Programas K'arranca às Quartas no Blog

30 de maio de 2025

Meus retalhos 35

Estava eu de urgência, início de carreira, fazia tudo. Desde que o doente chegasse à urgência eu via. Não me importava se era cirurgia ou ortopedia ou lá o que fosse. Eu queria era ver e tratar doentes. Era novo e cansaço não era desculpa nem imaginava que isso existia. Entra pela porta uma senhora, para aí uns 70 anos, para mim naquela altura era uma velhota, mas merecedora de toda a atenção. Foi trazida pela filha mas entrou pelo seu pé e sozinha. Na altura não havia autorização para entrada de acompanhantes. Acho que ainda nada era feito no computador, era escrito na ficha em papel. Cumprimentos, meu olhar clínico já tinha visto a boca desviada e atirei:

- Há quanto tempo teve o AVC

- Dr. nunca tive isso. Só tomo drogas para a tensão porque o meu médico disse que eu tinha tensão alta.

- Desculpe-me. Mas como vi a boca assim desviada...

interrompe-me:

- Por isso estou cá agora. Olhei-me ao espelho e via a boca assim de lado e ao mesmo tempo parece que tenho cortiça na bochecha. 

- Ok. Vamos lá ver bem. levantei-me, toquei na cara, mexi na pálpebra e comecei a pensar.  Nas pernas sente alguma coisa? Ou nos braços do outro lado? fui fazendo perguntas.

- Senhora (não me recordo agora do nome) bom bom era fazer um TAC mas neste hospital não há. Só em Lisboa e acho que não erxiste assim nenhuma urgência em fazer. Eu já estava certo que não era um AVC. Todo o exame clínico dizia-me isso.

- Sabe, acho que tem uma paralisia do facil. Um nervo que enerva esse lado da cara está afectado por qualquer coisa. Vou passar-lhe aqui uma medicação e volta cá, porque vou cá estar no sábado, daqui a 6 dias. De dia se faz favor. E dei-lhe um papel com essa indicação. 

- Dr. não é melhor falar ali com a minha filha?

- Claro, claro.

E lá fui eu, expliquei a minha opinião e tratamento.

No sábado ainda estava na mesma. Não piorou nem melhorou. Mas eu tinha a certeza e fui marcando um dia de semana para rever. 

Após 4 semanas ela apresenta-se, recuperada e diz-me:

- Obrigado, Dr. O que mais me doía era o olhar triste das pessoas quando me olhavam. Agora já lhes posso sorrir.

 

 

Sanzalando


29 de maio de 2025

Quando era adolescente ia ao cinema para a ver

Quando era adolescente ia ao cinema para a ver.

Não para ver o filme, isso era apenas o disfarce. Ia porque ela estava sempre lá, três lugares cativos na fila D, coxia no centro da sala.

Chamava-se Marta. Ou pelo menos era isso que me diziam, ou apenas eu lhe chamava. Já não sei.

Na altura, fingia gostar de qualquer filme só para poder comprar bilhete ali naquelas redondezas. Vi comédias românticas que me fizeram perder a fé no amor e filmes de terror em que o maior susto era eu ter que fechar os olhos sem conseguir tapar os ouvidos.

Um dia ela me disse:

- Já vi que gostas mesmo de cinema…
Respondi:
- Gosto, especialmente da parte do intervalo em que posso conversar.

Ela riu. Pequeno avanço.

O auge foi quando me disse "bom filme" com um sorriso mais longo que o habitual. voltei para o meu lugar que ficava ligeiramente atrás. Mas valeu a pena, ela sentou-se a seguir, mostrando o seu corpo alto numa saia curta.

Nunca tomei coragem para mais do que aqueles segundos de conversa e um lugar na fila de cinema. Depois, um dia, passei a vê-la todos os dias. Era minha colega no liceu. O meu mundo tremeu.

Hoje passo pelo tempo e está tudo vazio. 

Porque quando era adolescente ia ao cinema para a ver. E acho que, no fundo, ela sabia.



