Eu já estava em Luanda há seis meses, mas ainda não sabia ao certo como descrever a cidade. Do 12º andar do consultório, via a baía com a sua curva quase perfeita, os prédios de vidro refletindo o sol como se fossem promessa de modernidade. Mas, se baixasse os olhos um pouco mais, avistava telhados de zinco amontoados, becos sem pavimento e ruas de poeira vermelha. Era como olhar duas cidades sobrepostas, que fingiam coexistir sem se tocar.
De manhã, chegava ao trabalho de carro com motorista. No trajeto, o ar-condicionado abafava os ruídos da rua, mas não o suficiente para esconder os gritos dos cobradores dos candongueiros, nem o batuque improvisado de miúdos que pediam esmola nos semáforos. Ao parar num engarrafamento, via pela janela uma mulher equilibrando uma bacia de peixe seco na cabeça, oferecendo mercadoria sob o sol escaldante. Ao lado dela, um menino limpava os vidros de carros de luxo, talvez esperando uma nota estrangeira esquecida na carteira de algum expatriado distraído.
No almoço, comia no restaurante mais que habitual e com assinatura mensal, onde uma refeição custava o equivalente ao salário mensal de muitos. Os colegas angolanos, sempre cordiais, riam, mas também comentavam baixinho: “O patrão paga, porque aqui o preço não é para nós.” Nunca percebi se era brincadeira ou desabafo. Talvez fosse os dois. Claro, era o dono da Clínica que tinha feito o contrato. Que sabia eu de mais que isso?
Numa tarde, fui visitar um paciente que morava no musseque. Quer dizer, rodeado de musseque, blindado por muros altos e guardas à porta. Saí do carro e caminhei um pouco por ruas sem asfalto, entre casas de blocos, inacabadas, roupas penduradas em linhas improvisadas e crianças que corriam descalças atrás de uma bola de trapos. Não havia água canalizada, mas havia música — sempre música — que saía das colunas enferrujadas. O paciente recebeu-me com um sorriso largo, uma reprimenda por ter feito aquele pedaço a pé e ofereceu-me funge com molho de peixe e disse: “Aqui falta tudo, mas esta gente ainda ri.”
Naquela noite, de volta ao apartamento moderno, com gerador privado e vista para o mar, abri a janela. A brisa trazia o cheiro do sal, mas também um eco distante de vozes, gargalhadas e batuques que vinham do outro lado da cidade.
Foi então que entendi: Luanda não era uma cidade para ser compreendida; era para ser sentida. Um lugar onde luxo e carência caminhavam lado a lado, onde o brilho do vidro nunca conseguia apagar a resistência que florescia entre os telhados de zinco.
Sem comentários:
Enviar um comentário