Programas K'arranca às Quartas no Blog

31 de julho de 2025

Cunene livre para o mar

E de tanta fotografia ter visto, eu que nunca fui mais a sul que Tombwa, me apeteceu contar uma estória, só assim de brincar, porque ouvi querem construir barragem nele. 

Welu era uma menina que morava perto do rio Cunene, um rio grande e brilhante que corre entre Angola e Namíbia. Ele simplesmente faz fatia do deserto. Ela adorava brincar na beira do rio, pulando nas pedras e ouvindo o barulhinho da água correndo. Disseram que mais para trás tem as quedas do Ruacaná, mas ele brinca ali, nas pedras que o rio levou a areia.

Um dia, enquanto jogava pedrinhas na água, Welu ouviu uma voz bem baixinha:
- Weluuu... Weluuu...

Ela olhou para os lados. Não havia ninguém. Só o rio.

- Quem está aí? — perguntou, com os olhos bem abertos e cara de susto falecido.

- Sou eu, o rio Cunene! — disse a voz, com um som de água cantando, parece chora também.

Welu ficou espantada. Um rio que fala? Que coisa mais estranha e maravilhosa!

- Você está triste, rio? — perguntou ela.

- Um pouquinho... — respondeu o Cunene. — Algumas pessoas querem me prender com muros grandes, e isso assusta os peixinhos e os passarinhos que vivem comigo.

Welu pensou, pensou, e teve uma ideia:

- Eu posso te ajudar! Vou contar para todo mundo como você é especial!

No dia seguinte, Welu foi até na escola e contou a sua aventura. Desenhou o rio, os peixes, os hipopótamos e até a voz misteriosa que vinha das águas. Todos os colegas ficaram encantados!

A professora adorou tanto a história que pediu para as crianças escreverem cartinhas para o rio Cunene. Welu entregou todas as cartas ao vento, e elas voaram dançando sobre as águas.

O rio respondeu com um brilho forte sob o sol e um barulhinho alegre de correnteza.

Desde então, Welu e o Cunene viraram grandes amigos. E dizem que, se você ficar bem quietinho na beira do rio, pode ouvir ele sussurrando:
- Obrigado por escutar a passagem livre das minhas águas...



Sanzalando

Programa 78 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 30 de Julho, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica, Falou-se de José João Craveirinha, tivemos Esta Música tem uma história, com Márcia e JP Simões - colaboração de José Leite; não faltaram os Tesourinhos Musicais com Roberto Carlos, POEMA Viscoso Pregão de  GOCIANTE PATISSA na voz de Domingas Monteiro a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.

 

Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

29 de julho de 2025

passeando para lá de mim

Estava sentado pertinho da Fortaleza de São Fernando, ali na falésia a olhar para lá da minha imaginação. Rebolar daqui até lá abaixo não ia ser agradável para além de me sujar de areia parece pó de arros amarelada. Se eu tivesse asas coava e me ia sentar na marginal mais pertinho do mar. Mas eu ainda não sabia que já tinham inventado a asa delta pelo que fiquei só mesmo ali a olhar para dentro. 
Daqui não consigo ver o estaleiro pelo que deve ser longe para perder os meus passos até lá. No outro lado tem o porto e está um barco a descarregar, pelo menos é o que me parece pelo movimento do guindaste. Mas se for ao contrário também não fico chateado porque tanto me faz. Eu olho e eu vejo, o resto é informação perdida. 
Levantei-me e sempre paralelo à falésia comecei a caminhar em direcção à Torre do Tombo. Os meus avós me disseram que já lá moravam e o meu tio disse que jogou hóquei em campo no Ginásio. Outros tempos que não são os meus. Ginásio para mim é rebita de sábado à noite. Vou só lá, pode ser o meu tio-avô Mário esteja à janela e me dê uma gasosa. Se não tiver também não faz mal, dou a volta, passo na 56, desço pela rua dos Chalupas, como um gelado no Lã e venho para casa que já deve ser hora de lanchar.
Cheguei na subida da SOS, olhei lá para baixo e pensei que se desço também terei que subir e desmotivei. Fui mesmo passar na 56. Na casa do Lã eu bem que tentei cravar um gelado e só quando disse que o tio Walter ia lá pagar depois é que me deram. Acham que puto ia andar com dinheiro no bolso assim? Adultos complicados. Comi o sorvete enquanto descia a rua e os Grades não estavam na varanda. Só o senhor Sopapo estava. Me perguntou se estava bem e eu lhe disse que sim. Eu estou sempre bem. Esses adultos é que às vezes costumam ficar doentes. Na casa do Sr. Martins entrei e gamei dois figos pingo de mel e o Velho Domingos não me viu pois se calhar eu ia ter de sair dali a correr e era coisa que não me apetecia. Em silêncio sai, virei e fui para casa. A avó perguntou:
- Queres lanchar?
- Claro que sim. - disse eu que estava à espera desde a hora do almoço