Sanzalando

Programa 69 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 28 de Maio, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
Ouça com atenção e pense ( o som ainda não recuperou do apagão de 28 de Abril pelo que peço desculpa)
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha



Hoje tivemos a Crónica, Hospital de Alfaces de Pedro Chagas Freitas, ouvimos um poema de Fernando Pessoa na voz de Mário Viegas,  tivemos Esta Música tem uma história, com Gal Costa e o tema "Nada Mais" - colaboração de José Leite, ouvimos Jamina Ann com Mensagens Intuitivas, não faltaram os Tesourinhos Musicais com os POP FIVE MUSIC INCORPORATED, tivemos a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira bem como Rir é um bom remédio com o humor de - Ariano Suassuna

 

Tudo imperdível, menos a qualidade do som e os primeiros minutos da emissão.
Mesmo assim vale a pena

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

Meus retalhos 34

Fui médico 39 anos e 4 meses. Vi de tudo, penso eu. Ouvi pacientes que juram que têm "o Google a dizer que é cancro". Outros tive com remédios caseiros feitos com cebola, mel, bicarbonato de sódio e nenhum, talvez só por acaso, que tenha adicionado o famoso lubrificante que também serve para tudo, WD-40.

Era uma quinta-feira morna, daquelas dias que nada prometem. Estava no consultório, a fazer as minhas consultas semanais, com os meus doentes, diria, crónicos, e alguns novos encaminhados de algum lugar.

- Doutor - disse o paciente que eu via pela primeira vez - estou com um problema "muito sério".

O paciente, senhor na casa dos 50, ar imponente, camisa aberta até o terceiro botão, corrente de ouro a brilhar sobre um peito cabeludo começou a falar mal transpôs a porta

- Bom dia. Sente-se - disse eu um pouco incomodado e sem jeito.

- Doutor, prepare-se. O que tenho... ninguém sabe tratar. Já fui a três médicos, uma senhora que lê cartas, ao YouTube e ao Google. Ninguém me resolveu.

- Diga lá o que sente - talvez com cara de pau com aquela entrada

Ele olha-me nos olhos, baixa a voz e diz:

- Doutor… espirro quando penso em sexo.

Fiquei calado dois segundos, fechei os olhos, pensei e repensei.

- Desculpe-me? - foi o que saiu

- Sempre. Basta pensar em sexo e atchim! Já não posso nem ver  mulher alguma na televisão. É olhar e atchim! Até a minha mulher acha que sou alérgico a ela. E cada vez que espirro a porca da hérnia dá pulos que até parece está a querer fugir de mim.

Mordi o lábio inferior para não rir, segurei-me à cadeira, olhei para o computador. Mas ele estava sério. Muito sério, mesmo.

— E isso acontece há quanto tempo?

— A Hérnia desde há muito, mas não liguei até que começaram estes espirros.

- Quando começaram os espirros? - segurando as palavras para não desatar a rir

- Desde que comecei a tomar um xarope para a sinusite, há uns dois meses que me foi dado pelo meu vizinho, que lhe fez muito bem.

Pedi para ver o xarope. Ele tira do bolso, como quem mostra contrabando. Olho para o rótulo.

"Cloridrato de pseudoefedrina".

Respirei fundo. Virei-me para o computador sem saber se ria se chorava. Pedi exames com o ar mais compenetrado do mundo. Recompus-me e virei-me para ele:

- Sabe que esse xarope tem como efeito secundário… excitação leve em algumas pessoas? - gaguejando para não perder o meu ar professoral

Ele arregalou os olhos.

- Está a dizer que o xarope me deixa…?

- Com a cabeça nas nuvens e o nariz sensível, digamos assim. 

Ficou em silêncio. Depois soltou um:

- Ahhh! Então não sou pervertido! Sou só alérgico ao amor!

E desatámos os dois a rir. Um riso livre, quase terapêutico. Acabei por lhe trocar o xarope. e continuar a sua inclusão em lista de espera para tratamento da hernia. 

E ele saiu, a dizer:

- Doutor, se me vir a espirrar na rua… já sabe. Olhe à volta...


Sanzalando

27 de maio de 2025

luzes vazias de corpo e alma

As luzes da cidade cintilavam, parecia fraca a energia que as alimentava. Eu dizia era como promessas que nunca se cumpriam. Vagabundei pelas ruas noite recente, onde os passos faziam mais barulho que os meus pensamentos. Carros, poucos, passavam como fantasmas apressados, e as caras que escutavam a noite nas janelas pareciam mais distantes que as estrelas.

