Programas K'arranca às Quartas no Blog

31 de agosto de 2025

O Café dos Invisíveis

Era fim de tarde em Luanda quando o Café dos Invisíveis abriu as portas. Não havia letreiro, nem música; apenas mesas gastas e cheiro de café forte. Ali, vinham sentar-se aqueles que escreviam Angola.

Luandino estava lá sentado como se estivesse à espera, faz muito tempo. Depois Pepetela chegou, trazendo debaixo do braço um caderno onde ainda se via a poeira do Mayombe. Pediu silêncio: dizia que as árvores da floresta ainda falavam dentro dele. Logo depois entrou José Eduardo Agualusa, com um sorriso leve e histórias que pareciam voar, como se fossem feitas de vidro e de sonho. Trouxe na mão uma pequena arca imaginária, onde jurava guardar segredos do mundo.

Luandino Vieira falou sem pedir licença, mais velho não precisa, carregando palavras como quem carrega pedras pesadas. A sua voz era dura, mas dentro dela morava a cidade inteira — as vielas, as gírias, os meninos descalços correndo pelo musseque.

Ondjaki chegou, risonho, trazendo consigo uma infância interminável. Sentou-se, e de repente o café ganhou cores: havia balões, crianças inventadas, fantasmas doces que dançavam nas paredes.

Conversaram sem se olhar muito, porque cada um via Angola à sua maneira. Pepetela falava das batalhas que não terminam, Agualusa das fronteiras que se dissolvem, Luandino da língua reinventada, Ondjaki do futuro que ainda brinca no quintal.

No fim, ninguém pagou a conta. O Café dos Invisíveis não cobrava a escritores: alimentava-se apenas das histórias deixadas no ar.
E quando a porta se fechou, Angola ficou mais uma vez escrita, multiplicada, infinita.



Sanzalando

27 de agosto de 2025

Programa 82 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 27 de Agosto, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
É um programa de verão e verão que exercitamos a mente sem transpiração nem grande agitação
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica e falámos de Sol e Mar
Falou-se de Livros, Equador de Miguel Sousa Tavares Esta Música tem uma história, com José Cid e Esta Cabana junto à Praia, numa colaboração de José Leite; não faltaram os Tesourinhos Musicais com Fernando Girão, POEMA - da Janela do meu Quarto de Plácido De Oliveira com narração de Mundo Dos Poemas e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.

 

Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

21 de agosto de 2025

A história de um menino no deserto

Era uma vez um menino que tinha por recreio não um quintal, mas o deserto inteiro. Ele só conhecia um pedacinho que nem 500 metros eram. Para lá da estrada da Junta das Estradas era deserto. 500 metros foi muito, mas dava.

Não havia baloiços, mas havia dunas que pareciam montanhas de areia. Não havia escorregas de plástico, mas cada encosta era uma descida pronta para transformar-se em aventura.

O menino corria, deixava as pegadas desenhadas no chão como quem assina o mundo, e ria-se porque o vento apagava tudo, que até parecia que no dia seguinte alguém tinha varrido o quintal. Era o jogo preferido: fazer caminhos e vê-los desaparecer, como se o deserto fosse um quadro mágico que se apaga sozinho.

Com um pauzinho, inventava espadas, varinhas, cavalos de batalha. O deserto era castelo, oceano e selva, tudo ao mesmo tempo. A miragem ao longe era o seu cinema particular: às vezes via uma cidade, outras um lago, outras até camelos que se transformavam em dragões. O deserto era mágico mas ao mesmo tempo ele tinha medo de se perder, de tantas estórias ter ouvido contar.

Quando o sol se zangava e caía com todo o peso de fogo sobre a areia, o menino procurava a sombra raríssima de uma pedra, onde fazia de conta que tinha encontrado a caverna secreta dos exploradores. Ali descansava, inventando histórias que só o deserto escutava.

