12 de setembro de 2025

Os meus retalhos 40

Na  cidade  havia um médico muito diferente dos outros. Chamava-se doutor qualquer coisa que agora não me lembro, um homem já grisalho, mas com um sorriso que parecia de menino. Não usava fato nem bata, usava uma farda verde que depois passou a azul, porque dizia que o branco assustava e depressa de acastanhava o que assustava os pequenos e enchia de seriedade os adultos. 

Quando os doentes chegavam ao gabinete, em vez de ouvirem a frase fria “próximo!”, encontravam um homem que perguntava:

— Hoje você trouxe o seu coração pesado ou leve, a sua cara doente ou o sorriso fechado?

Alguns riam sem entender, outros se surpreendiam, mas todos acabavam se sentindo um pouco mais leves. O doutor acreditava que o riso era um remédio poderoso, e por isso fazia da consulta um pequeno espetáculo. Sempre uma palavra simples, um carinho, um trocadilho ou simplesmente um ar de quem não deve ser levado a sério.

Quando estava próximo de uma criança que ia apanhar uma injecção ele dizia:

- Vais sentir só a picadinha do mosquito… mas é mosquito brincalhão que não morde!

Os adultos também não escapavam. Para medir a tensão arterial ele dizia:

- Vamos ver se esse braço anda fofoqueiro… vou apertar pra ver se solta algum segredo. Cuidado com o que pensa que eu aqui ouço tudo.

Muitos saíam dali ainda com remédio na receita, mas com o espírito renovado, como se o corpo tivesse recebido não só cura, mas também esperança.

Alguns colegas médicos o criticavam: diziam que ele “não levava a profissão a sério”, queria era as velhinhas que lhe mimavam. Mas os doentes defendiam-no com fervor. “Doutor cuida da gente por inteiro”, diziam, “não só do corpo, mas da alma”.

Certa vez, uma senhora muito idosa lhe perguntou:

— Doutor, por que o senhor sempre brinca?

Ele sorriu e respondeu:

— Porque a doença já é bastante séria. O que posso dar, além do remédio, é um pouco de alegria. E isso não tem contraindicação.

E assim, entre gargalhadas e consultas, o doutor seguiu a sua vida até chegar o dia em que se reformou. Muitos juravam que ia voltar, não porque lá houvesse muita falta, mas porque os corações dos doentes sabiam brincar, junto com o médico que os tratava. Mas ele não voltou. Um dia alguém perguntou-lhe porquê e ele num quase silêncio respondeu:

- Tiraram os doentes e colocaram clientes.


Sanzalando

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