Sanzalando

28 de julho de 2025

Fui na Aguada comer caranguejo

Quando o sol começou a baixar e o calor da estrada arrefeceu, segui na minha bicicleta sem travões tradicionais, pois travava com a sola do sapato, fui até na Aguada saborear um dos famosos caranguejos das hortas, esses seres discretos, de casca acobreada e passos ritmados, que saem das dunas e mangues não para com, mas para contar o tempo de serem apanhados.

Daquele ponto antigo, onde os navegantes, me disseram, iam os navegantes se abastecer de água e os pescadores ainda contam as marés como os velhos contam os dias, havia estórias que eu tinha ouvido nos meus ouvidos atentos, mas nunca tinha saboreado nas minhas papilas gustativas. Uma que eu me lembro ter ouvido era mais ou menos só assim, os caranguejos das hortas não eram animais comuns. Cada um carrega uma hora do dia nas costas. Se os seguires, saberás o que o tempo tem a dizer.

Nesse entardecer resolvi esperar. Sentei-me nas pedras junto à praia e fiquei quieto, como se fosse também uma parte da paisagem. O vento soprava-me histórias do mar, e o cheiro de sal e peixe seco invadia tudo. Foi quando viu o primeiro caranguejo.

Ele andava diferente dos outros: não fugia, não se escondia. Andava em círculos lentos, como se marcasse segundos na areia. Nas costas, eu jurava ver um símbolo, como o ponteiro de um relógio parado às cinco e vinte.

Logo vieram outros, em fila, com passos calculados. Um com a hora do meio-dia desenhada no casco, outro com a meia-noite ou era irmão gémeo daquele. Contei doze ao todo, um para cada hora viva do dia. Cada um movia-se com uma graça única: o das seis da manhã saltava ágil como quem desperta o mundo; o das três da tarde bocejava e arrastava as patas como quem sofre o calor do dia. O das duas da madrugada quase não se via, pois vinha coberto de sombras.

Fui seguindo os caranguejos até uma poça secreta entre rochas. Ali, eles se reuniam e trocavam brilhos pelos olhos. E foi ali que o tempo parou.

Por alguns minutos, ou talvez horas, tudo silenciou: o mar ficou imóvel, as gaivotas suspensas no céu, o vento calado. Olhei para as minhas próprias mãos e vi que nelas se desenhava a areia como um relógio de sol. Eu agora sabia: os caranguejos não marcavam o tempo. Eles guardavam os segredos das horas que a gente esquece de viver.

Quando voltei pra casa, já era noite, a bicicleta sem luzes, a mãe preocupada e eu com medo do tempo que esqueci viver. Pedalei com todas as forças que tinha e senti que tinha vivido todos os tempos de uma só vez. 

Na manhã seguinte, o meu tio, homem de sair à noite e ir na rebita, pouco contador das suas estórias mas culto nas estórias dos outros me olhou nos olhos e sorriu quando me perguntou:

“Então tu também viste os guardiões do tempo de Moçâmedes.”

