Programas K'arranca às Quartas no Blog

31 de outubro de 2025

a minha cidade

O sol escaldante batia-me no rosto enquanto os meus olhos percorriam o horizonte infinito de dunas. Autentico mar de areia dourada. O mapa antigo e amarelado, enigmático achado na casa do seu avô, se calhar desenhado por um qualquer antepassado, falava de um lugar que muitos consideravam uma lenda: Mossamedes. Eu, que nunca tive um espírito aventureiro, nem nada me preparou para a vastidão dourada que se estendia à minha frente.

Dias de caminhada sob o céu implacável tinham testado a minha resiliência. As noites traziam consigo um manto de estrelas tão brilhantes que pareciam perfurar a escuridão, e o silêncio era tão profundo que a minha própria respiração parecia fazer eco nas dunas. Foi numa dessas madrugadas frias, que uma silhueta começou a surgir através da névoa que chamavam de aurora. Era a hora do romper dela.

Não era um oásis, nem uma miragem. Era a cidade. Casas num quadriculado, de cores variadas mas predominava o branco da cal. Algumas era feitas de um arenito dourado que parecia brilhar com luz própria, erguiam-se majestosamente do deserto. Ao aproximar-me, notei os intricados relevos esculpidos nas paredes, contando histórias de um povo que o mar e o sol. Não havia sinais de vida. Mossamedes era uma cidade fantasma, preservada pelo tempo e pela areia.

Atravessei os portões da cidade, que rangeram suavemente ao toque. As ruas, julgo eu, outrora movimentadas, estavam agora desertas, cobertas por uma fina camada de areia. Mas a cada passo, a cidade parecia sussurrar. Murais desbotados adornavam as paredes das casas, mostrando figuras elegantes em vestes fluídas, dançando e celebrando o sol dourado e o mar azul. Parecia que a vida tinha parado de repente, congelada no tempo.

Ao chegar à praça central, um enorme obelisco apontava para o céu. No centro da praça, havia uma fonte seca que no mapa tinha desenhada uma foca, que por acaso me parecia um leão marinho, um estranho contraste com o ambiente desértico. Ao tocar na base do obelisco, um suave brilho pulsou sob a minha mão, e um murmúrio quase inaudível ecoou. Não eram palavras, mas uma sensação, uma história de água que outrora corria abundantemente, e de um povo que amava a vida e a arte.

Passei o resto do dia a explorar as ruas e a rever a sua arquitectura bem como visitei o mercado vazio, o palácio e a igreja, sentindo a aura de uma civilização grandiosa que tinha sido erguida pelos meus antepassados e outros que tais. No final da tarde, enquanto o sol pintava o céu com tons de laranja subi ao topo da torre do tombo. Lá de cima, a vista era espetacular: Mossamedes estendia-se à volta de uma baía, como se mergulhasse  num silencioso monumento de glória e mistério.

Com o coração cheio de admiração e uma nova compreensão do passado, agora sabia que a vida de Mossamedes não era apenas uma aventura, mas uma descoberta de uma parte esquecida do mundo e, de certa forma, de mim mesmo. O mapa do seu avô não o tinha levado a um tesouro de ouro, mas a algo muito mais valioso: a uma história e seus habitantes.

Sanzalando

30 de outubro de 2025

um dia

Um dia, um alguém parecido comigo, porém mais velho, no cabelo e na ausência dele, nas rugas não disfarçadas que o tempo esculpiu, te vai aparecer e te vai prometer cuidar como nunca foi capaz de te cuidar. Te vai dar conselhos, de mais velho, te vai abraçar em abraços de calor e protecção. Não te vai dar lições de moral, nem de história e nem vai te estórias de embalar ou enganar. Te vai segurar a tua mão na sua tremula mão e se calhar te vai perguntar tantas coisas e nem vai te dar tempo de responderes. Perguntas atiradas porque estiveram reprimidas dentro dele e num acto de liberdade vão sair em turbilhão. 
Algum dia, o mais velho, vai beber contigo um café amargo para evitar doces, te vai fazer rir para evitar lágrimas e te vai cantar canções de amor feliz para não adormeceres.
Vais ver que esse mais velho vai te dizer que sempre esteve contigo, mesmo quando era impossível o veres, porque ele estava longe do corpo físico, a pensar no seu modo de viver, encastelado na sua forma de servir os outros e se esqueceu dele mesmo. 
Ele vai-te dizer que nunca mais vai deixar o corpo vagabundear longe do espírito e nem o vice-versa irá acontecer
Depois, de tudo este tremor de terra, esse mais velho vai repousar, sentar ao teu lado só para te ouvir, sem te interromper e até que os olhos se fechem te vai sussurrar que sempre foste a vida dele..


