Hoje me apetece falar simples, mas com grande coração: primavera, rádio e os velhos tempos — três coisas que, curiosamente, continuam a saber bem com o passar dos anos. Como um pão quente com manteiga ou uma fotografia esquecida no fundo de uma gaveta ou a lembrança das tardes quentes na varanda a olhar para qualquer coisa do tipo ontem.
A primavera sempre teve um jeito especial de chegar. Não bate à porta, entra pela janela, Sai pela porta, afoga-se em chuva diluviana, evapora-se em tarde quente e esgueira-se no cheiro das flores, no riso das crianças que voltam a brincar na rua, no canto de um pássaro que só canta quando sente que é agora. A gente já não marca no relógio. Simplesmente sente. E isso, para mim, sempre foi parecido com o ouvir rádio.
A rádio era isso: não se via, mas estava lá. Como a primavera. Era a companhia dos fins de tarde em que se faziam os trabalhos de casa na mesa da cozinha ou sentados na velha cadeira de baloiço do avô, o rádio a trabalhar e a voz de um locutor que parecia saber exatamente o que dizer para não nos sentirmos sozinhos. Era a música certa na hora certa, ou aquele programa da noite em que se contavam histórias que nos faziam sonhar com lugares onde nunca tínhamos estado.
Lembro-me bem. Nos velhos tempos, ouvir rádio era um ritual. Um botão rodado devagar, à procura da estação certa. Às vezes com chiado, às vezes com interferências, como quem sintoniza a vida e aceita que nem tudo se ouve com clareza à primeira. A minha mãe deixava o rádio ligado o dia todo. Dizia que a casa parecia menos vazia. Talvez fosse isso mesmo: o rádio era o calor que vinha das palavras.
E agora, nesta primavera que insiste em misturar sol com vento ou chuva, volto a lembrar-me desses dias. Há qualquer coisa de eterno nisto tudo. As estações mudam, os rádios agora são digitais, os tempos são outros — mas o encanto permanece. Ainda há primaveras tímidas, rádios que nos abraçam com vozes familiares, e memórias que nos chegam sem aviso.
Hoje, mais do que nunca, vale a pena parar um bocadinho. Abrir a janela, deixar entrar o cheiro do campo e do mar, ligar o rádio e ouvir. Só isso. Ouvir. Quem sabe o locutor diga uma frase qualquer que nos leve de volta ao tempo em que éramos miúdos e o mundo parecia mais simples?
Porque há coisas que não mudam. A primavera ainda chega devagar, o rádio ainda fala connosco e os velhos tempos… ah, esses, vivem dentro de nós — e voltam sempre que queremos.
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