Desde então, nunca mais me preocupei com o relógio. Aprendi a escutar o som das marés, a seguir os passos lentos dos caranguejos, e a viver cada hora como se fosse única. 

E nunca comi um caranguejo das hortas.



Sanzalando

24 de julho de 2025

Fui ao Forte de Santa Rita matar saudades

O vento do mar ainda sabia meu nome. Pelo menos eu acho que ele sabe pois lhe ouvi dizer para eu ir lá para lá do cemitério visitar o padre Vaz.

Voltei ao Forte de Santa Rita depois de tantos anos, Faz para aí uns cinquenta ou sessenta que ele partiu em direcção ao patrão dele. Fui como quem retorna a um sonho antigo, rever a velha igreja por dentro e as primeiras casas de chapa que eu vi desde que passei a frequentar o cemitério todos os domingos.

Na praia as pedras da marginal gastas pelas ondas ainda guardavam o cheiro da infância, do sal e das promessas que fiz a mim mesmo sentado no parapeito, vendo o horizonte se afogar no entardecer, quando as ouvi pedir para ir ver o Forte de Santa Rita.

As paredes acinzentadas do cimento frio a precisar de repintura, me fizeram lembrar o padre Vaz e o seu velho citroen de chapa frágil.

O forte cresceu que até vou dizer ficou maior que a cidade propriamente dita

Lá, naquele mesmo canto onde costumávamos correr as corridas de corta mato, ainda ecoava o riso da minha irmã, quando eu lhe dizia que um dia ainda eu ia ganhar uma. Acho nunca dei mais que uma volta das três programadas e ela tinha razão.

Sentei, fechei os olhos. Agora tem amigos novos nestas bandas. São poetas. São Ancestrais. Gente boa existe.

Naquele instante, compreendi: não fui ao forte apenas matar saudades. Fui para reencontrá-las. E deixar que elas me abraçassem de volta.


Sanzalando

Programa 77 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 23 de Julho, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica, Falou-se, com a colaboração de Anabela Quelhas de Saga de um Pensador de Augusto Cury, tivemos Esta Música tem uma história, com marisa Monte e a canção Ainda Bem - colaboração de José Leite; não faltaram os Tesourinhos Musicais com Os Kiezos de Angola, POEMA - Quando vier a primavera, Alberto Caeiro dito por Valdemar Santos e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.

 

Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

Sai de casa e voltei três dias depois

Sai de casa só para ir até à esplanada da Oásis. Como sempre bebi o meu café e comi o meu pastel de nata. Naquele tempo, eu usava calções e sandálias feitas de pneu careca dum carro de alguém e tiras de câmara de ar e que me disseram se chamavam nonkacos e não sandálias, mas sendo eu da cidade fica-me bem dizer sandálias.

Ainda não tinham inventado o telemóvel e as chamadas passavam sempre pelos CTT e eram pagas e para minha carteira vou dizer eram caríssimas. O meu cabelo bagunçado, comprido, escorridamente liso e quase sempre por pentear num risca ao lado com pinta e claro está, sem chave de casa no bolso. Eu achava que voltaria para casa em dez minutos que poderiam ser meia-hora.

Na esplanada encontrei os do costume. Moreira, Reis, Xico de Olhão, Zé Pedro e Zé da Fisga, Figueiras, Luís, Victor que por acaso era irmão do Zé da Fisga. Não me lembro se alguém fazia anos. Mas isso desimporta para o caso, pois a gente comemorava sempre qualquer coisa mesmo que nada houvesse. O nada também era comemorado. 

- Vamos beber café a Sá da Bandeira? Juro que deslembradamente não sei de quem era a voz. Cortina, Seat e Hondas 750 se fizeram à estrada. Assim do nada havia uma viagem a ser feita. 