Sanzalando

Programa 91 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 29 de Outubro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
Hoje fizemos um programa especial, apesar de todos os K'arranca às Quartas o serem. 
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica ou Coluna ou seja lá o que fôr sobre "o não falar política, religião e futebol" assim como Crónica Extra sobre "Outubro e o mês Rosa"
Falei da poesia de António Agostinho Neto e Sagrada Esperança com o Poema Havemos de Voltar; Esta Música tem uma história, com o tema Queda do Império de Vitorino, numa colaboração de José Leite; 
não faltaram os Tesourinhos Musicais hoje com Agnaldo Timóteo, 
A MÃE E A IRMÃ - POEMA DE ANA PAULA TAVARES  - CAMINHOS DA LITERATURA
e e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.

O K'arranca às Quartas é um programa para ouvir com ouvidos de pensar
e o tema, sempre o tema de ouvir para pensar



Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

28 de outubro de 2025

agradeço

Há 69 anos, aí por volta das 16 horas, o Benfica ganhou por um a zero ao Sporting. Foi um jogo renhido, desses que ainda hoje se contam nas mesas de café, com as mãos a desenhar os lances no ar. Nesse tempo o jogo era desenhado através da voz dos relatos da rádio. Dizem que nesse dia o sol brilhou, pelo menos para o meu pai que era vermelho de sangue e tudo o mais. 

Acho nesse dia não chovia como chove hoje. Mas como posso eu saber se eu nasci nesse dia?! 

Estava longe, muito longe, guardado em algum canto deste mundo redondo. Quando finalmente nasci, foi com um valente berro, um choro que não precisou de palmada e foi um som tão decidido que a parteira disse: “Este vai fazer-se ouvir!”. E fez-se. Fiz-me.

Agora, tantos anos depois, gargalho com vontade. Gargalho da vida, dos dias de chuva e dos dias de sol, das vitórias do Benfica e das sua derrotas que também ensinam, porque não vou em futebóis nem de outras cores.

Gargalho porque aprendi que cada riso é um golo no tempo, um um-a-zero contra o silêncio e contra a solidão. Rir faz-me bem, faço-o bem porque contagio.

E enquanto a chuva cai lá fora, penso nesse jogo antigo, nesse choro primeiro, e neste riso que ainda me empurra para a frente, como quem corre pela ala até ao fim do campo e vejo quem perdeu um tempinho para rir comigo.

Sanzalando

27 de outubro de 2025

O dia em que fui tirar fotos na Foto Pop


Era uma tarde de quarta-feira. Apenas porque sim, pois tanto podia ter sido segunda como sexta. Aquele tipo de dia em que o tédio e a vaidade se encontram no meio do caminho. Eu tinha decidido que precisava de novas fotos. afinal, a última vez que eu tinha tirado uma era para entrada do Liceu, com o dente torto e o cabelo ralado como quem tinha tido uma praga.
Então lá fui eu, todo aprumado, rumo à Foto Pop. era sempre no Rotiv mas eu gostava de ser do contra fui na Foto Pop que era do Bauleth mas quem trabalhava era o Helder. Se não era assim faz de conta que era porque o peso do tempo embaciou a memória e a sua turvação já não deixa ver para lá de alguns cacimbos.

Entrei fingindo naturalidade e à vontade, como se eu tirasse fotos profissionais todas semanas. O Helder me perguntou:
- Vais querer com fundo azul, branco? - ou será que não perguntou nada porque as fotos eram a preto e branco?
Eu, querendo parecer moderno, escolhi o cinzento claro.
Erro número um.

O Helder era um senhor novinho mas que já parecia ter visto de tudo. Ele me olhou, pediu pra eu endireitar o ombro, e disse o clássico:
- Agora dá um sorriso natural.
Natural? Como assim? Eu já estava tenso, suado e a tentar decidir se sorria com os dentes ou sem eles a se verem. Como é que é natural? Tem sorriso que é cara de paisagem que se vê nos calendários das oficinas? Mas ele pensa que é quê, realizador de cinema ou fotógrafo de capa de revista??
Resultado: na primeira foto, fiquei parecido com um fantasma.

Na segunda, fechei os olhos bem na hora do flash.

Na terceira, não me lembro o que é que aconteceu mas ele não gostou.

E na quarta… milagre! Saí bem! Pelo menos eu achei.

Esperei uma hora, peguei o envelope com as fotos e saí da loja com a sensação de ter feito algo importante. No caminho para casa abri para conferir e foi aí que percebi o verdadeiro terror: meu “sorriso natural” parecia uma careta de quem acabou de dar uma trinca num limão.

Cheguei a casa e, claro, mostrei para a minha mãe.
Ela olhou e disse:
— Ah, mas estás tão lindo! Só estás com o pescoço meio torto. - fiquei assim sem saber se chorar ou rir.
Mesmo assim, guardei as fotos, no estilo se precisar estarão aqui mas espero me esquecer.

Na verdade esqueci.

Hoje, no último dia dos 68, abro o envelope, que já está meio amarelo, mas continua lá com a seis fotografias, sinal que esqueci durante anos e hoje, quando reencontro aquele envelope amarelado, não tem jeito, eu rio.