Eu procurava algo — alguém — que nem sabia descrever. Um olhar que me reconhecesse sem palavras, um toque que dissesse “fica” sem pedir. Mas cada esquina trazia apenas silêncio, ou barulho demais. Entrei esplanadas e corações vazios encontrei. Sorri por educação. Beijei por educação as poucas senhoras que saiam à noite para um café na companhia dos seus maridos. E saí sempre com mais frio do que entrei, vazio de corpo e alma.

A cidade inteira parecia ter alguém. Menos eu. Ou talvez todos estivessem igualmente sós, fingindo companhia para não admitir o vazio.

Quando a noite começou a tingir o céu de preto mais escuro, sentei no banco de jardim, acendi um cigarro e vaguei por memórias. Um cachorro de rua deitou-se ao meu lado. Ele também vagueava, talvez à procura de algo que não sabia o nome. Éramos dois já.

Pensei, o amor que me falta não está nos outro, mas no meu jeito de olhar o mundo sem esperar que ele me preencha.


Sanzalando

26 de maio de 2025

O banco do picadeiro

Todas as tarde, eu passava pelas praças da cidade, sempre  sem pressa, olhos ao calhar olhando que desse para ser visto, meus passos eram curtos, até parecia tinha medo de gastar o tempo. Já nem me lembrava do banco de madeira descascada, ali perto da fonte seca, no picadeiro onde meus avós passeavam ao domingo, onde um dia jurei amor eterno através de um canivete e desenhei um coração com o nome dela dentro.

Passaram-se tantos anos. Tantos que ela já nem deve lembrar eu existo. As cartas, os poemas, os passeios que dei sem lhe tocar para lá do olhar, com uma vontade enorme de lhe  entrelaçar as mãos, mas com mais medo e aprisionado desejo, reprimi com medo de uma cena que nem filme de cinema nunca visto..

Um dia, sem aviso, ela desapareceu. O banco ainda deve estar lá. Onde me sento na memória dos meus passeios imaginados. O vento trouxe-me um cheiro leve de buganvília ou ela não tem cheiro e eu sonhei e daí eu me lembrei dela, destes anos repassados e sem sinal dela.

Fecho os olhos por segundos. Por um segundo, ela voltou. Não como antes, mas como memória: suave, morna, volátil e quem sabe amarelecida pelo tempo.

Sorri. Levantei-me da memória e segui a minha vida como se nada tivesse acontecido, como se o banco do jardim não existisse, nem a gravura feita pelo meu velho canivete que ainda trago no bolso.

O amor esquecido não doí mais. Só me faz companhia.


Sanzalando

22 de maio de 2025

O amor silencioso e secreto

Ela nunca soube.

Nem quando eu a esperava no portão da escola, disfarçado de coincidência. Nem quando rabiscava o seu nome no caderno, escondido entre fórmulas de física e poemas sem destinatário.

Naquelas tardes dos tempos antigos, ela passou por mim com o vento nos cabelos e um sorriso nos lábios. O mundo parou o seu movimento de rotação ou pelo menos o meu acelerou. Ela afinal acenou para alguém que estava atrás de mim, e empalideci quando vi que eu não estava na equação. Mas não era para mim aquele olhar.

Eu lhe amei em silêncio. Por meses. Talvez anos considerados eternos.

Nunca soube se ela namorou outros. Se casou. Mudei de cidade. Tive filhos e cheguei a netos. Ela? Nunca imaginei nem fiz adivinhação. Guardei aquele amor como se guarda uma carta nunca enviada: com cuidado demais, até o papel amarelar. Aquele amor cimentou, murou-me a vida, mas não me prendeu.

Em cinquenta anos ele nunca a viu de novo.

Hoje imagino-a. Os cabelos grisalhos, o andar calmo, mantenho-lhe o mesmo sorriso, na esperança que ela nunca o tivesse perdido, costas direitas, uma princesa.

Ela nunca soube do ele que eu era.

Mas havia algo bonito naquela ignorância. O segredo era só dele. Um relicário íntimo, imaculado pelo tempo.


Sanzalando

21 de maio de 2025

Programa K'arranca às Quartas 68

Hoje não há em diferido o programa tal e qual foi para o ar já que a qualidade da sua gravação assim não o permite. Ficam as Rubricas, com muita pensa minha
Estaremos em breve de volta ao diferido, logo as condições técnicas o permitam

Sanzalando

conto a sabor a mar

Numa manhã calma, o mar sussurrava segredos antigos à areia, que os ouvia com paciência de amante. A brisa dançava entre as palmeiras doas arcadas, carregando o cheiro salgado das ondas e o riso de um menino que corria descalço pela praia, com os bolsos cheios de conchas, que até parecia ia levantar uma joeira.

