A sala de operações estava mergulhada num silêncio clínico, cortado apenas pelo som ritmado dos monitores cardíacos e do arfar subtil da ventilação mecânica. Luvas, bisturis, máscaras — tudo em seu lugar. Eu, cirurgião experiente e concentrado, olhava a equipe com ar sisudo. Todos sabem o meu mau feitio que mais não é que a minha maneira séria de ser em trabalho. A Cirurgia decorria como previsto. Tal e qual se havia pensado.
Mas então, algo mudou.
Primeiro foi o leve mexer do braço do doente. Pequeno, quase imperceptível. Depois, um suspiro, não da máquina, mas dele. Do doente O anestesista franziu a testa e olhou para o monitor. Saturação estável, pressão normal... mas os olhos do paciente, até então cerrados, se entreabriram, opacos, como se vissem através do tecto.
- Doutor... — murmurou umaa enfermeira. — Ele está acordado?
O bisturi parou. Um segundo de hesitação pareceu durar um minuto inteiro. Olhei o anestesista como se eu fosse o lobo mau a ter um acesso de fúria.
O anestesista, em silêncio, correu para ajustar a dosagem duma droga qualquer. — Isto não devia estar a acontecer, vociferou num quase silêncio ao mesmo tempo que me olhava com chama de um dragão em resposta ao meu olhar.
E então, o paciente murmurou. Não um grito, não uma pergunta. Uma palavra só:
- Ajuda... num tom quase silencioso
Mas no meio daquele silencio estupefacto palavra ecoou na sala como um trovão sussurrado. Por um instante, todos pararam e olharam-me. Os meus olhos ainda olhavam sobre o corpo aberto. O anestesista ajustou rapidamente a dose, murmurando palavras técnicas misturadas com muito menos técnicas.
- Ele não devia ser capaz de falar se estivesse anestesiado — disse eu com a voz baixa, mas firme.
- Já aumentei as doses. Vai apagar em segundos. respondeu-me o anestesista com voz mais esfoliante que arame farpado
Mas os olhos do paciente continuavam bem abertos. Não havia sinais de dor, nem de pânico — mas de algo que ninguém conseguiu nomear naquele instante. Ele virou ligeiramente a cabeça, como se tentasse encontrar o cirurgião que era eu.
- Não é meu, o corpo... — sussurrou.
Se havia silêncio, mais silêncio de fez.
O monitor apitou — uma linha reta.
O anestesista gritou.
- Parou! Paragem cardíaca.
A equipe entrou em acção, mas eu, por uns instantes, fiquei imóvel, encarando o rosto sereno do paciente. Aquela última frase ecoava em minha mente como uma agulha arranhando um velho disco de vinil.
Era só um dos eletrodos que se tinha desligado pela pela suada.
Continuei a operação até ao seu fim.
Amuado recusei falar com o anestesista. Típico cirurgião. Aguardei a ida do doente para o recobro. Mantive-me em silêncio enquanto escrevia a papelada correspondente. Os meus internos, a minha equipe permanecia em silêncio à minha volta. Uns faziam que escreviam, outros olhavam para os seus telemóveis. Ninguém ousava ausentar-se daquele espaço. 3 quartos de hora haviam passado e fui ao recobro ver o doente.
Encontrei-o sorrindo e bem acordado.
- Como correu? perguntou-me ele
- Você deve saber melhor que eu. Viu tudo! disse-lhe tentando antecipar qualquer queixa.
- De facto sonhei que estava a ser operado, mas não sentia nada e nem sei quanto tempo lá estive, o anestesista deve ser mesmo bom. respondeu-me com os olhos de quem estava feliz por ter acabado aquele episódio
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