Porque ali tá tudo: o cabelo desobedientemente empastado, o sorriso incerto, a vontade de ser alguém e o charme involuntário da adolescência.

A verdade é que, no fundo eu hoje digo que não fui na Foto Pop tirar fotografias, fui lá para mais tarde ela me revelar fases da gente que já nem sabíamos que existir
am.


Sanzalando

26 de outubro de 2025

Faz 49 anos que não a vejo. Se a visse hoje?


Talvez não a reconhecesse. Ou talvez a reconhecesse antes mesmo de terminar de lhe olhar. Um gesto da cabeça, o modo solto do cabelo, a pausa entre palavras ou outra coisa qualquer.

Há coisas que o tempo não apaga, apenas cobre com poeira fina, assim parece penugem de tempo.

Lembro dela na luz do fim da tarde, o sol a atravessar o quintalão que nos separava, o ar distraído da varanda onde nos víamos diariamente. Disse que voltava logo. Nunca mais voltou.

Durante anos, sonhei. Depois, aprendi a esquecer o tempo. Ou pensei que tinha aprendido.

Hoje, ao atravessar a rua, vi uma mulher de cabelos prateados, sentada no banco do passeio, a olhar os pombos. Senti o coração tropeçar numa pirueta seguida de estatelado e admiração conjunta..

E se fosse ela?

Não fui até lá.

Há encontros que só fazem sentido enquanto permanecem possíveis.


Sanzalando

25 de outubro de 2025

e ela disse que não

Eu tinha se calhar uns 15 anos e a autoconfiança de um pão duro e seco. Estou a falar de memória porque os anos que atropelaram o acontecimento são mais que uma tonelada deles.
Mas um dia, decidi que iria me declarar a ela, a garota mais linda que o meus olhos tinham visto e o meu coração borboletara que nem ataque de amor súbito e dona do sorriso que fazia que fazia lembrar o famoso quadro guardado lá no Louvre de Paris, que fica em França e não a do Texas que eu vim num cinema.

Como era no século passado eu resolvi fazer do jeito moderno: serenata cantada com o fervor da balada, que só por mero acaso era protestativa mas eu não sabia. Nem o dono da viola nem os donos da voz. Era só linda e ela merecia, aos meus olhos pelo menos.
Eu achei que foi perfeito.

Tudo decorria como o que tinha sido planeado. Primeira música eram os Vampiros, segunda o venham, mais cinco. A terceira não houve porque o pai dela veio na janela e correu com a gente.

Eu tinha a certeza que com esta cena toda ela se apaixonaria instantaneamente, se é que já não estava.

Passaram-se alguns dias, as minhas mãos suavam, o meu coração batia a mil, ou pouco menos que não parei para contar, e lhe comecei a falar, primeiro da serenata que mais parecia ter sido um Concerto de baladeiros de tantos que nós éramos, depois falei-lhe do meu amor. Mas acho aquilo parecia um plágio de qualquer aula de português com os versos de Camões.

E ela disse que não. Redondo e taxativo. O teto veio a baixo, o chão fugiu dos pés e o piano mental desafinou de tal forma que nunca mais foi a nenhum concerto. Desencantei-me até que ao dia que fiz um backup, coisa moderna de dizer que esqueci numa pen drive dum canto do cérebro.


Sanzalando

24 de outubro de 2025

Manual prático do observador de pôr do sol (para amadores e sonhadores profissionais)

Há quem diga que observar o pôr do sol é uma experiência mística, quase transcendental. Eu digo que é uma atividade de risco: o risco de parecer poético enquanto se luta contra mosquitos e se tenta encontrar ângulo sem postes de eletricidade, sem prédios ou outros artefactos no enquadramento da foto.

Tudo começa com a ideia romântica: “Hoje vou ver o pôr do sol.” É uma frase que soa simples, mas que exige logística militar. Primeiro, é preciso decidir o local. Praia? Miradouro? Varanda do prédio? (Este último só funciona se o vizinho não tiver pendurado lençóis cor-de-rosa a secar).

Chegado o momento, lá está o sol, um profissional disciplinado, descendo no horário combinado e que foi confirmado no Borda D'Água. E nós, um grupo de humanos emocionados, munidos de telemóveis erguidos como oferendas tecnológicas ao astro-rei. Mentalmente solta-se um “Uau!” a cada cinco segundos, como se o sol precisasse de incentivo: “Força, estás quase a pôr-te!”

E há sempre o fotógrafo de um grupo — aquele que insiste em dizer: “Não se mexam, está perfeito!” — segundos antes de perceber que o dedo tapou a lente. Enquanto isso, os casais trocam olhares melosos, os solteiros fingem contemplar o horizonte com profundidade filosófica e as gaivotas passam no momento exato em que o sol toca o mar, apenas para estragar o vídeo com um grito estridente.