À noite, deitava-se na areia fria, e o teto era um céu sem fim, cheio de estrelas que pareciam lanternas acesas só para ele. Brincava então de contar constelações, chamando-lhes nomes de bichos, heróis e brinquedos que nunca tivera. Ele não sabia que já tinham dado nomes a elas. Mas o céu era a sua banda desenhada e cada estrela uma personagem

E assim, entre silêncio e infinito, o menino cresceu a brincar no deserto que era do outro lado da estrada.
No deserto, onde parece não haver nada, ele encontrava tudo, até estórias de inventar.


Sanzalando

Programa 81 K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 20 de Agosto, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
É um programa de verão e verão que exercitamos a mente sem transpiração nem grande agitação
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica e falámos de férias
Falou-se de Livros, numa colaboração de Anabela Quelhas, tivemos Esta Música tem uma história, com Elis Regina e Tom Jobim na canção Triste numa colaboração de José Leite; não faltaram os Tesourinhos Musicais com Os Tártaros, POEMA - Canção Do Amor Perfeito   Poema de Cecília Meireles com narração de Mundo Dos Poemas e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.

 

Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

19 de agosto de 2025

podia ser uma biografia

Havia um garoto cujo o nome não me apetece dizer, que desde pequeno se encantava com a ideia de ajudar as pessoas. Todos diziam que era um bom miúdo. Quando alguém da família ficava doente, ele sempre corria para buscar água, preparar chá ou apenas ficar ao lado, ouvindo com atenção e dando atenção. 

Na escola adorava ciências. Ficava fascinado ao aprender como o corpo humano funcionava, como o coração bombeava o sangue, como os pulmões enchiam de ar, como as plantas respiravam, como os peixes o faziam. Enquanto os colegas sonhavam em ser astronautas ou jogadores de futebol, dizia com firmeza:
- Eu quero ser médico.

No começo, alguns riam. “É muito difícil, São muitos anos de estudo e não te estou a ver ser eterno estudante”, diziam. Mas não se deixava abalar. Lia livros além do que a professora passava, pedia para visitar hospitais com o avô enfermeiro e ficava a imaginar como seria vestir uma bata branca.

Certo dia, um familiar passou mal na rua. Enquanto os adultos se assustavam, ele lembrou-se de algo que tinha lido nos primeiros socorros feitos na sede da Cruz Vermelha. Chamou ajuda rapidamente, manteve a calma e até conseguiu orientar para que deitassem o homem até a ambulância chegar. Todos ficaram impressionados com a sua atitude adulta e consciente.

Naquele dia, ele teve certeza de que sua vocação era real. Queria estudar, se dedicar e, no futuro, salvar vidas. Aquele dia e uma amiga depois fizeram dele um estudante brilhante e depois de umas derrapagens anteriores começou a trilhar o caminho do seu sonho: ser médico, não apenas para curar doenças, mas para levar esperança.

A vida deu voltas. Mudanças radicais. Separações abruptas, sonhos desfeitos, desejos cumpridos sem anos de falha depois.



Sanzalando

18 de agosto de 2025

amores imperfeitos

Na adolescência, eu acreditava que o amor vinha sempre como nas músicas da rádio: promessas infinitas em versos simples embrulhadas em melodias suaves. Mas encontrei, em vez disso, amores imperfeitos, tímidos, apressados, às vezes tão intensos quanto confusos. Guardava bilhetes amassados no bolso, versos rimados nas sebentas, e sempre silêncio dos olhos delas.

Eram amores que não sabia iam durar, mas sabia que me marcavam. No reflexo do espelho, via-se crescer entre as falhas e quedas o ar triste da morte por amor ao mesmo tempo que ia aprendendo que o coração também se constrói com feridas e arranhões.

Agora, adulto, recordo aqueles amores como se tivessem sido pequenos fogos de artifício: não iluminaram por muito tempo, mas deixaram no céu da memória um clarão impossível de esquecer.


Sanzalando

16 de agosto de 2025

O Salto da ponte que sempre conheci velha

Tinha para aí uns quinze anos e uma mania perigosa: achava que o mundo estava à espera de ver a minha coragem.

