Já não sei quem foi mas me disseram que o deserto do Namibe é o mais velho do mundo. Nunca lhe vi os cabelos brancos nem o seu andar anquilosado. É verdade, não se mede a idade do deserto em séculos, mas em silêncios. É um lugar onde a areia, pintada em tons de ocre e vermelho-sangue ou de ouro pôr de sol, conhece a paciência. É ali, entre as dunas e o mar frio, que vive o Kuroka.
O Kuroka não é um homem, nem uma criatura de imaginação, mas a própria areia que às vezes é rio. Ele dorme sob o sol quente, e a sua rotina é a ausência de mudança. Os seus dias são medidos apenas pela névoa e sua a Ondoka, a sua voz de sabor a mar, que sobe do Atlântico e lhe oferece um beijo frio e fugaz, é o único alívio que conhece. A chuva? A chuva é uma lenda, uma história murmurada pelas poucas Welwitschia mirabilis, que esperam há mil anos que ele um dia alague todo aquele mar de areia.
Mas este ano, o Kuroka acordou com um cheiro estranho. Não era o aroma salgado e metálico do orvalho da neblina. Era um cheiro a terra velha, a poeira que se preparava para se render.
No alto do céu, onde o azul é geralmente um vitral impiedoso, uma sombra começou a crescer. Não a sombra escura e ameaçadora das tempestades tropicais, mas sim um cinzento tímido, como se o céu estivesse a hesitar.
E então, o Namibe sentiu-o.
Não foi um dilúvio, não foi a torrente impetuosa das monções de outros lugares. Foi o som mais raro e delicado que o deserto pode ouvir: gotas.
Uma. Depois duas. E tantas foram que o Kuroka estremeceu. Cada gota que atingia a areia parecia um grito minúsculo. A areia, seca até ao tutano, absorvia a água com uma velocidade voraz. O som da chuva a bater nas dunas não era o de um tambor, mas o de mil pequenos sussurros ansiosos de quem sofre em silêncio.
Por um momento, o deserto parou de respirar. As criaturas que vivem sob o manto do calor — as carochas que apanham a névoa, os lagartos de pés espalmados, saíram das suas tocas, paralisadas pela novidade. Os seus olhos negros e redondos refletiam a escuridão do céu.
A chuva durou apenas meia hora. Uma benção escassa, um piscar de olhos de humidade.
Quando o sol rasgou o cinzento e voltou a reinar, tudo parecia como antes. As dunas estavam vermelhas e douradas. Mas algo tinha mudado sob a superfície.
Em menos de 24 horas, o Namibe, o deserto que parecia condenado à eternidade da secura, começou a sorrir.
Aqui e ali, pequenos tapetes de verde — um verde que parecia roubado à memória de um passado distante, começaram a espreitar por entre os grãos de areia. Flores minúsculas, de tons amarelos, roxos e brancos, que tinham esperado meses, anos, talvez décadas, num sono letárgico, irromperam com uma urgência desesperada.
O deserto estava vivo. A paisagem havia trocado o seu manto de fogo por uma delicada pintura feita em aquarela.
A chuva no deserto do Namibe não é apenas água; é um milagre. É a prova de que a vida espera, por mais improvável que pareça a sua chegada.
E o Kuroka, que já não feito de areia correu e sentiu-se rio a correr para o mar. Ele sabia que o verde duraria pouco. O sol voltaria a reivindicar o seu trono, e o deserto voltaria ao seu silêncio de séculos e ele voltaria a ser areia. Mas, por agora, ele podia murmurar baixinho aos ventos a história daquele dia fugaz, o dia em que o céu chorou e a areia floresceu.
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