Mas o verdadeiro espetáculo começa depois: o instante em que o sol desaparece e todos fingem que não estão desiludidos. Porque, sejamos sinceros, esperávamos mais — talvez uma salva de palmas cósmica, um clarão final, ou pelo menos um aplauso coletivo. Em vez disso, resta o crepúsculo e um friozinho desconfortável. Não há encore.

E, no regresso, inevitavelmente, alguém diz: “Devíamos fazer isto mais vezes.” Mentira piedosa. O próximo pôr do sol será visto do sofá, refletido no écran da televisão durante o noticiário e ao sabor do calorzinho da lareira.

Mas não faz mal. A beleza do pôr do sol não está em vê-lo — está em sabermos que ele acontece todos os dias, quer estejamos lá ou não. E, com sorte, sem mosquitos.



Sanzalando

Programa 90 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 22 de Outubro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
Hoje fizemos um programa especial, apesar de todos os K'arranca às Quartas o serem. 
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica ou Coluna ou seja lá o que fôr: levar as crianças à escola
Falei da poesia de Viriato da Cruz, numa colaboração com João Portelinha da Silva; Esta Música tem uma história, com o tema Na Ri Na de Lura, numa colaboração de José Leite; 
não faltaram os Tesourinhos Musicais hoje com Agnaldo Timóteo, 
Da Janela Do Meu Quarto ...  Poema de Plácido De Oliveira com narração de Mundo Dos Poemas
e e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.

O K'arranca às Quartas é um programa para ouvir com ouvidos de pensar



Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

Os Livros do caixote de madeira

Se calhar não tinha feito os 12 anos e vivia em uma cidade pequena e na minha casa tinha um caixote enorme onde estavam monte de livros, que a minha mãe dizia eram proibidos. Ela os tinha posto quando o meu pai fora para outro plano. 

Ela nunca me tinha dito que ler fazia mal, mas tinha gente que dizia que ler fazia as pessoas pensar demais — e pensar, naquele tempo, era perigoso.

As escolas ensinavam o necessário: contas simples, regras e a história oficial, repetida como um refrão. As bibliotecas tinham virado depósitos vazios, e quem fosse pegar um livro podia ser levado para a mal. Os livros escolares eram para dividir orações e saber significados, não eram para serem lidos ou interpretados. 

Mas sempre senti curiosidade pelo que, um dia, ajudado por um vizinho resolvi tirar uns pregos ao caixote e cada um tirou um livro. Calhou-me o Advogado do Diabo e a ele se bem me lembro calhou O Livro das Cinco Mil Palavras.

O coração dele disparou. Um livro de verdade com tantas palavras só podia ser com repetições. Gargalhámos e cada um foi para sua casa ler para depois comentar e se valesse a pena trocar..

Comecei a ler às escondidas, à noite, não fosse a minha mãe descobrir que eu tinha aberto o caixote. Aquelas palavras pareciam mágicas, Morris West mostrava-me que a bondade e a fé podem existir em pessoas comuns e que o julgamento humano, mesmo quando feito pela Igreja, nunca é completo. O “advogado do diabo”, no fim, descobre mais sobre a misericórdia e a fragilidade humana do que sobre o pecado. Aquelas palavras falavam-me de liberdade, de amor, de mundos diferentes. Cada página era um sopro de vida num lugar sufocado pelo silêncio. 10 dias e o livro estava lido. 

O Rui, fascinado pela filosofia chinesa me disse que a principal mensagem é que há uma sabedoria mais profunda que não se conquista pela força, pelo desejo de dominação ou pelo ego.

Com o tempo, fomos descobrir mais livros, sempre tirados ao acaso. 

Eu queria saber mais sobre aquele caixote. De vez em quando atirava perguntas à minha mãe. Ela desviava, atirava respostas vagas. Mas sempre me dizia para não falar a ninguém daquele caixote.. Afinal de contas só o Rui e eu é que sabíamos dele e lá fomos tirando e pondo os livros lidos. Um dia, o Rui caiu de cima do caixote. Chorámos os dois mas ele é que partiu o braço. Eu voltei a pregar o caixote e depois do Rui vir para casa com o gesso posto decidimos não voltar aquele lugar. Eles, dentro do caixote, são a memória do que lemos.

Prometi proteger aquele tesouro. Aos poucos, reaberto o caixote, comecei a copiar partes dos livros em cadernos, a ensinar outras pessoas de confiança e a espalhar as palavras escondidas pelos muros da cidade.

Um dia, alguém pintou em letras grandes:
“Ler é lembrar que somos livres.”

Ninguém sabia quem tinha escrito, mas, num qualquer lugar, eu sorria no escuro, segurando firme o seu livro que já não era proibido.


Sanzalando

21 de outubro de 2025

a caminhada

Era um sábado de manhã, e o sol ainda acordava preguiçoso lá para o lado das hortas. Eu, 15 anos feitos ou mal desfeitos, decidi sair para caminhar, sozinho, pela primeira vez, eu queria ir nas salinas. Peguei um saco, coloquei um cantil de água e o meu velho e inseparável boné dentro dele assim como uma fatia de pão que era de ontem e tinha sido comprado no João Padeiro.

