E quando penso que já não sei
mais nada do tempo que esqueci, esquecendo a fome, a saudade, as tristezas de amor
imperfeitos, amuos por carência ou por birra, risos porque algo inesperado aconteceu,
vem à memória como uma fotografia um flash.
O relógio da Torre dos Clérigos
marcava uma hora qualquer de uma tarde encalorada na frieza das tardes do Porto,
eu brincava com a BIC, a bata já cinzentamente branca porque faz quatro anos
que deixara de ser nova e respirei fundo. Ainda sentia na garganta o cheiro a
éter e a desinfetante que mais não era um conservante cadavérico, o formol,
esse odor que se entranhava na roupa, na alma e se respirava até desparecer da
memória. Era o quinto ano de Medicina na Universidade do Porto e, naquela tarde
de outubro de 1983, tinha acabado de assistir à minha primeira autópsia.
No anfiteatro anatómico, nas
bancadas gastas de madeira estavamos, demasiado perto mas suficientemente
afastados e era o silêncio, só interrompido pelo arranhar das canetas no papel em
apontamentos dos mais ousados. Eu trazia sempre o mesmo caderno azul, comprado
numa papelaria da Rua de Cedofeita. A capa já se esfolava nos cantos, mas ali
dentro estavam todos os apontamentos que não confiava à memória nem à perfeição
da letra que mais tarde me esforçaria para ler, se me lembrasse.
A autópsia marcara-me. Não pela
violência do corpo exposto, mas pelo rosto sereno que parecia quase sorrir,
como se o rapaz deitado na mesa de aço tivesse chegado a algum entendimento com
as milhentas lombrigas vivas que ondulavam quando a monitora abrira o intestino.
Alguém ao meu lado parecia tinha
caído de elevador, assim numa câmara lenta que nem deu para percebe e ter
reflexos para a apanhar no meio do caminho. Estava inerte no chão sujo, ou
velho, daquele anfiteatro quando lhe atirei o olhar. Não, não socorri porque
logo vieram dois colegas mais velhos fazê-lo. Eu estava hipnotizado naquela cena
macabra de abrirem um intestino ao mesmo tempo que eu via um rosto sereno que
até parecia sorrir
Depois da aula, atordoado e com a
mente cheia de filmes sem película, sentei-me no Piolho, reabri o meu caderno
de apontamentos e só deus poderia saber o que lá estava escrito. Eu gatafunhei
e acho que nem eram palavras nem desenhos. Bebi uma Cimbalino e fui para o lar.
À hora do jantar, cerca das 19, na cantina de Engenharia entrei e o cheiro a
sopa de legumes fez-me lembrar o formal e desconsegui comer. Pousei o tabuleiro
e pela Alferes Malheiro regressei ao lar. Em jejum mas com sabor a formol. Sentei-me
perto duma janela, abri o caderno e escrevi, na folha da aula da:
“Para viver com a morte ao lado,
é preciso ter coragem e algum amor.” Se calhar era o princípio de um romance.
Mas se era, ali acabou porque só resta essa frase.
Nos dias seguintes passei horas a
observar médicos que pareciam não ter medo de nada. Na minha cabeça mantinha-se
a cena fixa do anfiteatro da Aula de Medicina Legal. Àquela imagem juntei o meu
receio: o dia em que não pudesse fazer nada por alguém.
Fazia tempo que essa dúvida não
aflorava o cérebro. Agora martelava e ainda por cima com fotografia mental.
À noite, frente à telenovela
prometi-me que havia de aprender a nunca ficar indiferente. Porque ser médico,
mais do que decorar nomes latinos ou saber palpar um abdómen, era guardar
humanidade, mesmo que, às vezes, doesse.
Fechei o caderno azul e nunca
mais o abri até hoje onde me fui buscar no armazém da memória.
