5 de dezembro de 2025

o segredo do morro de salalé

Nas vastas terras avermelhadas da banda, mesmo onde fica a Vila que já foi Arriaga e que agora lhe chamam de Bibala, tinha um imbondeiro generosamente grande que até parecia a fortaleza do  Morro de Salalé que ficava na ponta da sua sombra. Não era apenas um monte de terra, mas uma arquitetura gigantesca, uma torre de argila pura que parecia tocar o céu. Tão antigo quanto a memória da primeira chuva, ele era a casa de milhões de salalés, os pequenos obreiros que, ao longo de séculos, teceram aquela maravilha. Apetecia fazer um telhado para evitar o desmoronamento em dia de chuva no sopé da Chela. 

Para o povo das aldeias à volta, o Morro não era só um ninho de insetos. Era o guardião do silêncio, o lugar onde a sabedoria dos mais velhos se misturava ao murmúrio incessante da natureza. Ninguém lhe tocava, pois dizia-se que lá, onde a argila era mais fina e o sol mais forte, residia o espírito de Nzinga, a rainha-mãe dos salalés, que podia conceder um único desejo a quem fosse puro de coração.

Havia na aldeia uma jovem chamada Kianda, conhecida pela sua curiosidade indomável. Enquanto os outros jovens temiam o Morro, Kianda sentia-se atraída por ele, sonhando em descobrir o segredo da rainha Nzinga. O que ela desejava não era riqueza nem poder, mas sim a capacidade de ouvir a terra, de compreender os sussurros do vento que pareciam carregar histórias esquecidas.

Num ano, a seca apertou o povo da Bibala. A água dos poços secou, e os rios encolheram-se como os cabelos dos velhos cansados. O desespero abateu-se sobre a vila. O velho Soba lembrou-se então da lenda de Nzinga e do desejo que ela podia conceder.

Kianda, movida pela compaixão, decidiu ir.

À luz da lua crescente, ela iniciou a subida. O Morro, liso e duro como pedra, parecia observá-la. Sentia os pequenos salalés a correrem por debaixo da superfície, como um coração a palpitar. Ao chegar ao topo, o ar tremeu. Não havia um palácio de rainha, nem um trono de ouro, apenas um único buraco no cume, por onde soprava um bafo quente e perfumado a terra.

Kianda ajoelhou-se e, com a voz quase sussurrada, pediu: "Rainha Nzinga, não peço por mim. Peço para que a minha gente possa ouvir onde a água se esconde, para que saibam onde cavar e onde a vida espera."

O silêncio que se seguiu foi mais alto do que qualquer grito. Sugundos depois, do buraco, subiu um ténue pó de terra avermelhada que a envolveu. Kianda desceu o Morro, vazia de esperança, mas com um estranho zumbido nos ouvidos.

Ao chegar à aldeia, notou algo novo. Quando fechava os olhos, conseguia sentir a paisagem. Ela ouvia o barulho fresco da água subterrânea a correr, como o som de um tambor distante, vindo de uma zona de mato seco.

Guiada por este novo "ouvido da terra", Kianda levou os homens para lá. E cavaram. E cavaram. Até que, finalmente, a água jorrou, pura e abundante, salvando Bibala da seca e da morte certa.

Kianda nunca mais regressou ao topo do Morro. Ela não precisava. A rainha Nzinga tinha-lhe concedido não um desejo, mas um dom: a capacidade de ser a voz da terra.

A partir desse dia, o Morro de Salalé não foi só o guardião do silêncio, mas também o sussurro da esperança. E Kianda, a "mulher que ouve a água", tornou-se a nova guardiã da sabedoria, lembrando a todos que, mesmo nos mais pequenos obreiros da natureza, se esconde o maior dos milagres.



Sanzalando

4 de dezembro de 2025

eu e o mar

Era ainda cedo quando cheguei à praia. A areia ainda estava fria e o vento da manhã trazia consigo o cheiro fresco de mar. Fiquei ali parado, quieto, como se tivesse medo de assustar o mar, de lhe acordar num acordar sobressaltado, daquelas calemas que vão até na falésia da fortaleza e suja a estrada de terra, pedras e mar..