O perto de casa, parei para pensar se eu tinha a certeza que queria caminhar. Não, às vezes a gente tem assim um impulso mas depois se vai arrepender. E antes que fosse tarde eu parei para decidir. Não, eu vou caminhar. Logo na esquina dos Fonsecas virei e fui avenida fora até que passei no velho campo de futebol e aí, perto do matadouro o asfalto deu lugar a uma estradinha de terra que passava por entre árvores e passarinhos que cantavam. 

No início, eu andava rápido, tentando chegar “num algum lugar” que ia imaginado em progressão. Me lembro que foi Café Avenida, depois Estação dos caminhos de Ferro, e no campo da bola e matadouro e agora só me lembrava do Mamede e depois da Sófrio, Quipola, ponte do Rio Bero e estava nas salinas.

Mas, com o tempo, o silêncio da natureza foi vencendo o meu silêncio. Era os passarinhos depois do Matadouro, eram outros ao longo da linda dos caminhos de ferro. Às vezes era só o barulho da brisa nas árvores, só com o barulho do vento e dos galhos.

A princípio cada passo parecia leve, diferente do peso que sentia quando entrei em caminhos que eu desconhecia de andar assim a pé. A caminhada virou mais do que um exercício, virou teste e respiração ofegante.

Na Casa dos rapazes eu pensei voltar atrás. Sentei-me num tronco e pensei que o Padre Cristóvão me daria boleia de volta a casa. Olhei em frente e as árvores e o perfume do rio me chamaram. Levantei-me e continuei. O sol já tinha nascido, a aurora já tinha sido rasgada e eu pus o boné na cabeça não fosse escaldar-me para lá dos pensamentos.

Ali, entendi que crescer não era só fazer anos ou tirar boas notas. Era aprender a andar sozinho, mesmo que o caminho fosse incerto e eu me sentisse inseguro. Ao chegar à ponte parei na cancela, olhei-a a todo o comprimento e decidi não a travessar. E se viesse o comboio? E um carro? Olhando para o rio até que ela me pareceu mais alta do que as vezes que passei no comboio. Não. Termino aqui a minha longa caminhada.

Quando voltei pra casa, o sol já estava alto. A mãe perguntou onde tinha ido.
— Caminhar — respondi.
— E achaste o que procuravas? atirou ela como se percebesse a minha descoberta
Pensou por um instante, sorri e disse:
— Acho que sim. Achei um pouco mais de mim.



Sanzalando

20 de outubro de 2025

O que me sobra das palavras

Eu queria ser escritor. Desses que dominam o silêncio e o transformam em frases, desses que fazem o papel respirar. Desses que nos levam ao céu ou nos atrapalham na terra.

Mas de todas as vezes que tento, o texto me escapa,  como se as palavras tivessem vergonha de mim. Como se elas entupissem de nevoeiro o meu cérebro

Começo bonito: Era uma vez... Mas já tentei de mil outras formas
E logo depois, nada. Um deserto de ideias, seco e branco como a página, como o deserto da minha adolescência que era dourado mas muito seco de verdes ideais.

Eu olho para ela,  a folha, o écran, tanto faz, e sinto que ela me encara de volta, esperando algo que nunca vai lá chegar.
Mas eu não tenho nada a oferecer além de vontade. E vontade, descobri, não é tinta, não é palavra nem frase.

Já tentei imitar os grandes. Copiei estilos, ritmos, até a pontuação.
Mas o que saía era um eco, um espelho rachado do que não sou.
Porque, talvez, ser escritor não seja saber escrever, seja não conseguir viver sem tentar.

Então continuo.
Escrevo torto, errado, confuso. Escrevo a minha biografia diária, mesmo sem palavras.
Escrevo com medo, com raiva, com esperança, com alegria ou só palavras sem sentido
E quando releio, ainda acho mau. 
Mas há um instante — pequeno, invisível — em que alguma frase parece me entender.
E nesse instante, sou escritor.

Mesmo que ninguém leia.
Mesmo que eu não o saiba ser.



Sanzalando

19 de outubro de 2025

Eu e o Mar

O mar sempre me esperou, mesmo quando eu o esquecia.

Hoje, sentado na areia fria, sinto que ele respira comigo, um sopro salgado que entra e sai, como se estivéssemos ligados por um mesmo pulmão.

As ondas vêm, batem, recuam. E em cada vai e vem, parecem-me ensinar o que é partir sem realmente se ir embora.
O mar não guarda rancor. Engole, devolve, apaga. Enraivece, acalma, sem dar importância. Indiferente.
E eu, que tantas vezes quis ser firme como a rocha, descubro que talvez o segredo seja ser como a água desse mar. Indiferente.