Sentada numa das arcadas, uma senhora de cabelos prateados observava o horizonte, olhos para lá do real como que à espera de alguma coisa que viesse pelo mar. Todos os dias eu a via ali, mesmo banco, mesmo olhar de esperança. Acho ela está ali desde que o seu amor partiu com promessa de voltar. Nunca mais voltou. Mas ela, uma vez que meti conversa me contou, o mar não rouba, ele guarda. E que um dia, quem escuta o mar com o coração, ouve vozes de volta.

Naquele instante, uma onda mais forte beijou os pés do menino que corria e deixou uma garrafa entre a espuma. O menino lhe pegou e veio a correr direitinho a ela. Lhe deu a garrafa que trazia dentro, um papel manchado pelo tempo: “Esperei-te em cada porto. Agora, espero aqui.”

Ela sorriu com os olhos de sabor a mar. O menino lhe ofereceu uma concha que tirou do bolso. O mar, então, pareceu respirar aliviado. Como se, finalmente, tivesse contado o seu segredo mais precioso.



Sanzalando

20 de maio de 2025

sonhando realmente

Me sento e descanso na escadaria do Tribunal. A minha vista não consegue ver o fim da avenida. Já não tem o brilho de outrora. Os meus olhos já não são nem metade do eram. 
Eu sei que não vais passar por aqui. Faz muitos anos que não passas aqui. Olha que eu de andarilho ainda vou por aqui passando. Devagar, porque pressa tem a morte, eu lá só quero chegar tarde e contrariado.
Mas aqui sentado vou sonhando. Isso mesmo, sonhando. Não tem realidade mais amarga que a real. As pessoas que passam não sorriem e muito menos acenam. Acho vão todos com pressa de gastar o tempo até a morte lhes pegar. Eu deixo-as ir nas suas corridas apesar de lhes dizer boa tarde bem alto para os surdos ouvirem. Mas ninguém ouve. Se calhar vão a rezar. Se calhar vão só para lado nenhum e têm medo de se perder. Sabes que quando éramos criança eu me sentava aqui as pessoas, novas e velhas diga-se, diziam adeus, sorriam, paravam e falavam. Será que têm medo agora dos meus cabelos brancos? Nós os mais velhos temos a sabedoria do tempo e eles nem sabem bem o que é que isso é. O tempo?! Vais ver eles pensam é calor de queimar ou cacimbo de arrepiar. Mas eu tenho tempo de lhes ensinar, mesmo aqui sentado na escadaria do tribunal e sem ver o velho matadouro que a minha vista já não deixa olhar para lá da capitania.


Sanzalando

19 de maio de 2025

Confissões de um Eleitor Frustrado

Votei. Juro que votei. Com orgulho, esperança e e com alegria de quem diz que pode escolher! Acordei cedo, ~pronto a enfrentar uma fila que não existia, apanhei um banho de sol porque aproveitei para conversar à saída com gente que a gente só encontra nestas ocasiões. Estava certo que tinha feito o meu xis no quadrado vencedor. Voltei e certifiquei-me na consciência.

E hoje? Hoje eu olho para as notícias com o mesmo entusiasmo de quem abre o extrato do banco no dia do vencimento.
Eu sabia que cada promessa era uma representação digna de um filme, encenada, trabalhada. Mas agora eu queria ver os resultados. Eu achava que tinha escolhido alguém pra liderar o país. Mas, aparentemente, apostei sem graça num desengraçado desgraçado que perdeu. Era diferente a realidade da minha realidade. Não volto a comprar pipocas para ver este filme em que eu não tenho sorte na escolha. O filme não é o que eu esperava, as personagens não são os actores que eu escolhi e o PIB, a Pensão, a Defesa e a Habitação não passam de meros números em cima de uma qualquer secretária à espera de se transformarem num enredo de um outro novo filme que será sequela número X num universo paralelo. 

Mas sigo, frustrado, descontente. Mas vivo, rindo e já preparado para o discurso de que haverá próximas eleições mal estejam reunidas outras condições.