Para mim três dias se passaram como se o tempo tivesse derretido.  Alta noitada no Arco Íris. Rimos de histórias antigas, enterramos mágoas velhas, bebemos uns copos e uns fizeram-se à estrada de regresso quando o sol rasgava o horizonte num acordar preguiçoso. Eu fiquei. Dormi na casa de família, dizendo claro que tinha chegado nessa madrugada e não na véspera, e que tudo estava bem. Não tinha boleia de volta. Não tinha dinheiro no bolso e a estação de comboios não vendia bilhete fiado. Os tios e amigos da esquina amarela lá fizeram uma coleta e pagaram o bilhete a quem esteve três dias com a mesma roupa vestida, apesar de tomar o seu infalível banho diário.

Quando voltei, a porta de casa estava do mesmo jeito. A mãe me olhou como que à espera de uma explicação. Lhe olhei admirado e disse:

- Mãe, deu-me uma saudade assim de repetente que fui à casa do avô só para dar um beijinho grande nele.

Ela devolveu o olhar como que a dizer-me, batote ou olho para o lado? Olhou para o lado e eu nunca soube se ela sabia o que tinha acontecido e de facto eu soube que tinha acontecido uma coisa muito grave. Eu sei que nunca mais fiz essa pirueta e nunca mais deixei de voltar para casa antes das 24 horas terem passado.

Às vezes é preciso sair sem destino pra lembrar quem se é. E, com sorte, reencontrar o caminho de volta.



Sanzalando

22 de julho de 2025

A Rádio, Eu e a Voz

Eu fazia rádio quando era adolescente. Mas não era dessas transmissões clandestinas de fundo de quintal ou fingir fazia, era rádio de verdade. Frequência FM e AM, antena no alto para lá da Escola Industrial. Claro que era uma rádio citadina, ou do mato, como me dirá um amigo meu um dia destes. Eu fazia programa com tudo, daquelas em que metade da audiência era feita de parentes forçados a ouvir, mas ainda assim… era oficial. Acho nunca vi estatística. Mas era o melhor programa, pelo menos para mim

Meu programa ia para o ar aos domingos de manhã, no horário em que todos os adolescentes normais estavam a dormir ou já tinham ido para a praia. Chamava-se "Camaradagem!", e ninguém sabia porquê. Acho só eu sabia e sei. E vou ficar assim. 

Fui locutor, sonoplasta, editor e, às vezes, produtor musical, nas noites clandestinas de gravação de música. Uma vez, liguei o microfone por engano enquanto cantava o António Mourão o seu Ó tempo Volta para trás e eu cantarolei. Recebi duas ligações de ouvintes elogiando minha “voz de estar calado” de directores que, pelos vistos, não gostaram.

A cereja do bolo foi quando o Sr. Velin, 'dono' do emissor, porque todos os dias era ele que ligava e desligava, virou meu comentadora fixo sem querer. Toda vez que ele passava pelo estúdio, eu puxava conversa e durante uns cinco minutos aquilo ia para o ar. E ele não sabia. Ele tinha opiniões fortes sobre tudo: política, futebol, e até do tempo ele falava. Não se zangou comigo e continuou a fazer de que não sabia. Até que aquilo deu torto e me calaram dos Domingos de manhã.

No fim das contas, eu aprendi mais sobre gente e improviso ali do que em qualquer outro sítio. E mesmo que a audiência fosse pequena, pelo menos era fiel. Minha avó nunca perdia um programa e acho que a minha mãe também não, porque ela me ligava para lá logo que o programa acabava. 

E eu gostava mesmo daquilo.


Sanzalando

21 de julho de 2025

À Beira do Abismo

O sol ainda não tinha acordado completamente por detrás das serras quando pus os pés na borda da Tundavala. O vento ali sopra diferente, muito diferente do vento do deserto, não como uma brisa carregado de alfinetes de areia, mas como um sussurro antigo, trazendo histórias do abismo, contos e estórias de mais tempo que o tempo que tenho..

A paisagem abriu-se diante de mim como uma pintura viva: a falésia rasgava a terra num corte profundo, e o mundo se estendia em silêncio até onde a vista cansava. Por um momento, juro que foi um instante, eu ouvi a serra a se rasgar e senti que podia cair, não de medo, mas de admiração e espanto. Acho o tempo parou para me deixar olhar.