Fico ali até o sol ir embora. Quando a linha do horizonte se deixa de ver, percebo: não há fronteira entre o mar e o céu, entre o eu e o mar.
Só o movimento — eterno, paciente — de quem aprende a ser e a se perder, ao mesmo tempo.


Sanzalando

18 de outubro de 2025

Bom Dia Mercado 08



Programa de Rádio feito no Mercado Municipal de Portimão - 18 de Outubro de 2025
Uma alegria ter a rádio em directo. Mercado super Cheio e nós cheios de coisas boas. 
Ouça-nos e visite-nos



Ouça em diferido o directo de hoje
Muito bom de ouvir. Sirva-se


 





Sanzalando

16 de outubro de 2025

A Estória do Eu Saltitão

Era uma vez um Eu chamado simplesmente de Eu, que morava num lugar bem fresquinho.

Todas as manhã acordava e dizia:
- Bom dia, sol! enquanto levantava os braços para o céu.
E o sol respondia-lhe com um brilho aparentemente mais alegre.

O Eu gostava pular! Saltava e corria ou corria a saltar ou simplesmente saltava. Feliz
Ele pulava na areia… plóft! 
Pulava na beira do mar e chapinhava a água… plash! 
Pulava até brincando com a própria sombra! 

Um dia, ele encontrou um Amor Quase Perfeito que passou por ali a voar, como os amores de verão sabem voar.
- Oi, linda! Vamos brincar de quem é mais feliz?
O Amor Quase Perfeito deu voltinhas no ar e o Eu pulou, pulou, pulou…
Mas nunca a alcançou!

De tanto saltar, o Eu ficou cansado e deitou-se à beira mar.
O Amor Quase Perfeito pousou perto dele dele e disse:
- Não precisas voar para ser feliz. Saltas como ninguém! Sê tu.

E o Eu soltou uma gargalhada e disse:
- É mesmo! 

E desde então, todas as manhãs, o Eu salta feliz, o sol brilha, e o Amor Quase Perfeito dança no ar.



Sanzalando

Programa 89 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 15 de Outubro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
Hoje fizemos um programa especial, apesar de todos os K'arranca às Quartas o serem. 
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica ou Coluna ou seja lá o que fôr: envelhecer com mais ou menos rugas
Falei da poesia de Viriato da Cruz, numa colaboração com João Portelinha da Silva; Esta Música tem uma história, com o tema Coisa mais Linda de João Gilberto, numa colaboração de José Leite; 
não faltaram os Tesourinhos Musicais hoje com o primeiro EP de Marco Paulo, 
POESIA -  José Luis Tavares - Lição de Urbanismo   Poesia Cabo-Verde
e e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.



Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

14 de outubro de 2025

O eco da máquina de escrever

Na verdade não faço a mínima ideia, mas desde pequeno que idealizei o filme e para mim esse é o verdadeiro, é a realidade e não mais fruto da capacidade imaginativa da criança que um dia eu fui. O meu pai era jornalista. Me disseram que para lá de boa pessoa era também bom no que fazia. Pois então como vou eu fazer se quando ele partiu eu tinha apenas 4 anos? Criei um filme, montado cena a cena, tal qual as palavras que me foram dizendo. Ele escrevia à mão ou à maquina? Não tenho ninguém para perguntar, mas eu vi nos filmes que os jornalistas escrevem à máquina, ele escreve à maquina e está feito. 

Depois, cena a cena, eu o vejo todas as manhãs a fazer aquele matraquear de quem escreve palavra a palavra um texto que para mim era enorme. Imagino o tamanho da máquina, não pequena como as da minha adolescência, mas as enormes do tempo dele. Os dedos inquietos e olhar atento à imaginação ele ia transformando um qualquer silêncio em informação, sabendo que tinha que captar os olhos que lhe iam ler.

Era bonito ter a colecção de jornais com as palavras que ele escrevia. Mas desconsegui.

Fica só a imaginação de 65 anos passados. E porquê hoje, porque hoje me sentei frente a uma máquina de escrever da era de agora e me lembrei de rever o filme!


Sanzalando

10 de outubro de 2025

eu livro

Antigamente eu era adolescente. É, para quem não pensa eu já fui adolescente. 

Tinha o coração apressado, os sonhos grandes demais para caber no bolso e a mania de achar que o mundo me devia alguma coisa.
Ria alto, chorava fácil, e acreditava que cada pôr do sol escondia um segredo só meu.

Eu me lembro das tardes vazias que pareciam eternas, das músicas que me faziam acreditar que a vida era um filme e eu, o protagonista.
As amizades vinham e iam como as ondas do mar, mas sempre deixavam conchas: lembranças pequenas, que ainda guardo.

Depois eu cresci.

Descobri que a vida não é um filme perfeito, mas um livro em constante reescrita, em várias formas de ser lido e revisto. Às vezes apetece rasgar aquela página, mas o livro sem ela não era o livro que é.
Aprendi que o amor não é sempre fogo de artifício, às vezes é só uma chama que se inquieta e que quase se apaga numa pequena brisa e que tudo bem, continua assim.