Naquela manhã de verão, diante da ponte velha, tábuas esburacadas e pilares carcomidos pelo mar e pelo tempo, todos os amigos olhavam-me à espera que eu desse o mergulho

- É alto demais… - murmurei sem pensar que alguém ia ouvir

Sorri, com aquele brilho nos olhos que misturava medo e desafio. Atirei o medo para trás das costas, corri, ainda hoje penso que de olhos fechados, e num bem calculado tempo lancei-me no ar.
O aplauso dos colegas foi escutado pelo vento e pelo meu pavor, depois, um mergulho limpo, água a saltar como se lá tivesse caído um barril, e silêncio. Os meus pés quase tocaram o fundo do mar.

Segundos depois, a cabeça emergiu, olhei para o que resta do tabuleiro da velha ponte. Ri-me, levantei o braço, e naquele instante parecia ter conquistado o mundo. Ouvi aplausos.
O resto da manhã, porém, passei o tempo a murmurar em silêncio que este miúdo nunca mais ia saltar da velha ponte e assim até hoje cumpro esse propósito.


Sanzalando

14 de agosto de 2025

envergonhada Clara

Clara era a funcionária mais pontual da pequena papelaria da rua das Hortas. Todos achavam que seu maior talento era saber exatamente onde ficava cada caneta extraviada e cada bloco de notas desaparecido, cada resma de papel, cada livro escondido.

Mas Clara tinha um segredo: à noite, na solidão da sua pequena casa, ela pintava. Não paisagens, nem retratos, mas universos inteiros em telas pequenas, feitas com retalhos de madeira que o vizinho carpinteiro propositadamente lhe deixava à porta. Usava tinta barata e pincéis tortos, mas de suas mãos saíam galáxias, mares impossíveis e florestas que pareciam respirar. E as queimadas?! 

Ninguém sabia, até que um dia, um cliente distraído esqueceu-se da carteira na loja. Clara correu atrás dele, mas, ao passar o degrau da porta, tropeçou, e um de seus quadros — que ela levava embrulhado para dar a uma amiga — caiu no chão. O cliente, ao ver, ficou paralisado:

- Onde comprou isto? - perguntou, segurando a tela como quem segura um pedaço de lua. Os seus olhos eram brilho mais brilhante que o da lua cheia.

Clara sorriu enquanto corava e envergonhada balbuciou:
- Eu… pintei.

Três semanas depois, houve uma pequena exposição no clube náutico da terra. Não foi um evento grandioso, mas ali, entre espaços vazios e mesas do último baile, o talento que Clara mantinha escondido brilhou como nunca.

E, pela primeira vez, ela percebeu que às vezes o que guardamos no escuro não precisa ser protegido, deve ser mostrado.



Sanzalando

Programa 80 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 13 de Agosto, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
É um programa de verão e verão que exercitamos a mente sem transpiração nem grande agitação
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica
Falou-se de Escritores e Poetas de Cabo Verde num texto fabuloso de REAT, tivemos Esta Música tem uma história, com Dino D'Santiago e Djonsinho Cabral de Os Tubarões numa colaboração de José Leite; não faltaram os Tesourinhos Musicais com os Ena Pá 2000, Mãos Vazias   Poema de Florbela Espanca com narração de Mundo Dos Poemas e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.

 

Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

sentei-me à beira do mar

Sentei-me à beira do mar, o sal da brisa secava-me os lábios e as gostas do seu rebentar refrescavam-me a alma. As ondas vinham e iam, como se respirassem ao mesmo ritmo que eu. Aos poucos, deixei que meus olhos se perdessem no horizonte e que os meus pensamentos fossem levados para lá do real. O som ritmado das águas transformou-se em vozes, e nelas ouvi histórias de marinheiros, amores que partiram e retornaram em silêncio, cidades submersas onde peixes nadavam entre janelas antigas.
Quando dei por mim, já não sabia se estava sentado na areia ou flutuando nas memórias que não eram minhas. O mar não me respondeu, apenas continuou a contar.