Fechei os olhos. Ouvi os gritos das aves, o murmúrio das folhas, e talvez, quem sabe, um eco distante da minha própria alma, respondendo à chamada da imensidão que os meus olhos mentais imaginaram..

Voltei dali diferente. A Tundavala não é só um lugar, é o meu espelho do infinito.



Sanzalando

18 de julho de 2025

palavras e parágrafo solto

Me sento só assim por sentar. Caneta na mão, comecei por desenhar. Desgostei. Não tinha forma nem interpretação. Eram riscos apenas. Segurei a caneta e desenhei uma letra, como fazia o meu avô. Gostei embora não fosse igual à dele. Tentei outras. Li-as. Perfeitas, porem não eram caligrafia. Eram apenas letras escritas. Repensei. Escrevi uma frase. Fazia sentido. Dei corpo e fiz um parágrafo. Pareceu-me bem. Guardei o papel. Talvez um dia volte a pegar neste papel e se as palavras se sentirem felizes eu talvez consiga escrever o que me vai na alma. Até lá, este papel vai ficar guardado, só porque sim.


Sanzalando

17 de julho de 2025

fui visitar o quartel tuga

O sol do Namibe batia seco e direto, como se me quisesse arrancar a pele queimando-a. O velho quartel português ainda resistia, encardido de tempo e no silêncio. As paredes estaladas, cobertas de poeira vermelha, guardavam mais do que tijolos — guardavam ecos. Que estórias ali terão acontecido? Que nomes por ali passaram.

Fui entrando devagar, como quem pisa solo sagrado. O cheiro de ferrugem e terra quente trouxe-me ao pensamento um nome apenas, Joaquim, soldado da metrópole, enviado para Angola num ano qualquer. Podia ser Manuel, Silva ou tro qualquer mas eu fiquei no Joaquim. Nas paredes do refeitório abandonado, o tempo estava congelado e imaginei vê-lo ali sentado. Numa parede, rabiscado a carvão, li ou imaginei que li qualquer coisas assim "Joaquim 14/03 Se eu morrer, digam à Rosa que sorri até ao fim". Quis confirmar mas desencontrei as letras. Acho foi só a minha imaginação que fez ler uma frase que ali não estava. Ou terá sido uma insolação que me fez delirar? Parei no meio da parada. O mesmo nome não me saia da cabeça. As paredes falaram comigo de certeza quase absoluta. Não com som, mas com presenças. Ali, no silêncio estalado do quartel, encontrei algo mais profundo que qualquer fotografia: o rastro da esperança no meio da guerra.

Sorri. Sai do quartel com o coração mais cheio do que quando entrei. E, no céu do Namibe, uma brisa quente pareceu dizer:

— A Rosa soube.


Sanzalando

Programa 76 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 16 de Julho, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica, três escritores, Filipa Amorim, Lourenço Seruya e Bruno Franco foram entrevistados ou conversados a quando da sua passagem pela Feira de Livros de Portimão, tivemos Esta Música tem uma história, com os GNR e a música Eu não sou Assim - colaboração de José Leite; não faltaram os Tesourinhos Musicais com Paula Ribas, o poema Namoro de Viriato da Cruz dito por Domingas Monteiro, tivemos Microfone Livre com o Poeta dos Mortos Ancestrais e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.

o som está muito melhor

 

Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

15 de julho de 2025

Passeei no deserto

Passeei no deserto. Sozinho. Fui de burra, bicicleta ou chica até no velho estaleiro do Guerra que fez a estrada deserto fora. Para mim era muito longe, enquanto hoje eu ia dizer que fui só até ali.  Era já deserto dentro e agora é quase no meio da cidade. Outros olhos e novos pensares. O vento soprava em remoinhos suaves, levantando pequenos véus de areia que dançavam à minha frente como se tivessem vontade própria. O calor ondulava no horizonte que até parecia eram lagoas, e o céu, azul sem mácula, parecia indiferente à minha presença. E foi aí, no silêncio vasto e antigo, que comecei a pensar. Longe de casa, pernas cansadas, pensei devagar.