O horizonte era uma linha azul infinita que parece é recta mas é curva tal e qual a terra o é. Olhos arregalados, porque sempre me disseram que o mar era grande, mas ninguém dissera que era também vivo. As ondas vinham e iam como se respirassem, e cada uma parecia querer contar-me um segredo.

Sentei-me na areia e fiquei a ouvi-las. A primeira onda contou-me sobre peixes que brilhavam como estrelas debaixo d’água. A segunda falou de barcos que cruzavam mundos. A terceira… a terceira só suspirou, como quem carrega uma saudade antiga.

- O que foi? — perguntei-lhe.

A onda não respondeu, recuou muda após tocar-me os pés suavemente. Levantei-me e entrei alguns passos no mar. A água estava fria, mas não assustadora.

- Eu não entendo — disse baixinho. — Mas prometo voltar para ouvir mais.

E foi aí que o mar, pela primeira vez, sorriu-me, com uma onda pequena e morna que me chegou aos joelhos. Era como um abraço, pensei.

Naquele dia, descobri que o mar não se vê apenas com os olhos. Vê-se com a alma, e ouve-se com o coração. E por isso, desde então, sempre que a vida me parece grande demais, eu volto à praia, sento-me na areia fria e deixo o mar contar-me mais um pedaço da sua estória infinita.



Sanzalando

3 de dezembro de 2025

Livro - Afonso Cruz - Programa K'arranca às Quartas 96


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Crónica de João Portelinha da Silva (2) - Programa K'arranca às Quartas 92


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Esta Música tem uma História 38 - Os Quatro e Meia - Na escola - Programa K'arranca às Quartas 96


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Tesourinhos Musicais 71 - OS Diamantes - Programa K'arranca às Quartas 96


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Crónica 84 - Programa K'arranca às Quartas 96


Sanzalando

Programa 96 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 26 de Novembro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
Hoje fizemos um programa especial, apesar de todos os K'arranca às Quartas o serem. 
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica ou Coluna ou seja lá o que fôr sobre A literatura lusófona e este Programa 
Falei do Afonso Cruz  Esta Música tem uma história trouxe os Quatro e Meia e Na escola, numa colaboração de José Leite; 
não faltaram os Tesourinhos Musicais hoje com Os Censurados
POEMA de Joaquim Pessoa - Morrer de amor é assim 
e João Portelinha da Silva, cronista no K'arranca às Quartas que falou de Agostinho Neto e António Jacinto
e e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.
Falei do quando em vez de como e do que
O K'arranca às Quartas é um programa para ouvir com ouvidos de pensar e o tema, sempre o tema de ouvir para pensar



Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

uma esplanada na minha cidade

Na minha pacata cidade, aninhada entre o deserto e o mar, havia uma esplanada que parecia uma janela do tempo. Não era um lugar qualquer; era um ponto de encontro onde as gerações se entrelaçavam, um testemunho vivo de que o tempo, embora implacável, também podia ser generoso.

Depois do almoço o lado esquerdo da esplanada pertencia aos "Velhos Sábios". João Trindade Junior, Figueiras das Ameijoas, João Aldrabão, Artur Gomes, e mais uns quantos. Sentados em cadeiras de chapa, gastas mas confortáveis, os senhores todos com cabelos grisalhos e alguma brilhantina, olhares serenos falavam do dia. O cheiro do café e as páginas dos jornais amarrotados contrabalançavam a conversa ao tom de desafio. Ali, o João Aldrabão, um pescador que não sei se lá foi alguma vez, até parecia o Raul Gomes, pai do Artur, a falar de peixes que eram tão grandes que acho não cabiam no barco onde iam e mais com histórias de mar para dar e vender, jogava xadrez verbal com o João Trindade, benfiquista de gema, despachante de alfândega e ar muito sério porém sorriso que mostrava o desafio. Nestes tempos sem pressa, o melhor remédio é uma boa prosa e um café forte, costumava dizer o Sr.Reis, enquanto observava o movimento da rua com um sorriso enigmático e via o seu café cheio.