Sanzalando

12 de agosto de 2025

Fui no parque infantil

Naquele dia, o parque infantil era praticamente o centro do meu universo. O escorrega? Um escorrega gigante com um ressalto no meio assim para assustar o desatento. Dava para deslizar até a Lua. A minha lua de imaginação quando eu fazia acrobacias nos seus ferros até o Sr. Sousa me ruar dali para fora. Na verdade eu nem tinha muito jeito para aquilo e não  me importava com o ruar dali pois era mesmo para minha protecção. E o baloiço? Uma máquina voadora que, se o guarda, que era o Sr. Sousa, não tivesse mandado parar, já me teria levado direto para as nuvens ou estatelado na areia vermelha do parque infantil.

Eu estava muito ocupado a saborear o meu gelado de morango comprado na Cábula da esquina, que derretia mais rápido do que eu conseguia lamber, quando vi um grupo de crianças reunidas em círculo, algo enorme. Aproximei-me com cuidado (porque podia ser uma missão secreta), percebi que era uma luta de putos no ringue. Mas não era uma luta qualquer: era uma luta de amor!

Juntei-me à equipa sem pensar duas vezes. Começámos a ter claques que pareciam organizadas até que o Sr. Sousa apareceu e pôs um ponto final na coisa. Até que hoje me lembrei que não fiquei a saber quem era a donzela merecedora tal luta.

Estávamos a provocar a maior enchente da história do parque quando a minha mãe gritou: “Hora de ir embora!”. Suspirei, olhando para o todo o parque como um cientista interrompido no auge da descoberta.

Mas juro que, quando me virei para ir embora, tenho quase a certeza de que vi um bocadinho de areia escorregar sozinha atrás de mim e a me segurar.


Sanzalando

10 de agosto de 2025

"O Sol, o Mar e o Deserto"

O Sol acordou cedo e decidiu visitar os seus amigos. É, ele tem dias que fica comunicativo e até parece divertido, quer saber coisas, principalmente na estação quente, pois quando ele vem no comboio e sai na estação fria a gente quase nem o vê, embora sinta saudades dele.

Primeiro passou pelo Mar:

- Bom dia! - disse o Sol. - Vamos brincar?

- Claro! - respondeu o Mar, animado. - Mas se você ficar muito tempo, vou acabar por aquecer e cozinhar os peixinhos.
O Sol deu um clarão que parecia ia sorrir, entendeu e seguiu viagem.

Depois de passar a cidade encontrou o Deserto:
- E aí, vamos brincar? - perguntou o Sol.

- Bora nessa amigo Sol! - disse o Deserto. - Pode brilhar o quanto quiser. Aqui, todo mundo já é seco mesmo. 

O Sol achou o Deserto mais resistente e ficou lá o dia inteiro.

Resultado: o Mar continuou refrescante… e o Deserto ganhou mais um camelo reclamando do calor.

Moral da história: alguns amigos aguentam mais a sua “intensidade” — mas não abuse.


Sanzalando

9 de agosto de 2025

Bom Dia Mercado 3 - Rádio Portimão



Programa de Rádio feito no Mercado Municipal de Portimão






 





Sanzalando

8 de agosto de 2025

Quando o silêncio tem o tamanho do mundo

Há dores que não têm nome. Por mais que pensemos o silêncio permanece. Se fosse possível proibir acho era a única proibição que eu concordaria ser re-pensar.

Quando nasce um filho, a vida ganha uma nova geografia, todas as rotas, todos os caminhos passam a ir na direção dele. 

Quando ele parte, o mapa fica vazio. Não é apenas a ausência de uma pessoa. É a ausência de um futuro inteiro. É o silêncio da existência.

Dizem que o tempo cura. Mentira piedosa, que fazem o favor de nos consolar. O tempo, no máximo, ensina a respirar com um peso no peito. Ensina a sorrir sem culpa, mesmo que a saudade esteja sentada à mesa, todos os dias. Ensina a viver com a ferida aberta, mas coberta de um pano limpo, para não doer sempre à vista.

