e chapa ondulada com cabines onde iriamos seis, com janelas grandes que deixavam a luz do luar entrar sem pedir licença. 

Há hora marcada o chefe da estação apitou e, por outras vezes que vi, imagino ter levantado a mão com uma bandeira enrolada; o apito do comboio respondeu com um grito metálico e, lentamente, começámos a mover-nos ao mesmo tempo que uma coluna de fumo branco se erguia por aquele espaço. Lentamente fui sentindo que o mar ficava para trás e a paisagem, que o luar me deixava sonhar, ia-se transformando em hortas, pequenos rios e deserto, dunas que eu imaginava douradas mas agora parecia-me cinzentas escuro a perder de vista, pontuadas por árvores teimosas que cresciam onde menos se esperava.

Os passageiros trocavam histórias enquanto o ritmo cadenciado das rodas contra os carris marcava o tempo, tac tac, tac tac, como o bater de um coração. Nós, as crianças colávamos a cara às janelas, maravilhadas com o mundo que corria lá fora. De vez em quando, víamos animais a saltar ao longe, assustadas pelo barulho da locomotiva e na nossa cabeça nascia um filme de aventura.

Quando o comboio começou a subir rumo ao planalto, o ar tornou-se mais fresco. As montanhas aproximavam-se, imponentes e azuis na distância. Passámos pequenas estações, cada uma com pessoas que acenavam, talvez a familiares, talvez apenas ao comboio que trazia novidades do litoral.

Já perto do destino, o verde começava a dominar a paisagem. Depois de horas a rolar, ouviu-se um último apito. Lá estava ela: Sá da Bandeira, com as suas casas claras e ruas que subiam as encostas. Desci do comboio sentindo o chão firme, mas a cabeça ainda no embalo da viagem marcada ao ritmo do tac tac, tac tac da carruagem na junção dos carris..

Foi só então que percebi: aquela travessia não tinha sido apenas uma deslocação, mas um encontro com a terra, com as pessoas e comigo mesmo. Uma viagem de comboio a vapor tem disso transporta-nos muito além do destino final, tinha-me levado ao destino inicial, onde eu havia nascido.


Sanzalando

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