O lado direito eram jovens. Uns já considerados adultos outros ainda adolescentes. Era um ponto de aprendizagem, com o lado contrário e também de má linguagem, num corte e custura que nem velhas alcoviteiras. Todos eram passados a pente fino. À tarde, a esplanada começava a ganhar uma nova energia. Aos poucos, os jovens da cidade começavam a aparecer, paulatinamente ocupando o lado esquerdo porque eles eram homens de trabalho. A maior parte estudantes, uns ainda com livros outros já sem eles, gastavam o tempo até terem tempo de ir para o Áero-Clube jogar bilhar, na maior parte das vezes ao perde- paga. 

A Esplanada da Oásis deixou de ser apenas uma esplanada do café, tornou-se um símbolo de união, um lugar onde o passado e o futuro se encontravam no presente. Era um lembrete de que, apesar das diferenças de idade e de experiência, todos partilhavam a mesma humanidade, a mesma necessidade de conexão e a mesma sede de histórias para contar e ouvir. E assim, na pacata cidade, a esplanada continuou a ser um refúgio, um porto seguro onde as gerações se encontravam, aprendiam e celebravam a beleza da vida em todas as suas fases.



Sanzalando

2 de dezembro de 2025

o meu papagaio de papel

Numa ensolarada tarde de verão, na minha cidade de ventos do deserto onde a minha avó dizia que o que estragava tudo era o vento leste, vivia eu que além de adorar chuinga também gostava de papagaios de papel. Sempre sonhei em ter o maior e mais bonito papagaio de papel, e que voasse tão alto que pudesse tocar as nuvens.

Um dia, enquanto saboreava um gelado comprado no Tico-Tico, de morango ou baunilha por serem tão diferentes eu agora não me lembro, tive uma ideia brilhante. "E se eu fizesse um papagaio de papel que parecesse um gelado gigante?" Usei a imaginação e desenhei na cabeça um papagaio de papel com listras vermelhas e brancas, uma ponta castanha como se fosse o cone e um delicioso aroma de morango e baunilha voando no ar.

Passei a semana a desenhar e a construir o meu papagaio de gelado. Usei papel colorido, varetas leves feitas de caniço e muita cola feita de farinha. A minha mãe, habilidosa, ajudou a cortar e construir a cauda, que ela fez parecer um a derreter, escorrendo em cores berrantes.

Finalmente, o dia do papagaio ficar pronto chegou. Levei o meu papagaio de gelado para o campo aberto, perto do campo do Benfica, lá para o lado dos estaleiros do Guerra, onde não havia postes nem antenas nem outros empecilhos. Ali era eu e o meu papagaio que era diferente de todos os outros que eu já tinha visto. Ele era grande, colorido e tinha a forma de um delicioso gelado. Não, já tinha feito joeiras coloridas mas agora eu queria um papagaio de papel como um dia vi num qualquer filme de matiné, possivelmente feito em Macau ou arredores. Eu agora tinha um papagaio de papel. Joeira era para os outros. 

Segurei o fio de sapateiro com firmeza e, com um empurrão do vento, o papagaio de gelado subiu no céu. Ele dançou e girou, as cores berrantes brilhavam ao sol. Náo tinha ninguém para olhar o meu papagaio de papel, original e lindo. O papagaio subiu cada vez mais alto, até parecer um pequeno gelado a voar em direção ao sol.

Enquanto o papagaio voava, senti uma onda de felicidade. Eu tinha criado algo único, algo que trazia alegria. Veio uma rajada mais forte, dei-lhe guita, ele subiu e rodopiou numa volta gigante e se desfez com estrondo quando bateu na areia dura do velho acampamento do Guerra. O meu papagaio de papel feito em forma de gelado tinha 'derretido' ao sol da minha alegria



Sanzalando

30 de novembro de 2025

Mulher bonita não perde oportunidades

Diz-se, por aí, que mulher bonita não perde oportunidades. Que o mundo se abre, generoso, quando ela passa, como se portas se movessem sozinhas, guiadas apenas pelo som dos saltos no chão, pelo caminhar como quem voa numa passarela. Mas a verdade, a verdadeira, raramente se mostra nessa superficialidade.