Ainda tenho medos, ainda me perco, ainda sonho.
Mas agora sei sorrir por dentro.

Porque, no fim das contas, crescer não é deixar de ser quem fui, é carregar comigo o adolescente que acreditava em tudo, só que agora com um pouco mais de calma e sabedoria.

E mesmo depois de tanto tempo, continuo a sorrir.
Por tudo que vivi, e por tudo que ainda vem.

Se eu tivesse rasgado alguma folha, se tivesse queimado alguns capítulos, este livro que sou era só capa e contracapa, vazio de letras, de sonhos, de esperanças e fundamentalmente, era um livro triste.


Sanzalando

9 de outubro de 2025

desmemorizado e desimaginado

Tudo começou, vou dizer ao acaso, numa terça-feira, porque é aquele dia da semana que não tem a dignidade da segunda nem a esperança de estar perto da sexta.
Estava eu, sentado a pensar, quase a atingir o nível histórico de escrever uma estória por diaorgulho da minha carreira digital, quando aconteceu o impensável: não me vinha nada à memória.

Literalmente.
Piscaram as luzinhas na barriga, tossi um bocadinho e... silêncio mental.
Sem imaginação.
Até parecia estava sem vida.

MÃÃÃE! morri!!!! - gritei como se fosse uma tragédia nacional. Ninguém me ouviu!
Mantive-me sentado, ar de pensar e pensei que deveria ser um minuto de silêncio da minha memória.
Mas o silêncio mental permanecia para lá dos minutos eternos que sofri

Encolhi os ombros e foi fazer sandes. Talvez as luzes na barriga fossem sinal de fome. A tosse não me tirou o ar e nem deu para ficar sem oxigénio na cabeça.
Mas porque eu havia de fazer uma sandes? Como se fazer sandes fosse uma resposta aceitável quando a civilização mental colapsa.

Sem memória nem imaginação, tive de fazer algo que a minha geração raramente faz: pensar mais.

Olhei à volta e reparei que a casa tinha... livros. Livros reais! Com páginas e tudo. Nas páginas havia palavras. Eu consegui ver nexo naquele labirinto de letras seguidas.
Peguei num, cheirei. Os livros têm cheiro, sabias? Abri e comecei a ler.
E juro que, não sei como dizer isto, até foi giro.
Mas não digas a ninguém, por favor. Ler sabe bem. Não contes a ninguém pois pode também desaparecer esse dom de ler livros. A minha mãe dizia para eu não contar os meus desejos para não entrar areia na engrenagem e estragar tudo. Desabafo só para mim.

Entretanto, tocaram à porta e era um amigo que decidiu que era o momento ideal para me desafiar para um jogo de tabuleiro.
- Dominó? — perguntou-me com um sorriso diabólico.
Aceitei apesar de ter que interromper o acto de ler.
Duas horas depois, eu tinha perdido mais vezes do que qualquer governo conhecido numa guerra. Nem a memória nem a imaginação tinham regressado, eu ainda discutia que jogos tinha mal perdido.

Quando finalmente a memória e a imaginação voltaram, largámos tudo e corri, como se um fosse o milagre do século para o computador, escrever.

Não me apetecia estar ali na solidão com ideias fervilhadas... e eu percebi que, de alguma forma, até tinha sido bom desligar por um bocado. Mantive-me desligado. Levantei-me, voltei a pegar no livro, olhei o marcador e pensei que trabalheira que teriam tido para escrever aquelas letras que eu tinha esquecido de ler.

Mas claro, não contei isto a ninguém.
Disse só: “a pior tarde da minha vida”.
Mentira descarada.
Foi das melhores.



Sanzalando

Programa 88 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 8 de Outubro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
Hoje fizemos um programa especial, apesar de todos os K'arranca às Quartas o serem. 
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica e foi o tempo da Criança é para brincar.
Falei do Livro de Ponto através das palavras de Anabela Quelhas; Esta Música tem uma história, com o tema Se Te Amo da Quinta Do Bill, numa colaboração de José Leite; 
não faltaram os Tesourinhos Musicais Victor Gomes e Gatos Negros, 
POESIA - Ausência -  Poema de  Vinícius de Moraes - voz Maria Gabriela
e e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.



Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

7 de outubro de 2025

na noite que amanheceu

Havia, numa cidade perdida entre o deserto e o mar, escondida por uma enorme baía, onde as raras nuvens pareciam descansar nos meus ombros. Nessa cidade vivia eu e mais uma dezena de milhar de gente, nunca contei, mas havia uma menina de olhos curiosos e passos silenciosos que eu amava perdidamente. Todos diziam que ela tinha nascido durante o último nascer do sol que houvera, pois, desde aquele dia, o Sol nunca mais amanhecera ali. Pelo menos para mim.

As noites eram eternas, silenciosas, doridas. Eu vivia à luz das trevas, outros viviam à luz das lanternas e das estrelas, que pareciam se cansar de brilhar nas noites longas da insónia.