A morte de um filho é uma contradição. É contra a ordem natural das coisas. O mundo continua a girar, e isso parece quase uma ofensa. Há trânsito, há anúncios de perfumes na televisão, há vizinhos a falar de futebol. E tu, parado no meio de tudo, a tentar compreender como é que se continua sem teres a tua geografia completa, os teus caminhos apagados, as tuas rotas desviadas.

E, no entanto, continuamos. Não por força, mas por instinto. Continuamos porque há memórias que ainda brilham. Porque há risos gravados na pele, há cheiros guardados em roupas antigas, há frases que ficaram a ecoar no ouvido. Continuamos para manter vivo o que já não está aqui.

O amor que se sente por um filho não morre com ele. Transforma-se. Passa a ser feito de silêncio, de lembranças, de conversas que só acontecem dentro da cabeça. É um amor sem destinatário físico, mas que insiste em existir, porque não sabe fazer outra coisa.

Perder um filho é perder uma parte de si. Mas é também descobrir, no fundo da dor, que o amor é tão resistente que sobrevive à própria morte. E é nesse amor, ainda vivo, que se encontra a única forma possível de continuar.

Hoje fiquei triste ao ler uma notícia de morte com nome. Conhecia-o de criança. Revi adolescente e agora jovem adulto desaparece. A geografia dos pais está mudada. A minha está desfocada e despensada, porque custa pensar, custa imaginar. Quanto custa viver para acabar assim?



Sanzalando

Programa 79 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 06 de Agosto, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
É um programa de verão e verão que exercitamos a mente sem transpiração nem grande agitação
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica, Falou-se de Agostinho da Silva através das palavras de Alberto Carvalho, tivemos Esta Música tem uma história, com Sara Tavares - colaboração de José Leite; não faltaram os Tesourinhos Musicais com os Aqui D'El Rock, POEMA - E POR VEZES, David Mourão-Ferreira - na voz de Teresa Coutinho a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.

 

Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

Moçâmedes, Mar e março

Março chegou. Moçâmedes com o sal nos lábios e o vento quente sussurrando segredos antigos pelas dunas recebe os mapundeiros e afins. A cidade, de olhos voltados para o Atlântico, parecia conter a respiração todas as manhãs, esperando que o mar contasse algo novo ou talvez algo esquecido nas areia do deserto que se lhe opõem.

Maria, de pés descalços e vestido leve, caminhava pela beira-mar desde criança. Mas agora, aos dezoito, carregava uma inquietação que nem as ondas sabiam acalmar. Diziam que quem mergulhasse nas águas de Moçâmedes em março podia ouvir o que o coração mais queria dizer, mas não ousava porque temia a divulgação do seu segredo.

Naquela manhã, o céu se tingia de tons celestes. Maria entrou no mar sem pressa. A água, hoje até que morna e acolhedora, tirando pica-pica que dava comichão que nem areia servia de lixa, subia aos poucos como um abraço envolvendo o seu escultural corpo. Quando afundou, o mundo silenciou — e ali, entre o bater do coração e o sussurro das bolhas, ela ouviu.

"João."

Era a voz do marr. Era também a dela mesma.

Voltou à superfície com os olhos marejados, não de sal, mas de certeza. O mundo podia ser vasto, mas Moçâmedes era o começo de tudo.

E em março, o mar lhe respondeu e até hoje ela lhe procura, mesmo trazida no passo lento do reumatismo, na beira-mar que não esqueceu, o seu João, que nunca apareceu


Sanzalando

5 de agosto de 2025

Olhar-me de fora

Olhei na varanda. Ela não estava na varanda dela.
Sentei na cadeira de baloiço do meu avô e fiquei só assim a olhar num ponto imaginário. Os pensamentos estavam varridos e os olhos não viam, porque lá no ecran do cérebro tinha ficado fixado o retrato dela. Perguntei aos deuses porque eu era assim. O silêncio foi a resposta. 
Perguntei a mim mesmo se eu me conhecia ao ponto de me explicar porque eu ficava assim paralisado no lugar imaginativo dum futuro que não aconteceu? Porque eu não conhecia o futuro, essa coisa distante que ainda não aconteceu mas eu agora recordo como passado que eu tinha imaginado diferente.
Eu queria mesmo era acordar um dia e olhar-me de fora e ver a figurinha que fiz. 