A primeira coisa que me veio à cabeça foi o tempo. No deserto, ele não tem pressa. As dunas mudam, sim, mas numa paciência milenar, não porque eu tivesse visto mas todos me diziam. Na cidade os segundos correm como cães soltos atrás dos burras que até faz dar pontapés no ar, aqui os segundos rastejam como serpentes, calmos, seguros de que não precisam chegar a lugar algum. Eles se gastam sem sair do tempo.

Pensei depois na solidão. No deserto, ela não pesa, ela abraça. Diferente da solidão das salas cheias de gente, esta é honesta, quase reconfortante. Aqui, não é preciso disfarçar quem se é. Ninguém está a olhar. Nem sequer o próprio deserto. Ele simplesmente existe, como uma verdade que não precisa de ser provada. Eu ali era mesmo eu. Magro, perna estreita a começar a ter pelos, cicatrizes nos joelhos, cabelo grande despenteadamente solto na brisa, sonhador de sonhos desamarrados. Era eru no mesmo intimo de gente.

E pensei ainda na procura. Todos procuramos algo, um sentido, uma resposta, um nome. Mas no deserto percebi que talvez a resposta seja justamente a procura. Talvez o vazio que tanto medo nos causa, seja afinal, o espaço onde tudo pode acontecer. Desencontrei resposta directa por muito que tenha procurado.

A areia escorria por entre os meus dedos como as certezas que eu já tive. Percebi que não saber também é um caminho. E que, às vezes, é preciso perder-me para me encontrar. Sabendo quem sou, o que queria e onde estava, olhei-me incerto e deixei-me assim estar até que um futuro me ia dizer que passado eu tive.

Quando o sol começou a descer, pintando o céu de fogo e sangue, sentei-me na burra, bicicleta ou chica e respirei fundo quando comecei a pedalar para casa.

Pelo caminho pensei que passeei no deserto a pensar. E talvez nunca tenha pensado tão bem.



Sanzalando

10 de julho de 2025

Cheguei ao Porto 15 e não sei se acabo aqui

Eu não era dado a grandes passeios. Vindo da cidade pequena os meus limites eram areia e mar. No Porto eu estava perdido, enclausurado na liberdade toda que tinha.
A zona da Ribeira era marcada por actividades portuárias e por uma degradação urbana. Ainda assim, já havia o encanto das casas coloridas encavalitadas umas nas outras e os barcos rabelos, quase sempre os vi parados, carregando pipas de vinho do Porto, não eram para passeios turísticos. As esplanadas eram tão poucas que poucos eram os turísticas, eram lugares simples, frequentados por moradores e trabalhadores e um ou outro estudante em dia de folga ou de comemoração de qualquer coisa, após receber a bolsa de estudo.
A Avenida dos Aliados já era o coração da cidade, mas o trânsito era intenso e o ambiente, menos polido que hoje. Os cafés, como o Café Majestic, mantinham a aura Belle Époque, mas eram sobretudo frequentados pelos portuenses, não por turistas. Eu entrei olhei e não frequentei pois tinha medo de não ter estatuto para tanto.
Os tróleis e os electricos ainda funcionava e circulavam. Passear neles era uma experiência autêntica, com janelas de madeira, bancos rijos e o tilintar característico descendo a Avenida da Boavista. Era um passeio para manhã de domingo quando o tempo permitia.
O comércio tradicional dominava: mercearias, retrosarias, lojas de ferragens, alfaiates e confeitarias. Será que havia pastelarias? Não me lembro e nem vou vasculhar. Locais como o Bolhão fervilhavam de vendedores e freguesas carregando cestas e muitos palavrões à mistura.
Nos anos 1980, muitos edifícios estavam em mau estado de conservação, sobretudo no centro histórico.
Mas afinal de contas eu estava ali para estudar, talvez namorar. Este ponto tenho marcado no esquecimento que até parece que não o vivi. Coisas da idade!
A francesinha já era um clássico para os dias de festa, de comemoração ou simplesmente para matar a fome naqueles domingos em que a carteira ainda não chorava de vazia,  ou então comer uma boa tripas à moda do Porto ou  com um fino fazia parte do clássico festim.
Mas relembro que eu estava no Porto apenas para estudar. Sorte sorte foi ter os meus mecenas em cada amigo que tive naqueles anos enclausurado na minha liberdade estudantil.