Porque, na maior parte das vezes, a mulher chamada “bonita” aprendeu cedo que o brilho do olhar atrai luz e também muitas sombras. Aprendeu a medir as palavras, a escolher batalhas, a perceber que a beleza que se lhe atribui é uma carta que joga a favor apenas quando não contradiz ninguém, quando não confronta, quando não exige.

Tantas descobrem ainda jovens que os elogios são créditos que o mundo cobra depois com juros: risos forçados em diálogos que não queria ter, convites que não podia recusar, expectativas que não tinha como cumprir.

Mas também descobrem outra coisa: que a beleza que se lhes atribuí pode ser uma ponte. Muitas decidem atravessar essa ponte com a própria bagagem, a ambição, o estudo, a coragem, as quedas que poucos veem. Não aceitam nada só porque se acham bonitas. 

Crescem a ouvir que mulher bonita não perde oportunidades. Hoje, passados os anos, muitas sorriem ao pensar nisso.

Não perde, não.
Ela cria.
Ela luta.
Ela exige.
Ela escolhe.

Porque a verdadeira oportunidade não está no olhar dos outros sobre ela — mas na maneira como ela se vê.

E, quando uma mulher percebe que a sua beleza é apenas uma das muitas forças que carrega… aí sim, o mundo inteiro se torna pequeno para o tamanho das suas possibilidades.


Sanzalando

29 de novembro de 2025

numa tarde de sol

Numa tarde ensolarada, o que não era coisa rara na minha cidade, um grupo de crianças animadas decidiu ir ao parque infantil. Não, desta vez não era para chatear o Sr. Sousa, era mesmo para brincar nos baloiços, no escorrega ou no cavalinho que quase parece a querer sair dos ferros que o prendiam. Lá estava a com seu vestido vermelho, o Tó e o seu irmão Marzé, e o, bem como a, e mais uns tantos outros que éramos dez. Todos cheios de energia, o que eu penso era próprio da idade.

Assim que chegaram, a correu diretinho para o escorrega. "Quem chega primeiro?", gritou ela, e escorregou com um uhuuu! O Marzé foi logo atrás, com um sorriso enorme no rosto. Era o mais novo mas talvez o mais destemido.

Depois de muitas descidas no escorrega, todos vimos a alto nos baloiços. "Olha como eu voo alto!", enquanto dava mais balanço num jogo de corpo e pernas. O e a juntaram-se a ela, e logo os três estavam a baloiçar tão alto que parecia que iam tocar nas nuvens ou simplesmente fazer 360 graus à volta do suporte. Esses mesmo pareciam artistas de circo. 

Depois de tanto baloiçar, os três decidiram sentar na área da areia que circundava os baloiços. Tal era o cansaço. Faziam montinhos ou buracos. Ganhavam tempo para respirar com calma. Tirando estes três, os outros sete calçaram os patins e foram para o ringue patinar. Era a minha praia, já que para artista de circo e seus trapézios metiam-me medo. 

Afinal de contas era apenas um dia de sol, numa cidade do sul e todos nós tínhamos idade para isso. Hoje, acho eu, nenhum dos que por ainda andam vão ao parque infantil e ao que sei também ainda não há o parque geriátrico

Sanzalando

28 de novembro de 2025

poema à sandes de atum

Era uma vez, nuns tempos distante, um jovem muito parecidinho comigo, o típico adolescente que passava horas a jogar bilhar num tal de Aero Clube ou mergulhado nas águas azuis do seu mar, navegando nos sonhos e inspirações e nas horas ocupadas ia ao Liceu.. Mas tinha uma paixão secreta: a poesia. E, para o desespero da mãe, essa paixão  manifestava-se nos momentos mais incalculados e inesperados.