Sanzalando

4 de agosto de 2025

Moçâmedes, 176 Anos — E Eu vivi!

Não vou nem discutir nem pôr à discussão o nome. A minha cidade, o meu recanto, não tem lá a minha placenta por contingências familiares, mas tem lá pedaços da pele dos meus joelhos, gotas do meu sangue perdido nas pedradas da saída da escola, tem gotas do meu suor nas ruas encaloradas do meu verão.

Parabéns, Moçâmedes!

São 176 anos de sol, sal e areia — e olha que eu apanhei boa parte disso tudo ainda com joelhos esfolados e chinelos derretidos, feitos de plástico de Macau ou de pneu lá para os lados do Forte ou na Torre do Tombo

Foi ali que eu cheguei de comboio ainda tinha dias de nascido nas terras do planalto, e por ali cresci e levei os primeiros calores a sério. Onde o vento do deserto batia nas pernas parecia agulhas a picar e o mar era tão bonito que até parecia mentira que ele às vezes se revoltava e galgava barreiras e inundava ruas e estradas. Aquele azul enganador que quando nele entrares e levares com aquela água gelada que te lembrava logo que era verdade.

Em Moçâmedes aprendi lições valiosas:

Que o vento podia roubar bonés, papéis da escola e até a vontade de sair de casa.

Que “passar calor” não é figura de estilo — é treino de resistência.

E que peixe fresco era mais comum que os congelados de agora.

As festas? Ah, memoráveis! Bastava umas barraquinhas, dois ou três carrosséis, cachorros quentes e um copo de Rosé, discoteca improvisada com vista para o pôr do sol mais bonito de África, não aceito debate nem contradição e festa estava montada.

Hoje, Moçâmedes faz 176 anos, e eu, que por lá andei nos meus anos mais trapalhões, deixo esta homenagem:
Obrigado por todas as estórias e pelos dias em que tudo o que havia pra fazer era viver e eu vivi. Obrigado por me teres ensinado o que era paixão, amizade e saudade

Moçâmedes, tu és aquela cidade que envelhece com a minha idade e com o teu vento porém não desapareces da minha saudade nem do meu pensamento



Sanzalando

3 de agosto de 2025

Moldando a memória

Sobem ruas as meninas de agora
Passos firmes que o futuro as decora
Com fones ao ouvido e a alma no peito
Carregam o mundo num andar perfeito

Olhos de fogo, unhas vermelhas
Riem do medo, dançam centelhas
As mochilas pesam mais que a escola
Mas logo se vê quando o coração descola

Elas vêm, sem pedir licença
Têm a pressa e a calma na mesma sentença
Elas vão, como quem já sabe
Que o tempo corre atrás de quem não cabe

Nas calçadas de pedra e asfalto
Desenham seus nomes em salto alto
Sonham longe, falam forte
Que nem o céu controla a sorte

Elas vêm, sem pedir licença
Têm a pressa e a calma na mesma sentença
Elas vão, como quem já sabe
Que o tempo corre atrás de quem não cabe

E se um dia o mundo pesar demais
Elas seguram o sol com as mãos
E seguem, como se a dor fosse jazz
Improviso entre os corações sãos

Elas vêm e vão deixando história
Meninas de agora, moldando a memória


Sanzalando

Areia, Sal e Silêncio, muita gente

Há um certo tipo de silêncio que só encontro na praia. Não é ausência de som, mas uma pausa do mundo, o burburinho abafado pelas ondas, os pensamentos dissolvidos no vai e vem da maré. Ir à praia é mais do que um passeio: é um reencontro com o essencial. Tem momentos que encontro os eus antigos, os amigos que partiram, as brincadeiras brincadas, as corridas sofridas na fuga dos medos.