Sanzalando

Programa 75 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 09 de Julho, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica, Pedro Chagas Freitas foi entrevistado ou conversámos(?), tivemos Esta Música tem uma história, Tozé Brito e Paulo de Carvalho em Olha entáo como estás? - colaboração de José Leite; não faltaram os Tesourinhos Musicais com o Rock de Os Demónos Negros de Luís Jardim, tivemos a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira bem como o poema - Apresentação de Cecília Meireles

o som está muito melhor

 

Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

8 de julho de 2025

divagação

Aprendi a viver com a solidão, a abraçá-la como uma velha amiga, a encontrar consolo no seu silêncio.
Mas depois, assim num vazio apareceste, deixei de lado a solidão e ter-te como companhia. Sequei as lágrimas, afastei saudades, pintei em cores  novos sonhos e assobiei canções que talvez tenha ouvido na adolescência. 
Ouço o mar, ouço vozes que falam na cidade, ouço crianças que cantam, ouço vida. 

Sanzalando

7 de julho de 2025

Milagrei um sonho

Na praia das miragens, olhei-a como quem olha algo que talvez nunca tenha existido. Era fim de manhã, a luz era intensa e brisa espalhava areias que pareciam pó de um outro tempo. Nem mesmo eu sabia muito bem onde começava o mar e acabava a imaginação, naquela praia tudo se confundia.

Ela estava ali, parada, tão real que chegava a doer. Talvez fosse só uma projeção de saudade. Talvez fosse apenas o reflexo do que eu precisava ver. Dizem que a praia das miragens devolve ao visitante aquilo que ele mais teme ou mais deseja. Eu não tinha decidido em qual desses extremos me encontrava.

O silêncio era tão pesado quanto a nostalgia. Havia gaivotas, mas não havia som. O horizonte tremeluzia como se fosse feito de vidro quente. E ali, entre a espuma e o vazio, estava ela, a menina que tantas vezes me visitou em sonhos e que, agora, parecia querer ganhar carne e voz.

Fiquei parado, sem coragem de avançar. Às vezes, é mais seguro contemplar de longe aquilo que nos arde no peito. Porque, se chegarmos perto demais, corremos o risco de descobrir que não passa de miragem.

E talvez seja melhor assim: deixar que a praia guarde os seus fantasmas e que cada um de nós conserve o consolo da ilusão. Foi assim que passeei na Praia das Miragens e milagrei um sonho que até neste agora não sei se foi real. 


Sanzalando

5 de julho de 2025

Cidade + - Programa de Rádio fez-se em directo da Feira do Livro de Portimão




Programa de Rádio feito em directo da Feira do Livro em Portimão 
 Programa das Quintas-feiras em directo. Pode re-ouvir agora aqui, tal qual foi





Sanzalando

2 de julho de 2025

Programa 74 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 02 de Julho, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
Ouça com atenção e pense ( o som ainda não recuperou do apagão de 28 de Abril pelo que peço desculpa)
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica, Fátima Lopes falou dos seus livros, ele mesmo, tivemos Esta Música tem uma história, com Paulo Gonzo e Ana Carolina e Nós os Dois - colaboração de José Leite; não faltaram os Tesourinhos Musicais com o Rock de Raul Seixas, tivemos a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira bem como o poema - Mãezinha de António Gedeão

 

Tudo imperdível, menos a qualidade do som.
Mesmo assim vale a pena

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

Ser amigo é

Ser amigo é estar quando ninguém mais fica. É saber ler nos silêncios, o que as palavras não dão conta de contar. Há quem pense que amizade é só riso fácil, fotografias nas rede sociais, histórias partilhadas que se tornam grandes entre grupos. E é também tudo isso. Mas, sobretudo, ser amigo é abraçar a parte feia do outro, o mau humor, as crises, os dias em que a vida parece um quarto desarrumado que ninguém tem forças para arrumar.

