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30 de maio de 2025

Meus retalhos 35

Estava eu de urgência, início de carreira, fazia tudo. Desde que o doente chegasse à urgência eu via. Não me importava se era cirurgia ou ortopedia ou lá o que fosse. Eu queria era ver e tratar doentes. Era novo e cansaço não era desculpa nem imaginava que isso existia. Entra pela porta uma senhora, para aí uns 70 anos, para mim naquela altura era uma velhota, mas merecedora de toda a atenção. Foi trazida pela filha mas entrou pelo seu pé e sozinha. Na altura não havia autorização para entrada de acompanhantes. Acho que ainda nada era feito no computador, era escrito na ficha em papel. Cumprimentos, meu olhar clínico já tinha visto a boca desviada e atirei:

- Há quanto tempo teve o AVC

- Dr. nunca tive isso. Só tomo drogas para a tensão porque o meu médico disse que eu tinha tensão alta.

- Desculpe-me. Mas como vi a boca assim desviada...

interrompe-me:

- Por isso estou cá agora. Olhei-me ao espelho e via a boca assim de lado e ao mesmo tempo parece que tenho cortiça na bochecha. 

- Ok. Vamos lá ver bem. levantei-me, toquei na cara, mexi na pálpebra e comecei a pensar.  Nas pernas sente alguma coisa? Ou nos braços do outro lado? fui fazendo perguntas.

- Senhora (não me recordo agora do nome) bom bom era fazer um TAC mas neste hospital não há. Só em Lisboa e acho que não erxiste assim nenhuma urgência em fazer. Eu já estava certo que não era um AVC. Todo o exame clínico dizia-me isso.

- Sabe, acho que tem uma paralisia do facil. Um nervo que enerva esse lado da cara está afectado por qualquer coisa. Vou passar-lhe aqui uma medicação e volta cá, porque vou cá estar no sábado, daqui a 6 dias. De dia se faz favor. E dei-lhe um papel com essa indicação. 

- Dr. não é melhor falar ali com a minha filha?

- Claro, claro.

E lá fui eu, expliquei a minha opinião e tratamento.

No sábado ainda estava na mesma. Não piorou nem melhorou. Mas eu tinha a certeza e fui marcando um dia de semana para rever. 

Após 4 semanas ela apresenta-se, recuperada e diz-me:

- Obrigado, Dr. O que mais me doía era o olhar triste das pessoas quando me olhavam. Agora já lhes posso sorrir.

 

 

Sanzalando


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