Chegar cedo, quando o sol ainda hesita e a areia conserva o frio da madrugada, é um privilégio que não me calha muitas vezes. Sol forte, transpiração da caminhada e lá estou eu a espreguiçar-me à beira-mar, pés enterrados na areia húmida, enquanto o céu pintado de azul celeste me observa. É uma forma simples, poderosa mesmo, de começar de novo. Ali, cada respiração é mais funda. O tempo desacelera.

À volta, as pessoas também se transformam. Há menos pressa, menos exigência. Os telemóveis ficam esquecidos nas mochilas. As conversas ganham outra cadência. Até o corpo parece agradecer, espreguiçando-se entre o sol e a água salgada, libertando-se das tensões da cidade, dos e-mails não lidos, das notícias que pesam.

O mar, com sua força constante, lembra-nos que tudo passa. Uma onda vem, outra vai. E no meio disso, há um instante, talvez e apensas só um, em que se percebe: estar ali, sem fazer nada, é fazer tudo. É viver.

Há quem diga que ir à praia é fuga. Talvez. Mas não é de responsabilidades que fugimos, e sim da pressa de viver sem sentir. Na praia, aprende-se o valor da pausa. A beleza do inútil. A arte de simplesmente estar.

No fim do dia, o sal fica na pele, e a alma, mais leve. Leva-se areia nos pés e paz nos ombros. E quando se volta para casa, talvez nada tenha mudado, exceto por dentro.

E isso, afinal, é tudo para além das muitas recordações que eu tenho de uma outra praia, de uma outra gente, de um outro modo de olhar, inocente, curioso e intenso




Sanzalando

1 de agosto de 2025

Meus retalhos 38

Cheiro a álcool. Cheiro a betadine ou iodopovidona para não fazer publicidade a ninguém. Era sinal que eu ia calçar luvas, concentração máxima, bisturi na mão e corte e costura. Todas eram a cirurgia mais importante da minha vida. As passadas que correram bem não me vinham à memória. As que correram mais ou menos estavam sempre a vir à superfície mental. As que correram mesmo mal essas não saiam nem para dormir. Mas a mais importante era sempre aquela, a daquele instante. O bisturi é um instrumento cortante, afiado e sem personalidade própria mas por vezes parecia querer ser independente. 
Na verdade a vida daquele paciente estava agora na ponta do meu bisturi. Eu posso cortar alguém. Bem, é claro. Mas às vezes a minha confiança vacilava. Eu previa o futuro por instantes. Antecipava-o. Um erro, um tremelique, uma distracção, um momento de loucura e lá se ia o meu passado e o futuro de quem estava deitado. 
As luzes da sala quase sempre eram insuficientes. Ninguém conseguia ver o medo que eu sentia. A plateia, adormecida, não ia dizer um ai ou resmungar. Os meus neurónios ferviam na febre do medo. Era a cirurgia mais importante. Aquela, que fizera centenas semelhantes. Mas aquela ali era o instante. 
- E se me dá alguma coisa?
pergunta calada na retórica de um ser consciente.
Fechava os olhos, pedia silêncio e actuava. O medo estava lá mesmo que eu não deixasse entrar em mim. Naquela não. Eu era teimoso, mas acho ele era mais que eu.
Suspirava, inspirava. Bufava, resmungava no meu silêncio e calado continuava a pôr cá fora o meu mau feitio, como então me diziam. 
Bisturi sem tremor, arma feita ferramenta. Actuava. Era a mais importante para mim, aquele momento.
Hoje, passados dois anos e quatro meses, ainda sinto o medo que não deixava entrar em mim, ainda guardo o silêncio das memórias que não apago, que não se afastam e que me sacodem nos instantes dos meus silêncios.
Afinal de contas, o medo era uma visita constante que não se afasta da responsabilidade



Sanzalando