Ser amigo é ouvir o mesmo desabafo cem vezes e ainda assim perguntar: “Queres falar de novo sobre isso?” É ter paciência para as repetições e carinho para as incoerências. Amigo é quem vê o teu lado mais frágil e não usa isso contra ti. Pelo contrário, usa isso para te proteger, para te lembrar que és humano, que não tens de ser perfeito.

Ser amigo é aparecer sem convite quando tudo desaba, e também saber desaparecer quando é preciso espaço. É reconhecer limites. É compreender sem julgar. É rir até doer a barriga, mas também chorar junto quando a vida aperta.

Na pressa dos dias, esquecemos o valor de uma amizade honesta. Achamos que amigos são garantidos, que estarão sempre ali. E, às vezes, só percebemos o quanto precisamos deles quando a solidão nos faz companhia.

Ser amigo é dizer a verdade que ninguém quer ouvir, mas fazê-lo com cuidado. É incentivar sonhos, mesmo quando parecem descabidos. É guardar segredos como quem guarda um pedaço do outro.

Ser amigo é, em última análise, um pacto silencioso de lealdade. Uma forma de amar que dispensa contratos. Uma promessa que se renova a cada abraço, cada conversa, cada silêncio partilhado.

E talvez seja isso: ser amigo é escolher o outro, todos os dias, mesmo quando a vida convida ao afastamento. É permanecer.




Sanzalando

1 de julho de 2025

Cheguei ao Porto 14.... que não sei se acabou

Se eu falei da aula de Medicina Legal, do Professor Pinto da Costa, já de currículo feito, me lembrei que também falei com um professor que estava a começar a sua carreia. Acho ele tinha regressado do estrangeiro e era o primeiro ano dele.

Eu era um jovem aluno de medicina, cheio de curiosidade e receios, quando o Professor Sobrinho Simões, o filho, que não tinha a voz do pai, mas tinha uma simpatia que até fazia descontrair, dava os primeiros passos na sua carreira de professor. Recordo-me bem daquele entusiasmo contagiante que ele trazia para cada aula. Tinha o olhar atento de quem queria não apenas ensinar, mas também aprender connosco.

Numa época em que a medicina ainda não se transformava rapidamente, ele já mostrava uma dedicação exemplar ao estudo e ao rigor científico, mas também uma proximidade humana que nos fazia sentir parte de algo importante. Para nós, alunos, era inspirador ver alguém tão jovem e ao mesmo tempo tão determinado a abrir caminho no ensino e na investigação. A vida dele parecia estar dentro de um microscópio porque sempre o vi ao lado ou a espreitar num.

Ao longo do tempo, fui percebendo que a paixão pelo conhecimento e o compromisso com os doentes que ele transmitia seriam exemplos que ficariam comigo. Hoje, ao recordar esses primeiros anos, sinto gratidão por ter testemunhado o início de uma carreira que haveria de marcar gerações. E o Professor Maia, sim, aquele que não teve tempo para tirar a carta de condução porque ia perder tempo de estudo? Ele sabia isso e mais aquilo que eu nunca tinha nem imaginado. Não posso fazer aqui uma lista porque ia ser só elogios e alguns até que podiam falhar porque simplesmente esqueci.

E como é que está a vida nocturna agora? Naquele meu tempo não tinha. Tirando a Japonesa que nas noites de calor nos dava música até quase de madrugada eu desconhecia mais coisas. Também a guita não dava para essas coisas que há agora, se é que havia naquele tempo.



Sanzalando