Um dia, enquanto tentava escrever um poema épico sobre a melancolia de um sanduíche de atum ou de qualquer outra conserva, viu-se em apuros. Ele estava atrasado para a escola e a sua mãe, estava prestes a explodir.

"Vais faltar à escola outra vez?!", gritou, com a paciência esgotada como um último verso antes do chapadão.

Num relâmpago de inspiração poética, respondeu:

"Ó, mãe, não sejas assim, 

Pois a musa me abraça, 

Em versos de atum, 

Estou quase no fim

Deixo a carcaça

em troco de verso algum.

Mande-me lá um."

Mãe, acostumada com os devaneios poéticos deste seu filho, apenas suspirou. "Se não apareceres aqui agora, vou-me embora e ponho-te porta fora!"

Com esta ameaça velada, desceu correndo, ainda murmurando versos sobre a efemeridade do pão com manteiga que já nem tinha atum e muito menos sardinha.

No Liceu, a situação não era muito diferente, tinha o hábito de recitar os seus poemas em voz alta, sem se importar com o lugar ou a ocasião. Durante a aula de matemática, enquanto o professor explicava a fórmula do X ao quadrado levantou a mão.

"Dr. Coutinho, posso recitar um poema sobre a beleza dos números primos?", perguntou, com os olhos brilhando e cara de felicidade.

O professor, que já conhecia a "veia artística", respondeu com um sorriso cansado: "por favor, deixe os números primos em paz por um momento e tente entender o valor de 'x' nesta equação."

Mas não desistiu. No recreio, aproximou-se dum grupo de colegas que conversavam perto da cantina.

"Ó, bravos guerreiros da escola, Que correm pelo areal, Com a fúria de um leão, E a graça dum pavão, Deixem-me lhes recitar, Um poema sobre a glória, De um golo em câmera lenta, nesta bebida sedenta que escrevi na minha velha sebenta!"

Os colegas, acostumados com as suas performances, apenas riram e continuaram a conversa.  Apenas um deles, talvez o Beto ou o Manel, a memória já não ajuda, atirou: "devias escrever um poema sobre como chutar a bola no recreio da escola e quem sabe, aprender que a vida não é só escrever?

Ele muito parecinho comigo, era terrível no futebol, sendo a bola redonda e devido ao ar dentro, lhe fugia como diabo da cruz, apenas sorriu e murmurou: "A poesia é a bola da alma, e o meu chuto é a metáfora da calma!"

Apesar das brincadeiras e da incompreensão alheia, não se abalava. Ele continuava a escrever seus poemas, sobre tudo e sobre nada, sobre o amor e a dor, sobre a vida e a morte, e até sobre a importância de usar meias limpas.

Um dia, a escola organizou um concurso de talentos. Ele, é claro, se inscreveu para recitar os seus poemas. Todos tentaram dissuadi-lo. Colegas de sala, de recreio e até a afamília.

"Tens a certeza que queres fazer isso? Talvez seja melhor outra coisa qualquer, fazer uma magia ou ficar simplesmente a assistir", foi o que mais ele ouviu.

"A poesia é a magia da alma, o instrumento do coração! Eu preciso mostrar ao mundo a beleza das palavras!", respondeu, com a convicção de um poeta em ascensão.

No dia do concurso, subiu ao palco, um pouco nervoso, mas com a cabeça erguida e um ar profissional. A plateia, composta por alunos, pais e professores, estava em silêncio. Ele respirou fundo e começou a recitar um de seus poemas mais recentes, sobre a importância de ser ele mesmo.

"No meio da multidão, 

Em busca de aprovação, 

Não te percas, ó alma, 

Em caminhos alheios, 

Pois a verdadeira beleza, 

Está em ter a certeza, 

De que cada verso, é uma flor

Uma rosa ou outro símbolo de amor!"