E se não for… bom, pelo menos a comédia está garantida para novos episódios


Sanzalando

16 de maio de 2025

JCCarranca mostrando ser sério quando lhe apetece

Sou nostálgico e caminho num passeio de palavras. Tenho como companhia a dúvida e a incerteza, que são experiências humanas universais e profundamente interligadas. Ambas emergem da limitação do conhecimento e da imprevisibilidade da realidade. A dúvida é o sentimento ou estado de hesitação diante de algo que não se pode afirmar com certeza. Já a incerteza é a condição objetiva ou subjetiva de não saber o que vai acontecer ou qual é a verdade sobre algo. Noutras palavras, a dúvida é o efeito interno da incerteza — é como a incerteza se manifesta na mente humana

Sanzalando



15 de maio de 2025

Primavera, Vento e Futebol

Na primavera, o campo floresce. As flores assistem em silêncio, mas intensamente, pelo que vejo como dançam. O vento sopra leve, dança entre as traves e leva o grito da claque para lá dos estádios e espalha esperança nos adeptos que querem ser campeões, nem que seja de bancada.

As chuteiras revolvem a relva verdejante, como pincéis numa tela viva, parecendo que cada passe seja um poema chamado golo.
O vento, brincando, muda o rumo da bola, afastando-a das balizas e os assobios se ouvem como um protesto invisível de frustação. É primavera a ser cúmplice e sorridente dos suores renascidos das esperanças que se afastam numa disputa de glória.

Sanzalando

Programa 67 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 14 de Maio, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
Ouça com atenção e pense ( o som ainda não recuperou do apagão de 28 de Abril pelo que peço desculpa)
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha


(Hoje a gravação não está límpida, resultado possivelmente do apagão. Já me instaurei um processo de averiguações. Mas mesmo assim não queria que pensassem que não houve programa. 
As rubricas, porque independentes, têm qualidade perfeita, pelos menos a julgar pelo som.)

Hoje tivemos a Crónica, falámos de Mestre dos Batuques de José Eduardo Águalusa, ouvimos o poema Canção de Cecília Meireles,  tivemos Esta Música tem uma história, Negue de Maria Bethânia - colaboração de José Leite, no meio disto tudo ainda tivemos os Tesourinhos Musicais com Conjunto Universitário Hi-Fi, tivemos a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira bem como Rir é um bom remédio com o humor de - Rolando Boldrin

Estreia de Jamina Ann com Mensagens Intuitivas

Tudo imperdível, menos a qualidade do som e os primeiros minutos da emissão.
Mesmo assim vale a pena

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

13 de maio de 2025

primavera, rádio e velhos tempos

Hoje me apetece falar simples, mas com grande coração: primavera, rádio e os velhos tempos — três coisas que, curiosamente, continuam a saber bem com o passar dos anos. Como um pão quente com manteiga ou uma fotografia esquecida no fundo de uma gaveta ou a lembrança das tardes quentes na varanda a olhar para qualquer coisa do tipo ontem.

A primavera sempre teve um jeito especial de chegar. Não bate à porta, entra pela janela, Sai pela porta, afoga-se em chuva diluviana, evapora-se em tarde quente e esgueira-se no cheiro das flores, no riso das crianças que voltam a brincar na rua, no canto de um pássaro que só canta quando sente que é agora. A gente já não marca no relógio. Simplesmente sente. E isso, para mim, sempre foi parecido com o ouvir rádio.

A rádio era isso: não se via, mas estava lá. Como a primavera. Era a companhia dos fins de tarde em que se faziam os trabalhos de casa na mesa da cozinha ou sentados na velha cadeira de baloiço do avô, o rádio a trabalhar e a voz de um locutor que parecia saber exatamente o que dizer para não nos sentirmos sozinhos. Era a música certa na hora certa, ou aquele programa da noite em que se contavam histórias que nos faziam sonhar com lugares onde nunca tínhamos estado.

Lembro-me bem. Nos velhos tempos, ouvir rádio era um ritual. Um botão rodado devagar, à procura da estação certa. Às vezes com chiado, às vezes com interferências, como quem sintoniza a vida e aceita que nem tudo se ouve com clareza à primeira. A minha mãe deixava o rádio ligado o dia todo. Dizia que a casa parecia menos vazia. Talvez fosse isso mesmo: o rádio era o calor que vinha das palavras.