Mas eu acreditava que o amanhecer não tinha desaparecido, apenas se tinha escondido na paixão da minha existência..

Certa noite, subi a falésia, no seu ponto mais alto mais alto, levando comigo uma lanterna feita com vidro e carregada de esperança. Lá no topo, encontrei uma pedra onde me sentei e não sei de onde veio uma voz que me disse:

- O amanhecer dorme no coração de quem ainda acredita nele.

Então destapei a lanterna e ela não tinha luz, mas estava carregada de coragem. Como se fosse um sopro,  saiu um fio dourado que subiu ao céu e se espalhou entre as poucas nuvens e despertou o primeiro amanhecer em muitos anos.

Desde então, digo que, quando o Sol nasce muito bonito, é porque ela se lembrou de mim, mesmo contra a sua vontade férrea


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Sanzalando

6 de outubro de 2025

o meu fm

Era eu ainda criança de calções e suspensórios, tinha para aí 12 anos e um sonho: queria trabalhar na Rádio.

Não pensava no público, no delírio de fãs, apenas em gravadores, gira discos e muitos botões para mexer. 

Tudo começou num dia de chuva. Não chuva séria, mas na chuva no rádio portátil que se chamava transistor. Porque raio daquilo hoje não dava o nosso palco é o mar? O rádio a tocar fazia de conta era sol que não queima nestes dias de cacimbo.

Um dia, ou dois depois que isso é irrelevante e eu não me lembro, deu corda às pernas e lá foi ao Rádio Clube pedir emprego.

Olharam-me. Perguntaram muitas perguntas e disseram para eu falar ou ler qualquer coisa. Não, quero mesmo é trabalhar com os aparelhos. A minha voz está maluca que deve ser da idade. Tanto está grossa como fina que nem desafinador crónico. E no meio desta conversa lá apareceu o Sousa Santos que disse, anda daí para eu te começar a ensinar. E assim estive uns dois meses a ir para o Rádio Clube nas horas que estava ele ou o Mendes. Não me lembro mesmo quando foi que me disseram que agora eu ia começar a ganhar e a ter um horário. Trás o horário do Liceu e fazemos o teu horário. Se chumbares vais para a rua. Disto eu me lembro que nem agora tenha sido.

Por acasos do destino foram alguns anos naquela função. Uns dias tudo corria bem, noutros havia uma ou outra branca. Às vezes recebia um raspanete via telefone porque às horas bem marcadas tinha de passar a publicidade X e passou a não sei quê. Mas eu estava a dizer que por acasos do destino falhou alguém. O miúdo abriu o microfone e inventou.

O coração deu pulos, a cara ficou vermelha que nem o sangue todo tinha ido para lá. Mas correu substancialmente bem que passei a ter dois trabalhos, mas um só ordenado. Mas era feliz.

A mãe em casa ouvia. Tinha sempre uma ouvinte infalível. Lia algumas notícias, até do movimento marítimo, que quando por lapso próprio não era actualizado lia os navios que já tinham ido embora e tudo. Divertia-me até com as repreensões que a direcção às vezes dava. Eles faziam o trabalho deles. 

Cheguei a sair do estúdio e fui fazer o hóquei, o futebol do Independente, mas aí sempre como técnico. A minha voz não tinha velocidade para dizer aquelas coisas todas conforme estavam a acontecer. 

Às vezes, chamava os amigos que tocavam umas músicas e lá se fazia um programa ao vivo. Eles alinhavam e e o tempo passava numa correria que até cansava. 

Um dia esse tempo acabou e outros tempos aconteceram.

Já crescido, cabelo ralo e muito branco o sonho renasceu. Outros sonhos sonhados que se realizam em cada dia que vou imaginando o próximo. Afinal de contas eu só tenho de ouvir o coração e sintonizar o meu fm.


Sanzalando

4 de outubro de 2025

Bom Dia Mercado 7 - 04-10-2025



Programa de Rádio feito no Mercado Municipal de Portimão - 04 de Outubro de 2025
Uma alegria ter a rádio em directo. Mercado super Cheio e nós cheios de coisas boas. 
Ouça-nos e visite-nos



Ouça em diferido o directo de hoje


 





Sanzalando

Programa 87 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 1 de Outubro - Diam Mundial da Música, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
Hoje fizemos um programa especial, apesar de todos os K'arranca às Quartas o serem. 
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica e foi sobre o Diam Mundial da Música.
Falei de Alda do Espírito Santo, autora de S. Tomé e Príncipe; Esta Música tem uma história, com o tema Ainda Bem num dueto de Marisa Monte e Roberto Carlos, numa colaboração de José Leite; 
não faltaram os Tesourinhos Musicais com Gonçalo Lucena e Nova Onda, 
POESIA - «A Propósito Das Estrelas», de Adília Lopes, na voz de Fernando Alvim
e e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.



Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando