Programas K'arranca às Quartas no Blog

30 de setembro de 2025

outono

As folhas já começam a cair quando resolvo sair mais cedo de casa, porque me apetece passear. O ar tem um frio suave, carregado do cheiro de terra e um certo ar de antigo. Caminho pela berma da estrada, sentindo o chão estalar sob os pés, coberto por folhas douradas e avermelhadas que o vento espalha em pequenos redemoinhos à minha passagem.

Paro num banco de madeira vazio, olho os poucos carros que passam. Dali, vejo o céu, cinzento claro a dar para o nublado, aparentando um tristonho ar. Há algo de melancólico, mas também de reconfortante, neste cenário.

Enquanto espero o anoitecer, tiro do bolso uma carta antiga que encontrara em casa, escrita pela avó, anos atrás. Era um bilhete simples, mas cheio de ternura: “Outono é tempo de lembrar que tudo se transforma, e que cada mudança guarda uma beleza escondida.”

Sorri. Percebi que, assim como as folhas que deixavam as árvores, eu também podia deixar para trás o que já não fazia sentido. Ali, cercado por contrastes e pelo frio suave, entendi que o outono não era só o fim, mas podia ser o início de algo novo.


Sanzalando

29 de setembro de 2025

eu tinha um segredo, de memória

Tinha para aí uns 16 anos e passava todos os dias no mesmo trajeto para a escola. No caminho, sempre esperava ver a, que vou chamar de Clara, porque claramente não poderei nunca revelar seu nove de verdade. Às vezes vi-a rindo com as amigas, outras vezes ia no carro do levada pelo pai, distraída olhando o céu. Para mim, cada detalhe dela parecia digno de um filme que filmava com a memória.

Só que Clara nunca soube. Nunca poderia saber

Guardava os meus sentimentos como quem esconde um tesouro frágil demais para ser mostrado. Eu dizia que podia entrar areia na engrenagem e estragar o que nunca tinha começado. Nos cadernos, as primeiras páginas eram cheias de rabiscos com o nome dela, com os desenhos desenhados mais com o coração do que com o jeito; nas músicas que ele ouvia nas noites da rádio, era sempre os ouvidos dela que ele imaginava estarem a ouvir. 

Conversávamos pouco — “oi”, “até amanhã”, "como estás?", "e a família?", às vezes uma ajuda em matemática ou em ciências, quanto mais não seja era só para ela me explicar o que às vezes eu também já sabia.. Clara , acho, nunca percebeu o brilho nos meus olhos quando falava com ela, nem os silêncios em que queria dizer tudo, mas não dizia nada.

Eu sonhava que, um dia, ela descobriria, obra do acaso, palavra de um deus maior, milagre. Qualquer coisa lhe chegasse ao ouvido. Talvez no intervalo, talvez em uma carta anônima, ou talvez no último dia de aulas. Até lá, continuava apaixonado em segredo, vivendo cada olhar escondido como se fosse suficiente.

O tempo passou, uns dias a voar e outros lentamente e daquele tempo apenas ficou o filme que um dia foi feito com películas de memória



Sanzalando

28 de setembro de 2025

O médico que receitava gargalhadas

Na pequena cidade de um sul havia um médico conhecido não só pela arte das suas mãos e curas, mas também pelas piadas e humor constantes. Tinha nome feito mas muitos apelidavam-no simplesmente de “o médico brincalhão”.

Os doentes entravam no consultório com dores ou preocupações, mas quase sempre saíam a rir. Em vez de começar com a clássica pergunta “O que sente?”, doutor Américo perguntava:

- Então, veio cá porque está com falta de humor?

Se a pessoa se queixava de dores de estômago, ele prescrevia:

- Duas sopas de legumes e três gargalhadas antes de dormir, e faça o favor de se deitar antes de adormecer, pois é muito difícil a sua senhora levá-lo para a cama.

Se era criança, e quase sempre criança tem medo de médico ele fazia mil piruetas, outras tantas caretas e só depois é que se aproximava e só depois de todos rirem é que palpava ou fazia o que tinha a fazer, quase sem dor.

Acho que ele também auscultava as saudades e os sons da tristeza.
- Hum… este coração aqui bate forte por alguém que faz falta, estou certo?

Claro que o doutor levava a sério os tratamentos. Nunca deixava de receitar os remédios necessários, mas dizia sempre que a melhor medicina era a alegria. “Corpo sem humor”, afirmava, “adoece mais depressa do que corpo sem remédio.”

No fim, ninguém sabia se a fama do médico vinha das curas ou das gargalhadas. Mas todos concordavam numa coisa: quem saía do consultório sentia-se sempre um pouco mais leve – e talvez fosse esse o seu maior segredo.



Sanzalando

27 de setembro de 2025

A Criança, o Deserto e as Estrelas - um sonho

Havia uma criança que caminhava sozinha por um deserto imenso, mesmo que o tamanho fosse pequeno aos olhos dos adultos. Para ela era um deserto que não tinha fim.

A areia parecia-lhe um mar dourado, e as dunas subiam e desciam como ondas paradas no tempo. Quando ela olhava para trás ela via as ondas do mar, só que essas eram azuis. Ela adorava o contraste. Ela perdia-se em contemplação, ora de um lado ora do outro.

A criança tinha coragem, muito para lá da vontade.
Enquanto caminhava, avistou uma miragem e os seus olhos se tornaram brilhantes.

Até que enfim vou poder beber água - pensou.

Mas a miragem mantinha-se sempre distante. 

Anoiteceu e com a noite chegaram as estrelas e ela decidiu segui-las.
À noite, o céu escureceu e milhões de estrelas acenderam-se como lanternas.

Uma delas pareceu ter caído devagarinho, pousando na palma da mão da criança.
Era fria como a brisa e leve como poeira.

- Se me guardares no coração, nunca estarás só - sussurrou-lhe a estrela.

A criança sorriu.
Seguiu caminhando e, ao longe, encontrou um oásis escondido: palmeiras, água fresca, e pássaros cantando.
Deitou-se à sombra, agradecida, com a estrela no peito.

Quando acordou, reparou que não tinha saído do seu quarto. Tivera apenas um sonho

E desde aquele dia, ficou a dizer sabia que até no deserto mais vazio há amizade, esperança e magia.



Sanzalando

26 de setembro de 2025

na cidade imaginada

Era uma vez, e era assim que começavam as estórias da minha infância, um menino magro, que morava numa pequena cidade rodeada por mar azul por um lado e por areia dourada do deserto por outro. Ele não tinha muitos brinquedos, mas guardava com muito carinho uma coleção de carrinhos de madeira que alguém lhe tinha oferecido num natal qualquer

Os carrinhos não tinham cores brilhantes nem rodas de metal, mas eram mágicos. Cada um tinha um formato diferente: um parecia um camião, outro lembrava um carro de corrida com listas e números, e havia também um que ele dizia ser um  machimbombo grande.

Todos os dias, depois da escola, espalhava os seus carrinhos no chão de terra batida do quintal. Com pedrinhas e estradas feita com o raspar dos sapatos, construía estradas, pontes e até túneis que agora poderiam ser chamados só de viadutos. A imaginação dele transformava o lugar numa verdadeira cidade em miniatura: os carrinhos faziam filas no trânsito, paravam para abastecer no posto feito de latinhas e até transportavam passageiros invisíveis.

Às vezes, o avô sentava-se na varanda para ver. Com um sorriso, dizia:
- Esses carrinhos só andam porque lhes dás vida.

E era verdade. No mundo da imaginação, os carrinhos corriam mais rápido que o vento, atravessavam montanhas inventadas e sempre chegavam ao destino certo. Não precisava de nada além de sua imaginação e do amor que sentia pelos brinquedos simples que guardava como tesouros.

Com o tempo, cresceu, mas nunca se esqueceu das tardes em que a sua cidadezinha de terra e madeira ganhava vida. Os carrinhos ficaram guardados numa caixa, mas cada vez que ele a abria, podia ouvir o eco das risadas de criança e o barulho dos motores que só existiam dentro do coração dele. Com esse mesmo tempo a sua cidade foi ficando cada vez com menos gente, gente que ele ia esquecendo ou ia sendo levada pelo vento



Sanzalando

Programa 86 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 24 de Setembro, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
Hoje fizemos um programa especial, apesar de todos os K'arranca às Quartas o serem. Mas recordámos duas ouvintes assíduas e participativas. 
Fizemos o primeiro programa de Outono ainda com roupa de verão.
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica e voltámos a falar de aulas e a sua abertura.
Falei de Chico Buarque da Holanda como autor de livros; Esta Música tem uma história, indo buscar Sérgio Godinho e A Noite Passada, numa colaboração de José Leite; 
não faltaram os Tesourinhos Musicais com o Trio Odemira, 
POESIA - ARIANE, Miguel Torga na voz de Inês Veiga Macedo
e e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.



Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

23 de setembro de 2025

uma velha e suas estórias

Numa vila escondida entre mares e areias desérticas, vivia uma senhora chamada D. Adélia, famosa porque as histórias que contava pareciam mais reais do que a própria vida. Diziam que ela tinha uma caixinha de madeira guardada no quintal e que dentro dela estava o segredo para tornar qualquer história verdadeira.

Um dia, uma menina curiosa chamada Maria, decidiu perguntar-lhe diretamente:

- Dona Adélia, é verdade que a senhora pode transformar palavras em realidade?

A velha sorriu, os olhos brilharam como estrelas escondidas em noites de lua cheia:

- Não, minha querida. Quem faz isso não sou eu. É quem acredita nas palavras que eu digo.

Naquela noite, Lúcia sonhou que abria a caixinha da velha. Dentro dela saíam borboletas de luz, que pousavam em cada canto da vila e transformaram as casas em cores vivas e os sonhos dos moradores em jardins. Quando acordou, encontrou uma borboleta dourada no beiral da janela.

E nunca mais duvidou do poder das histórias.


Sanzalando

22 de setembro de 2025

perdi-me de amores

Perdi-me de amores em Moçâmedes, quando o tempo ainda corria devagar, quando eu não sabia que amanhã ia ser um futuro, quando o vento do deserto beijava o mar e eu ainda não tinha aprendido que o coração não cabe em fronteiras.

Era adolescência, era descoberta, eram os olhos dela refletindo as mesmas águas azuis que guardavam os barcos, era o sorriso dela que não sorria, era simplesmente ela. Eu não conhecia o naufrágio, nem a avalanche nem outros desastres que causassem despedida.

Hoje, ao lembrar, ainda sinto o calor da areia nos pés descalços, a brisa salgada que confundia saudade e esperança, e aquele instante eterno em que me perdi para me encontrar num agora de memórias feito.


Sanzalando

21 de setembro de 2025

A Rádio saiu à Rua

Era manhã de sábado, e a cidade ainda espreguiçava-se entre o cheiro a café e o barulho das carrinhas a descarregar pão, fruta fresca e outras iguarias. Eu, de auscultadores na cabeça e aparelhos digitais e computador à frente, montava uma pequena mesa improvisada no que já fora um talho no mercado já apinhado de gente. Um estúdio portátil, quase ao ar livre, porque o mercado é grande porém é coberto, com mais ruído de vida do que cabos organizados.

Transmitir rádio em directo na rua é como abrir a janela da casa para deixar entrar quem passa. Não há paredes, não há isolamento acústico, só a vida a acontecer, sem filtros e sem rede de protecção. Enquanto ajustava os botões e revia ligações, uma criança parou para olhar, um amigo mais velho indignado perguntou o que eu fazia ali, outro veio mesmo dar-me um abraço. Chegaram os músicos. Um casal que se comprometeram a tocar umas quantas músicas para animar a emissão ao vivo e a cores de uma rádio que saiu à rua. Mais ligações e novo teste de som. Tudo pronto para ir para o ar quando for hora de o fazer,

Alguém desconhecido e um pouco atónito disparou:

- Isto é televisão?

Sorri. Expliquei-lhe que não, que era rádio, que se ouvia mas não se via. Ficou intrigada: "Então fala-se para o ar e alguém do outro lado ouve?" Era isso mesmo. Rádio a sério. Ainda a há. Embora também estivéssemos a transmitir com imagem para uma rede social. Mas não é essa a minha praia

Toca o genérico mas o som não sai da minha mesa e não entra no computador e portanto não chega ao estúdio. Improviso e mando uma música para o ar. Refeito do susto, resolvido o botão que se havia desligado por obra e graça dum qualquer fantasma, estávamos no ar, como se diz na gíria radiofónica. Apresentações feitas. A rádio na rua é assim: agenda-se uma coisa, e acontece outra ainda melhor que obriga a pensar, imaginar e resolver.

O primeiro entrevistado foi a convidada agendada, contou ao que vinha, o que queria. Falava bem e se prolongou no tempo, fazendo esquecer que o tempo é contado quando o programa tem hora para começar e outra marcada para acabar. A gente entusiasma-se e segue livre, animado e despreocupado.

As pessoas, de saco carregado paravam, olhavam, sorriam e seguiam, o trânsito pedonal à nossa frente de vez em quando engarrafava. Por sorte nossa ninguém levou buzinas nem outros barulhos que poderiam virar vírgulas inesperadas, e a branca às vezes fazia o microfone engolir-se num silêncio inesperado. Mas a verdade é que esse caos é a beleza: é o som da vida a misturar-se com a voz. Outros convidados foram aparecendo, falaram livre e claramente e por vezes tinham de ser cortados porque o tempo é inimigo da gente.

Os músicos, pacientes tocaram duas músicas numa harmonia de espanto. Aplausos e mais umas quantas entrevistas. Alguém olha para o relógio e o mercado cheio a passar despercebido. Estava onde eu queria estar. A fazer Rádio na Rua e em directo.

Fazer rádio em directo na rua é estar vulnerável, aberto ao imprevisto, um vizinho que reclama, um aplauso espontâneo de quem ouve e reconhece a sua própria história a passar nas ondas, um amigo que te acena. Uma opinião que se regista.

Quando desliguei o transmissor, horas depois, ficou um eco dentro de mim: a sensação de que a rádio não pertence só ao estúdio, mas à rua, às pessoas que não pedem para ser ouvidas mas que têm tanto para contar.

Naquele sábado, mais do que uma emissão, senti que tinha aberto uma praça invisível, onde todos cabem.


Sanzalando

20 de setembro de 2025

Bom dia Mercado nº 6 - 20 de Setembro de 2025



Programa de Rádio feito no Mercado Municipal de Portimão neste dia 20 de Setembro de 2025
Uma alegria ter a rádio em directo desde onde estão as pessoas. 
Ouça-nos e visite-nos



Ouça em diferido o directo de hoje


 





Sanzalando

Não Sabia Pescar

Eu em menino, que morava à beira do mar cheio de peixes, não sabia pescar. Todos os dias via os homens da terra regressarem a casa com os baldes cheios e as mulheres a sorrirem ao ver o jantar assegurado.

Um dia, cheio de coragem, peguei numa cana de caniço, um barbante comprido amarrado na ponta, um anzol semi torto e já com muitas idas ao mar e que tinha apanhado na velha ponte e corri até à marginal. Arranjei um dos hexágonos que faziam de barreira para não entrar cidade dentro. Atirei o anzol à água… e esperei. Esperou uma hora, depois duas. Nada de peixes mas muitas ideias me passaram na cabeça. Muitos retratos fiz, muitas estórias me lembrei. Apenas as ondas que batiam na muralha hexagonal parecia riam de mim como se se gozassem da minha impaciência.

- “Não sei pescar…” — murmurei desanimado, olhando para o anzol vazio. Cabeça rica e anzol vazio.

Um velho observador, que observava à distância, aproximou-se devagar, se calhar com medo de me importunar nos pensamentos, e não na pesca porque eu não pescava nada.
- “Não sabes… ainda. Mas o peixe não se apanha com pressa. Tens de aprender a ouvir o mar e a pôr um isco, alguma coisa no anzol para o peixe vir.”

E ensinou-me a escolher o isco certo, a lançar o fio com calma, embora tenha dito que aquilo não era cana de pescar, mas que era assim que se começava a reconhecer o movimento da água, os truques e magia da arte de bem pescar. Tentei de novo, seguindo cada instrução. No início, errei várias vezes, a descoordenação motora era patente: o isco arranjado ali à pressa, umas lapas que o velho arrancou com seu presente canivete, no caía ainda antes do anzol cair na água. Mas o velho sorria:
-  “Cada erro é só mais uma forma de aprender.”

Ao cair da tarde, quando o sol já pintava o céu com cores de fogo, senti finalmente um puxão. O coração bateu forte. Puxei a linha devagar, cada braçada uns centímetros de fio que vinha, como o velho me tinha ensinado, e lá vinha o peixe, pequeno mas brilhante, a saltar de alegria, porque acho ele sabia era o primeiro peixe que eu apanhava.

Sorriu como nunca antes o tinha feito. No passeio o peixe pulava e com ele pulava eu. O velho se aproximou mais um bocado, tirou o anzol da boca do peixe e deu-mo. Alegre lhe olhei, olhei para o velho e atirei o peixe na água. 

O velho sorriu-me, não por causa do peixe, mas porque tinha visto que percebera algo maior: aprender é como pescar, precisa de paciência, humildade e de alguém que nos ensine.

Naquela noite, ao chegar a casa contei a estória do meu primeiro peixe, fui aplaudido, acarinhado e deixei de ser o menino que não sabia pescar. Era o menino que aprendera a esperar, a tentar, e a acreditar. Nunca mais fui pescar na marginal mas sempre olhei com magia para aquele lugar mágico



Sanzalando

Programa 85 K'arranca às Quartas

Por problemas técnicos esta semana não h+a gravação para ouvir em diferido o programa feito no Dia do Herói Nacional de Angola em que tivemos um poema de Agostinho Neto, as Músicas de Badocha e de Frank, o Poeta dos Mortos Ancestrais, Eduardo Nascimento e a canção o Vento Mudou, para além de Esta Música tem uma História com Paulo Flores.
Mas a tecnologia de vez em quando prega-nos esta partida e vamos fazer mais como?
Ficamos com as rubricas habituais no Youtube

Sanzalando

16 de setembro de 2025

coisas

A gente não tem nem a noção de quando foi a última vez que viu os amigos da mesma rua de quando era criança. Nunca demos aquele "tchau" merecido pra aquele amigo que hoje a gente já não sabe mais chamar para conversar e não vê há anos e se calhar já nem sabe quem ele é se com ele cruzar na rua.
É estranho pensar que o agora contém o silêncio de tantas partidas que não teve direito nem a despedida nem a uma troca de morada.
O convívio de antes parecia leve e um belo dia, nada. Acabou. Esqueceu na penumbra do tempo passado. E depois ficas a saber que ninguém te ensinou a "nadar" no oceano da vida dos adultos. 

Sanzalando

15 de setembro de 2025

fui de jeep ver a farinha de peixe

Lembro-me de quando era adolescente e fui a Porto Alexandre (ao Tombwa de agora) pela primeira vez ver como se fazia farinha de peixe. Quem me levou foi o senhor Leovegildo no seu Jeep. A curiosidade falava mais alto do que qualquer coisa, porque sempre me perguntava como é que, a partir do peixe fresco, se conseguia obter aquele pó com cheiro forte que me diziam servia para tanta coisa. Nos livros não estava explicado e fazia tempo na minha terra já não se fazia mais. Nesse agora era só mesmo lá.

O caminho até lá já era uma aventura, areia de cada lado da estrada, assim faz de conta era ouro penteado de risca de alcatrão e brita. Me contava o senhor Leovegildo que quando havia cruzamento de carros ou ultrapassagens às vezes saltava um pedra da brita e lá se ia o vidro da frente do carro. Eu ri pois estava a pensar ele me enganava com o seu ar sério. Mas ele não era pessoa de brincar com coisas sérias. Só ouvi um pack e ele com o dedo da mão direita e empurrar o vidro e lá ficou apenas uma marquinha de lascado. Respirei fundo, lhe olhei e ele continuou sereno. É assim que se faz. E lá estava eu a fazer força no vidro quando via um carro a vir em sentido contrário. Coisa que se aprende naquela idade.

Cheguei lá e naquela rua comprida que marginalizava o oceano comecei a ver muros e o mar se escondeu por dezenas de fábricas. O barulho do mar misturado com o movimento dos trabalhadores, os camiões a carregar sacos pesados, e aquele cheiro intenso de peixe que parecia agarrar-se à roupa. Eu estava em Porto Alexandre ( hoje eu tinha de dizer que estava em Tombwa).

Já não sei se era na sexta ou oitava fábrica que era a que ele trabalhava. Parou o Jeep e lá fui eu atrás dele. Ao entrar na fábrica, vi os peixes a serem descarregados em grandes quantidades, Era assim parecia usarem aspirador e depois vinha num tapete rolante até à fábrica propriamente dita. Depois eram cozidos, prensados, secos e moídos até ficarem em pó. Cada etapa parecia mágica e, ao mesmo tempo, dura — um trabalho de paciência e força.

O calor era sufocante e o cheiro, para quem não estava habituado, quase insuportável. Mas eu não conseguia desviar os olhos: estava a aprender algo que não se ensinava na escola, a ver de perto como se transformava o peixe numa riqueza.

Saí de Porto Alexandre (do Tombwa diria agora) nesse dia com a roupa impregnada de cheiro e a cabeça cheia de histórias. Foi uma experiência que me fez perceber o valor do trabalho e a importância das indústrias que sustentam tantas famílias como países.

Nunca mais fui lá ver as fábricas, nunca mais vi farinha de peixe.


Sanzalando

13 de setembro de 2025

A Voz da rádio

Eu tinha apenas 15 anos, mas já carregava um sonho diferente dos outros garotos. Enquanto muitos queriam ser jogadores de futebol ou músicos famosos, eu passava as tardes e noites dentro do pequeno rádio Rádio Clube da minha cidade. Edifício inacabado, três estúdios, uma sala de reuniões com um piano vertical, uma discoteca e uma secretaria. O resto era apenas fundações de uma sala de baile e se calhar gabinetes e mais estúdios. Nunca vi a planta pelo que estou a falar de cor.

Tudo começou quando pediu para ajudar o senhor Sousa Santos, o técnico mais antigo da rádio. Primeiro, só organizava discos, lia bilhetes de ouvintes e atendia ligações, ajustava publicidade e ajudava em gravações. Mas, aos poucos, fui ganhando confiança. Até que, numa noite que se calhar fazia frio, entrou no TicTac e fez uma rúbrica que era nem mais que o Senhor Fonseca, com pronuncia portuguesa do norte a criticar as coisas ruins da cidade.

A partir dali, nunca mais parei.

Eu adorava a sensação de estar ligado com pessoas que não via, mas sabia que o escutavam. Recebia cartas, bilhetes e até recados deixados na secretaria. Havia quem dissesse que a voz era calma, outros afirmavam que parecia trazer esperança e outras gostavam apenas de falar das coisas bonitas que eu dizia. Eu lia as redações que eu fazia sobre tudo e quase nada.

E tinha também ouvintes fieis que por vezes pediam músicas fosse aquilo um programa de discos pedidos.  Ela sempre ligava para pedir músicas românticas. João, mesmo sem conhecê-la, sentia o coração acelerar toda vez que reconhecia sua voz do outro lado da linha.

A rádio não era apenas trabalho. Era um lugar onde os sonhos ganhavam som, onde amizades surgiam sem rosto e onde, talvez, um primeiro amor estivesse a nascer través das ondas invisíveis do ar.

Um dia o sonho acabou. A Rádio fechou e meio século depois reabriu, numa onda diferente, num estar diferente. Eu era diferente. Os ouvintes são diferentes. Já sem pronuncia, ou sem pedidos musicais, se vai informando de modo a dar conhecimentos em voz que se ouve com ouvidos de pensar.



Sanzalando

12 de setembro de 2025

Os meus retalhos 40

Na  cidade  havia um médico muito diferente dos outros. Chamava-se doutor qualquer coisa que agora não me lembro, um homem já grisalho, mas com um sorriso que parecia de menino. Não usava fato nem bata, usava uma farda verde que depois passou a azul, porque dizia que o branco assustava e depressa de acastanhava o que assustava os pequenos e enchia de seriedade os adultos. 

Quando os doentes chegavam ao gabinete, em vez de ouvirem a frase fria “próximo!”, encontravam um homem que perguntava:

— Hoje você trouxe o seu coração pesado ou leve, a sua cara doente ou o sorriso fechado?

Alguns riam sem entender, outros se surpreendiam, mas todos acabavam se sentindo um pouco mais leves. O doutor acreditava que o riso era um remédio poderoso, e por isso fazia da consulta um pequeno espetáculo. Sempre uma palavra simples, um carinho, um trocadilho ou simplesmente um ar de quem não deve ser levado a sério.

Quando estava próximo de uma criança que ia apanhar uma injecção ele dizia:

- Vais sentir só a picadinha do mosquito… mas é mosquito brincalhão que não morde!

Os adultos também não escapavam. Para medir a tensão arterial ele dizia:

- Vamos ver se esse braço anda fofoqueiro… vou apertar pra ver se solta algum segredo. Cuidado com o que pensa que eu aqui ouço tudo.

Muitos saíam dali ainda com remédio na receita, mas com o espírito renovado, como se o corpo tivesse recebido não só cura, mas também esperança.

Alguns colegas médicos o criticavam: diziam que ele “não levava a profissão a sério”, queria era as velhinhas que lhe mimavam. Mas os doentes defendiam-no com fervor. “Doutor cuida da gente por inteiro”, diziam, “não só do corpo, mas da alma”.

Certa vez, uma senhora muito idosa lhe perguntou:

— Doutor, por que o senhor sempre brinca?

Ele sorriu e respondeu:

— Porque a doença já é bastante séria. O que posso dar, além do remédio, é um pouco de alegria. E isso não tem contraindicação.

E assim, entre gargalhadas e consultas, o doutor seguiu a sua vida até chegar o dia em que se reformou. Muitos juravam que ia voltar, não porque lá houvesse muita falta, mas porque os corações dos doentes sabiam brincar, junto com o médico que os tratava. Mas ele não voltou. Um dia alguém perguntou-lhe porquê e ele num quase silêncio respondeu:

- Tiraram os doentes e colocaram clientes.


Sanzalando

Programa 84 K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 10 de Setembro, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
É um programa de verão e verão que exercitamos a mente sem transpiração nem grande agitação
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica e voltámos a falar das ruas e estradas, a sua sinalética e coisas e tais.
Falou-se de Livros, através do filme Pixote, a lei do mais fraco com as palavras de Anabela Quelhas;
Esta Música tem uma história, com Tom e Ana Jobim e Eu não existo sem você, numa colaboração de José Leite; 
não faltaram os Tesourinhos Musicais com António Calvário, 
POEMA - Cidadezinha - de Mário Quintana, cantado por Márcio de Camilo
e e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.



Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

Se calhar foi o primeiro amor

Eu tinha apenas 16 anos, mas sentia como se carregasse dentro de mim um segredo maior do que o mundo. Desde o primeiro dia em que eu a vira, na sala de aula, tudo à minha volta parecia ter mudado de cor. O barulho dos colegas, a rotina cansativa da escola e até o som da campainha do liceu pareciam perder importância quando ela estava por perto. Acho ela vinha do Colégio das Madres ou então fui eu que acordei assim naquele dia, pois nunca lhe tinha olhado na forma de ver como a passei a ver.

Não sei nem explicar. Não era apenas o sorriso que me fazia perder o ar, nem os olhos que brilhavam quando ela falava de algo que eu gostava ou assunto de interesse. Era a sensação de querer estar ali, ao lado dela, todos os dias, como se o tempo só tivesse sentido quando compartilhado com ela.

Nos corredores, inventava desculpas para cruzar o seu caminho, para ter conversa. Na cantina, preferia esperar só para ter a chance de sentar-me ao lado dela na mesa que ela escolhia. À noite, quando já deveria estar a estudar ou dormir, ficava a olhar o tecto, torcendo para que uma mensagem dela surgisse assim projectada como no cinema.

Era um amor puro, desses que nascem na adolescência, cheio de sonhos e exageros. Não pensava no futuro distante, mas sim no próximo recreio, na próxima conversa, no próximo olhar. Queria vê-la sempre, como se a vida fosse mais bonita apenas quando ela estava presente. Um dia ela disse que o pai ia comprar a casa ao lado da minha. Acho houve um terramoto dentro de mim ou simplesmente foi uma festa de fogo de artifício na minha alma, pois se o meu corpo não deu pulos de alegria eu todo saltei de contente.

Os dias deixaram de ser iguais. As notas escolares subiram até parece eu era outro. Minha mãe desconfiava eu estava a fazer batota ou a lhe enganar. Mas era a realidade. Eu tinha-me renascido naquele primeiro dia de aulas no mesmo corpo mas outro eu lá dentro. 

Um dia ela mudou. Ficava mesmo ao alcance do meu olhar. Eu até que passei a ser caseiro. Masi desconfiada estava a Dona Minha Mãe. Ela perguntava a mim, no Liceu, nos amigos e ninguém sabia dizer nada. Era o maior segredo do mundo guardado em mim.

E, no fundo, eu ainda acredito que aquele sentimento, mesmo simples, foi tão verdadeiro. O tipo de amor que marca para sempre, justamente porque foi o primeiro e a memória nunca lhe vai apagar por mais poeira que lhe ponham em cima. 

Pena mesmo que ficou um segredo guardado por mim até num hoje qualquer.


Sanzalando

9 de setembro de 2025

Os meus retalhos nº 39

Não me gabando que até podia parecer mal, sempre foui considerado um bom cirurgião do hospital. Minhas mãos firmes e a calma diante da pressão eram conhecidas entre colegas e pacientes, assim como um certo mau feitio derivado da concentração e disponibilidade total para o instante cirúrgico. Durante anos, acumulou sucessos e salvou inúmeras vidas. Mas na verdade também com fracassos e com a impotência pela hora tardia a que a doença havia chegado às suas mãos.

Mas uma noite, após horas seguidas de urgência, foi chamado para uma cirurgia de emergência. O paciente tinha uma hemorragia interna grave. Entrei na sala confiante, como sempre, mas o cansaço nublava o raciocínio. Um pequeno detalhe, imperceptível, que me passou despercebido - no caminho para o bloco o paciente havia feito uma paragem cardio-respiratória. O que não me fora transmitido. Pequeno detalhe de comunicação, grande detalhe na intervenção

A cirurgia não terminou como esperava. Apesar de todos os esforços da equipe, o paciente não resistiu intra cirurgia..

Nos dias seguintes, fechei-me em silêncio. Pela primeira vez na minha carreira, senti o peso esmagador do fracasso. A pergunta não o deixava em paz: “E se eu tivesse sabido daquele detalhe a tempo?”

Mas, em vez de desistir, decidi encarar o erro. Voltei a estudar, revi protocolos, conversei com colegas, e, sobretudo, passou a ouvir com mais humildade as vozes ao seu redor. Descobriu que, embora os cirurgiões sejam treinados para buscar a perfeição, também são humanos.

Anos depois, com novos sucessos acumulados, contava essa história para os jovens internos, sempre concluindo:

— O fracasso dói. Mas, se aprenderes com ele, podes salvar muitas vidas que ainda estão por vir.



Sanzalando

8 de setembro de 2025

nadei na Praia das Miragens

Me disseram que a Praia das Miragens engana os olhos. De longe, o deserto parece prolongar-se até ao mar, como se a areia e a água fossem um só de cores diferentes. O calor distorce o horizonte, e o azul ondula em reflexos que confundem até os mais atentos.

Numa manhã de Março, decidi mergulhar ali, tal qual tinha feito na adolescência. Tinha imaginado histórias de pescadores, de amores e de como o mar daquela praia guardava segredos antigos, e de que quem ousasse nadar sentia-se entre dois mundos: o da terra árida e o do oceano infinito, na realidade e no imaginário, no quente calor do dia e na fresca noite. Estórias, pensei.

Entrei devagar, sentindo a frescura da água a cortar o peso do sol e a chegar-me ao osso. Depois nadei na forma desconjuntada de um nadador afundador. Cada braçada parecia abrir caminho entre miragens líquidas e imateriais pensamentos. O silêncio era profundo, apenas quebrado pelo estalar distante das ondas contra as rochas que marginam a marginal. Era eu e o sonho real de nadar no meu mar de criança.

Enquanto nadava, tive a sensação de não estar só. Havia peixes a acompanhar-me, prateados como lâminas, e acima dele as gaivotas riscavam o céu, como se vigiassem o meu percurso. A certa altura, olhei para trás e não reconheci a linha da costa: a areia misturava-se com a névoa do calor, e por um instante acreditei que poderia nadar para sempre sem encontrar uma maneira de voltar para trás.

Mas o mar devolveu-me a noção de regresso. Uma onda suave empurrou-me novamente em direção à praia, e saí da água com a respiração pesada, mas com o coração leve. Sentei-me na areia quente e percebi que nadar na Praia das Miragens não era apenas atravessar um pedaço de mar, era atravessar-me a si mesmo. Era colher cada pedaço de mim passado e devolvido ao presente

E ali, diante da imensidão, aprendeu que o mar, como a vida, às vezes nos confunde com ilusões, mas sempre nos devolve à margem certa.


Sanzalando

7 de setembro de 2025

Areia no Silêncio de uma joeira sem vento

Era uma manhã que tinha nascido sem cacimbo no Namibe, mas dessas em que o sol acorda antes de todos e espreguiça-se devagar pelas dunas sem a força do quente. O céu estava limpo, parado — nenhum sinal de vento, nenhuma folha mexia, nem uma brisa para me contar um segredo.

Eu, um menino de poucos anos, calções com suspensórios de cabedal, se calhar feitos no Estregildo ou comprados no Graça Mira, não faço a mínima ideia onde a minha mãe comprava a minha roupa, com os pés cobertos de poeira, corria tentando levantar uma joeira esquecida na casa da avó, faz tempo feita por um qualquer dos meus tios. Era velha, de lasca de cana gasta e papel fino, marcada pelas mãos de quem já lhe tinha levantado muitas vezes.

— "Vou brincar," disse, sem saber como exatamente se levanta uma joeira em dia que a brisa tirou folga..

Sentei-me na terra batida, joeira ao colo, respiração cansada da muitas corridas feitas para um lado e para outro. Tentei peneirar a areia seca com a minha mão pequena enquanto ia pensando como é que eu podia levantar aquela joeira que devia ter saudades de voar. A areia não dançava como nos dias de vento. O silêncio fazia companhia sem aquele assobio que entra no ouvido quando está de feição e até os passarinhos estavam calados.

Sacudi a joeira com força, imitando os gestos que me lembrava, mas a areia caída no papel parecia tinha cola e não se libertava.. Parei. Pensei. Peguei um punhado de pedrinhas pequenas, sementes secas, e folhas miúdas que o sol já tinha amarelado. Coloquei tudo na joeira e comecei a abaná-la devagar e parecia tinha inventado um novo instrumento musical.

Agora, a joeira cantava baixinho. Um som suave de coisas a se encontrarem no ar. As pedrinhas pulavam, as folhas giravam e eu ria sozinho, inventava vento com as minhas próprias mãos.

- “Se o vento não vem, eu viro vento,” disse, com um sorriso teimoso.

Naquela manhã sem vento, eu menino, fiz do nada um mundo. A joeira virou brinquedo, tambor, redemoinho e não pássaro que voa. E o Namibe, sempre tão silencioso, ficou cheio de barulho de imaginação.



Sanzalando

6 de setembro de 2025

Bom Dia Mercado nº 5 Rádio Portimão



Programa de Rádio feito no Mercado Municipal de Portimão



Ouça em diferido o directo de hoje


 





Sanzalando

5 de setembro de 2025

O meu sol ou de quem o apanhar

O sol de Moçâmedes parecia maior do que em qualquer outro lugar quando eu era criança ou adolescente. Numa trigésima mão comprei uma bicicleta que nem travões tinha. Eu queria era passear, andar por lá só assim feito explorador sem nada a explorar. Eu pedalava sem rumo, o vento quente na cara, a estrada dissolvendo-se no horizonte como uma miragem. Cada pedalada me afastava da certeza e me aproximava do silêncio do deserto. Faz conta eu pedalava para o fim de um qualquer princípio.

As dunas, douradas e imóveis, eram como guardiãs de um segredo antigo. De vez em quando, um lagarto cruzava rápido o caminho, lembrando-me de que até na imensidão árida há vida escondida. As carochas nem fugiam que até parece nos conhecíamos faz muito tempo. O cheiro salgado do mar vinha e ia, como se o Atlântico respirasse comigo quando eu me metia na estrada da Praia Amélia.

Foi quando percebi que estava perdido, não no medo, não na vida, mas numa estranha liberdade. Não havia placas, nem vozes, nem relógio. Só o som das rodas no asfalto quente e o sol, ardente, dominando o céu inteiro.

Ali, no meio do nada, entendi que me perder era também me encontrar.


Sanzalando

Programa 83 K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 3 de Setembro, tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
É um programa de verão e verão que exercitamos a mente sem transpiração nem grande agitação
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica e falámos de regresso às aulas 
Falou-se de Livros, Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett; Esta Música tem uma história, com Seu Jorge e A Amiga da Minha Mulher, numa colaboração de José Leite; não faltaram os Tesourinhos Musicais com Alex, o Fabuloso, POEMA - Pastelaria de Mário Cesariny na voz de Cláudia Clemente e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.

Fora do habitual foi a homenagem a Luís Fernando Veríssimo numa colaboração com Alberto Carvalho para além dos aniversariantes que também foram falados, Sérgio Godinho e António Lobo Antunes, neste último com  um texto de Alberto Carvalho também

 

Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

O Velho e o Mar de Areia

No coração do Namibe, onde o deserto beija o Atlântico, numa cidade quadriculada, vivia um velho chamado Chuinga. Já ninguém sabia a sua idade, mas todos juravam que nascera na areia e aprendera a caminhar com o vento.

Todos os dias, ao nascer do sol, ele se sentava na falésia, olhava para o horizonte. Diziam que esperava alguém. 

As crianças perguntavam:
— Avô Chuinga, quem o senhor espera?
Ele sorria, mostrando dentes brancos, gastos como pedras antigas, e respondia:
— Espero o mar que me prometeu voltar e substituir esse que está ai quase a morrer de saudade.

As crianças riam, pois o mar estava ali, diante deles, a bater forte contra as pedras da marginal. Mas o velho falava de outro mar, o mar de areia, que uma vez se movera como se fosse água, engolindo casas, cabras e até um homem que jurava ser mais rápido que o vento.

Numa noite de luar cheio, o vento soprou diferente, mais grosso, mais pesado. As dunas começaram a dançar. As crianças correram para casa, assustadas. Mas Chuinga ficou, de pé, os olhos brilhantes como se visse um velho amigo.

Na manhã seguinte, apenas pegadas iam até o meio do deserto — e paravam. Ninguém mais encontrou o velho.

Alguns dizem que ele foi levado pelo mar de areia. Outros acreditam que, encontrou o que esperava.

Desde então, quando o vento sopra forte no Namibe, as crianças escutam vozes que parecem risadas antigas, misturadas ao som das dunas que se movem como ondas. O velho Chuinga não envelheceu mais no deserto mais antigo do mundo, parou porque hoje tem a mesma idade que tinha quando era o velho que olhava o mar do alto da falésia.



Sanzalando

1 de setembro de 2025

Entre Vidro e Zinco, era assim a minha Luanda

Eu já estava em Luanda há seis meses, mas ainda não sabia ao certo como descrever a cidade. Do 12º andar do consultório, via a baía com a sua curva quase perfeita, os prédios de vidro refletindo o sol como se fossem promessa de modernidade. Mas, se baixasse os olhos um pouco mais, avistava telhados de zinco amontoados, becos sem pavimento e ruas de poeira vermelha. Era como olhar duas cidades sobrepostas, que fingiam coexistir sem se tocar.

De manhã, chegava ao trabalho de carro com motorista. No trajeto, o ar-condicionado abafava os ruídos da rua, mas não o suficiente para esconder os gritos dos cobradores dos candongueiros, nem o batuque improvisado de miúdos que pediam esmola nos semáforos. Ao parar num engarrafamento, via pela janela uma mulher equilibrando uma bacia de peixe seco na cabeça, oferecendo mercadoria sob o sol escaldante. Ao lado dela, um menino limpava os vidros de carros de luxo, talvez esperando uma nota estrangeira esquecida na carteira de algum expatriado distraído.

No almoço, comia no restaurante mais que habitual e com assinatura mensal, onde uma refeição custava o equivalente ao salário mensal de muitos. Os colegas angolanos, sempre cordiais, riam, mas também comentavam baixinho: “O patrão paga, porque aqui o preço não é para nós.” Nunca percebi se era brincadeira ou desabafo. Talvez fosse os dois. Claro, era o dono da Clínica que tinha feito o contrato. Que sabia eu de mais que isso?

Numa tarde, fui visitar um paciente que morava no musseque. Quer dizer, rodeado de musseque, blindado por muros altos e guardas à porta. Saí do carro e caminhei um pouco por ruas sem asfalto, entre casas de blocos, inacabadas, roupas penduradas em linhas improvisadas e crianças que corriam descalças atrás de uma bola de trapos. Não havia água canalizada, mas havia música — sempre música — que saía das colunas enferrujadas. O paciente recebeu-me com um sorriso largo, uma reprimenda por ter feito aquele pedaço a pé e ofereceu-me funge com molho de peixe e disse: “Aqui falta tudo, mas esta gente ainda ri.”

Naquela noite, de volta ao apartamento moderno, com gerador privado e vista para o mar, abri a janela. A brisa trazia o cheiro do sal, mas também um eco distante de vozes, gargalhadas e batuques que vinham do outro lado da cidade.

Foi então que entendi: Luanda não era uma cidade para ser compreendida; era para ser sentida. Um lugar onde luxo e carência caminhavam lado a lado, onde o brilho do vidro nunca conseguia apagar a resistência que florescia entre os telhados de zinco.



Sanzalando