E agora, nesta primavera que insiste em misturar sol com vento ou chuva, volto a lembrar-me desses dias. Há qualquer coisa de eterno nisto tudo. As estações mudam, os rádios agora são digitais, os tempos são outros — mas o encanto permanece. Ainda há primaveras tímidas, rádios que nos abraçam com vozes familiares, e memórias que nos chegam sem aviso.

Hoje, mais do que nunca, vale a pena parar um bocadinho. Abrir a janela, deixar entrar o cheiro do campo e do mar, ligar o rádio e ouvir. Só isso. Ouvir. Quem sabe o locutor diga uma frase qualquer que nos leve de volta ao tempo em que éramos miúdos e o mundo parecia mais simples?

Porque há coisas que não mudam. A primavera ainda chega devagar, o rádio ainda fala connosco e os velhos tempos… ah, esses, vivem dentro de nós — e voltam sempre que queremos.



Sanzalando

12 de maio de 2025

Primavera e frio na praia

A primavera chegou, mas esqueceu-se de avisar o vento. No calendário, flores desabrocham, os dias alongam-se e os guarda-sóis deviam começar a espreguiçar-se na areia. Mas na praia, tudo parece ainda suspenso no inverno. O mar continua azul esquisito, espumoso, ameaçador, como se quisesse lembrar que há coisas que o tempo não manda.

Mesmo assim, há sempre um ou outro teimoso. Um casal enrolado em mantas, de mãos dadas, olhando o horizonte como se o frio fosse apenas um detalhe menor. Uma senhora caminha descalça, desafiando o gelo da maré-vazia com a dignidade de quem já viu muitas primaveras. Um cão corre atrás de gaivotas, indiferente à estação, à temperatura, à filosofia da vida.

As esplanadas estão meio-vazias, mas abertas. O empregado serve café com um sorriso que treme um pouco ao vento. Os óculos de sol convivem com cachecóis, e os casacos de lã contrastam com os ténis leves de quem ainda acredita que abril é sinónimo de calor. Não é. Não ainda.

Na primavera fria da praia, há uma beleza discreta, quase melancólica. É uma estação em transição, como nós tantas vezes estamos. Não é o inverno, mas também não é verão e muito menos a primavera que eu estava a pensar. É um tempo que pede paciência. Que nos lembra que nem tudo floresce à primeira tentativa e que a ansiedade parece ter lugar cativo nesta incerteza temporal.

Talvez seja por isso que não gosto destes dias. Porque são sinceramente tristes. Porque não mentem com promessas de calor. Porque nos obrigam a encontrar conforto no desconforto de malhas e camadas que nos envolvem como correntes, porém, leva-nos a reconhecer que há beleza até no arrepio.


Sanzalando

9 de maio de 2025

bicicleta versus primavera

Hoje manhã cedo de primavera decidi pegar na bicicleta que estava encostada na garagem. Encontrei-a coberta de poeira e muitas memórias. Ela olhou-me com aquele ar de “até que enfim”, ao que me apeteceu dizer-lhe que a culpa não era minha mas sim dos dias de chuva que a primavera nos tem presenteado por tanto termos chorado por falta de água. Mas achei-me não louco suficiente para falar com uma bicicleta. Calibrei os pneus, passei um pano no selim e parti, como quem foge de casa mas sabe exatamente para onde vai. Só me apetecia apanhar o ar fresco na cara, deixar pensamentos para trás e saborear a liberdade que ela me transmite

As ruas estavam mais coloridas. Não pelas paredes — que continuam com suas tintas desbotadas pelo tempo — mas pelas árvores, pelos sorrisos que se entrecruzam com o meu olhar, pelas cores da roupa de quem passeia. A primavera tem esse dom de deixar tudo com cara de começo, mesmo que seja meio do ano e se ontem choveu, amanhã também pode voltar a fazê-lo.

Pedalava sem rumo, como quem caminha por dentro. Acho mesmo que eu gosto da bicicleta para caminhar dentro de mim. O vento não era só brisa, também tinha vestígios de memória. Trazia o cheiro das flores e da infância, quando pedalar era a forma mais rápida de sentir liberdade. E ali estava eu, de novo criança por alguns quilómetros, com as mãos firmes e a alma solta, leve levitando por sonhos.

Cruzei-me com outros ciclistas, alguns apressados, outros devagar como eu. Nossos olhares se cruzaram por segundos, mas diziam: “sim, a gente sabe... tem algo diferente no ar.” Talvez fosse só o pólen, talvez fosse essa vontade coletiva de renascer.

Na primavera, tudo parece possível. Até acreditar que o mundo pode ser mais simples, como uma bicicleta a deslizar pela estrada, sem buzinas, sem pressa, com flores no caminho, com gente.


Sanzalando

8 de maio de 2025

Chove, faz sol e dizem que é primavera

Se o clima tivesse um perfil, ele estaria classificado de como "é muito complicado". 

Acordo com chuva, almoço com sol, e antes do jantar já estou de volta ao modo lareira e drama existencial. E o mais impressionante: isto é primavera. A estação que, segundo a tradição, deveria trazer flores, amores e sorrisos na cara das pessoas que circulam em ruas carregadas de gente. Vejo nos meus livros do tempo de escola que era a alegria personificada

Mas o que temos?

Chove. Faz sol. Às vezes os dois juntos, como se o céu tivesse esquecido de escolher o figurino e dissesse: “Vai tudo a monte porque ninguém vai notar”. Mas a gente nota — com o guarda-chuva numa mão e os óculos de sol na outra, equilibrando a dignidade como pode, firmeza no olhar e rugas de testa franzida como que chateados com o vida .

E ainda me dizem: “Ah, a primavera!”. Dizem com um suspiro poético, como se fosse uma estação de contos de fada. Mas a realidade é que a primavera é tipo uma aplicação em construção: promete muito, entrega cruzamentos climáticos e ainda exige que você sorria porque “é a estação das flores”.

Flores? Eu vi uma ontem. Estava murcha, ensopada, e com ar de quem também não entende o clima.

No fim das contas, a primavera é a gente seguir, entre poças e bronzeados inesperados, rindo para não molhar — quer dizer, chorar.


Sanzalando

Programa 66 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 07 de Maio, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
Ouça com atenção e pense
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha


Hoje a gravação não está límpida, resultado possivelmente do apagão. Já me instaurei um processo de averiguações. Mas mesmo assim não queria que pensassem que não houve programa. 
As rubricas, porque independentes, têm qualidade perfeita, pelos menos a julgar pelo som.

Hoje tivemos a Crónica, falámos de Graciliano Ramos, ouvimos o texto de Jorge de Sena , na voz de Mário Viegas tivemos Esta Música tem uma história, Namoro de fauto e Viriato da Cruz que mais uma vez contou a preciosa colaboração de José Leite, no meio disto tudo ainda tivemos os Tesourinhos Musicais com Lara Li, tivemos a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira bem como Rir é um bom remédio com o humor de Xico Anísio

Tudo imperdível, menos a qualidade do som e os primeiros minutos da emissão.
Mesmo assim vale a pena

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

6 de maio de 2025

Primavera de Chuva e Sol: indecisão climática com flores

A primavera é aquela estação do ano que é linda, as flores desabrocham, os pássaros cantam... e o clima entra em crise existencial, porque tanto chove como brilha o sol, tanto me aquece como me arrefece.

Acordo com o sol brilhante, céu azul, passarinhos felizes como se fizessem parte de um anuncio de margarina vegetal. Saio todo empolgado, de óculos escuros e roupa leve. Quinze minutos depois, está debaixo de um beiral, parecendo um ensopador humano, enquanto uma tempestade tenta ensinar-me o que é humildade, humidade e enxarcado.

É o clima no seu ponto mais indeciso do ano. Numa hora é verão das Caraíbas, outra hora é Londres em dia que lhe visito. E o pior: a previsão do tempo mente. Ela diz "chuva isolada", mas a única coisa isolada sou eu, no beiral com cara de quem tomou banho de roupa vestido.

A primavera é a estação da esperança: esperança de sair seco de casa, esperança de que o céu azul dure mais de meia hora. Mas, acima de tudo, é a estação de camadas: visto simples, levo casaco impermeável, guarda-chuva, e talvez um casaquito de malha, por segurança.

É a estação em que o sol e a chuva decidem namorar. E o arco-íris? Esse é o cupido que aparece dizendo: "relaxa, vai passar… até a próxima nuvem".


Sanzalando

5 de maio de 2025

Dia da língua portuguesa

Dia da língua portuguesa... esse idioma que parece ter sido inventado por um grupo de poetas numa tarde chuvosa, decidindo que nenhuma regra deveria durar mais de três parágrafos.

Começamos com um clássico: "por que", "porque", "porquê" e "por quê". Parece um teste psicológico. Olha-se para as quatro opções e pensa-se: no fundo, todas querem dizer "por que, raios?", mas cada uma tem a sua escrita de gala.

E os verbos? Ah, os verbos... Eles são como actores de novelas: dramáticos, cheios de variações, e sempre prontos para um escândalo. Eu tinha comido, eu comeria, se eu tivesse comido... A língua portuguesa faz-nos pensar mais no tempo verbal do que no crime cometido. O culpado não é quem matou, é quem não concordou com o sujeito na terceira pessoa do plural.

E por falar em plural, alguém já explicou por que “pão” vira “pães”, “cão” vira “cães”, e “irmão” vira “irmãos”? E se “mão” vira “mãos”, então por que “pavão” vira “pavões”? Nalgum momento, o plural decidiu que seria freestyle.

E para adensar o tema ficámos sem o trema, esse símbolo que parecia uma cara feliz (¨) mas deixaram o hífen, esse traço bipolar que muda de ideia toda reforma ortográfica.

E as palavras com duplo sentido? Em português, “manga” pode ser fruta ou parte da roupa ou algo de brincar pois estou a mangar com vocês. “Banco” é onde se senta e onde se chora ao olhar os números que poderiam estar na conta.

Enfim, a língua portuguesa é linda, complexa e cheia de armadilhas. 


Sanzalando

4 de maio de 2025

Dia da Mãe

O "Dia dos filhos da mãe" ainda não existe oficialmente — pelo menos não com esse nome. Mas se estivéssemos a falar de celebrar os filhos de forma legítima, há datas como o Dia da Criança, o Dia do Filho, o Dia do Neto.

Mas na verdade Hoje é Dia das Mães...mas queria eu saber mesmo é o Dia dos Filhos da Mãe, vai ser mesmo quando? Sei que alguns já comemoram o ano inteiro, com muito drama, louça suja e sacanagem, mas acho deveria haver um dia para a gente os comemorar tipo tiro ao alvo com setas de ventosa, bolas de borracha com um chumbinho lá dentro. Coisas ligeiras, mesmo só para comemorar.

Brincadeiras à parte, feliz Dia das Mães para todas que aguentam tudo isso com amor (e café).


Sanzalando

1 de maio de 2025

1º de Maio

Hoje, celebro mais do que um feriado. O 1º de Maio representa para mim a força de quem acorda cedo, enfrenta desafios e constrói o seu caminho com dignidade. É dia de lembrar que cada conquista dos trabalhadores foi fruto de luta, união e resistência.
Neste dia, paro para valorizar o meu esforço, os colegas que caminham comigo e todos que, com coragem, fazem o mundo girar.
Hoje, pela segunda, vez comemoro olhando do lado de fora: aposentado. 
Ao usar esta expressão, esta função evolutiva da minha actividade laboral, não quero dizer que cruzei os braços e que sou assistente. Hoje, tal como no passado faço parte dos seres que pensam, dos que têm opinião, dos que evoluem e querem continuar a sua evolução, independentemente das suas capacidades físicas estarem diferentes, mas a sabedoria dos mais velhos é uma mais valia. 
E esta mais valia faz-me levar a outra mais valia, o de estarem calados aqueles que se esquecem que nada fizeram, nada pensaram e hoje mais valia que não escrevessem, não mendigassem, não chorassem, aquilo que eu penso são lágrimas de crocodilo. Sentados na poltrona do que lhes foi dado de bandeja, tentam mostrar o quanto sofrem por não terem as benesses de padrinhos, tios americanos ou lotarias de fonte duvidosa.
Hoje, manifesto-me pelo direito ao trabalho digno, à dignidade do retorno económico, à qualidade e ao respeito de ser trabalhador por conta de outrem.
1º de Maio e Liberdade!
Hoje posso dar-me ao luxo de sentar num campo, num cantinho europeu, comer bolo do tacho, olhar para caracóis, que não gosto como acepipe, e dizer que sou livre para festejar uma vida de trabalho, com os seus altos e baixos, com as suas curvas e contracurvas, com gente séria e gente que deu férias à seriedade, abraçar amigos e continuar a lutar para os que hoje ainda labutam, tenham melhores condições, mais dignidade e mais liberdade.


Sanzalando