A princípio, houve um silêncio constrangedor. Mas, aos poucos, as pessoas começaram a rir. Não era um riso de escárnio, mas um riso de admiração e carinho. Foram-se deixado levar pela paixão e pela sinceridade do poeta e declamador.

Ao final do poema, a plateia explodiu em aplausos. surpreendido e emocionado, não conseguiu conter as lágrimas. Ele não tinha ganho o concurso, mas tinha conquistado algo muito mais valioso: o respeito e o carinho de seus colegas e professores.

A partir daquele dia, continuou a ser o poeta da escola, mas agora, com um toque de reconhecimento. Os seus colegas até começaram a pedir para ele escrever poemas sobre seus próprios dramas adolescentes, desde a paixão não correspondida até à dificuldade de tirar notas boas em química.

E, o adolescente armado em poeta, muito parecido comigo, continuou a espalhar a beleza das palavras por onde quer que fosse, mostrando a todos que a poesia pode estar em tudo, até mesmo em um sanduíche de atum.



Sanzalando

27 de novembro de 2025

O Grande banho da Marginal


Era um daqueles dias quentes em Moçâmedes, em que até as lagartixas, osgas e carochas procuram uma sombra. Eu, todo animado, decidi que nada melhor do que um mergulho na Marginal para refrescar a cabeça. Calcei as minhas chinelas, que mais tarde soube chamarem-se as havaianas mas naqueles tempos eram simplesmente chinelos de plástico, já meio gastas para não queimar os pés no asfalto quente que até parece derrete.

Quando cheguei, o mar brilhava bonito, mas as ondas estavam com uma energia que parecia ter bebido café forte! Cheio de coragem, pensei:
- Hoje eu mostro quem manda aqui! Tirei a camisa, larguei os chinelos, corri, preparei um salto tipo mergulho olímpico e... parei.  A onda parecia esperar mas zás, rebentou nas pedras e caiu como chuveiro sobre mim. Olhei o mar e pensei ele me tinha vencido. Eu não mando nada aqui..

- Só queria cumprimentar o mar - disse, tentando manter a dignidade enquanto um grupo de miúdos ria ali perto.

Não satisfeito, tentei de novo. Entrei devagarinho, calculando a maré, não escorregando nas pedras e afundei o meu corpo para fora da zona pedregosa. Respirei fundo mas assim num de repente fui atirado por outra onda desprogramada contra as pedras, hexágonos e assim ligeiramente esfolado olhei surpreendido com o boiar das minha chinelas que mais tarde eu ia saber eram havaianas irem mar fora. Elas se aguentaram no mar e eu atirado para as pedras. Elas não queriam ia à agua. Mundo contrariado.

Enquanto os miúdos, que se tinham aproximado, gritavam:
— Tio! As tuas sandálias são mais rápidas que a tua natação!

Ri com vontade de chorar e com a camisa, que sobrara porém enxarcada, caminhei para casa num andar tipo saltinhos para demorar menos tempo cada pé no chão.

Mas a verdade é que, apesar das quedas, das ondas teimosas e das sandálias fujonas… sai dali com um sorriso, andar novo e com a lição que mergulhar na marginal não era boa ideia, antes na praia que era ali tão perto. Porque banho na Marginal de Moçâmedes é assim mesmo: se não cair, não valeu!



Sanzalando

26 de novembro de 2025

Livro - A Crónica dos Bons Malandros - Mário Zambujal - K'arranca às Quartas 95


Sanzalando

A Crónica de João Portelinha da Silva (01) - K'arranca às Quartas 95


Sanzalando

Tesourinhos Musicais 70 - OS CENSURADOS - K'arranca às Quartas 95


Sanzalando

Esta Música tem uma História 37 - Miguel Araujo - A Incrivel História de Gabriela de Jesus - K'arranca às Quartas 95


Sanzalando

crónica 83 - Programa K'arranca às Quartas 95


Sanzalando

Programa 95 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 26 de Novembro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
Hoje fizemos um programa especial, apesar de todos os K'arranca às Quartas o serem. 
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica ou Coluna ou seja lá o que fôr sobre "A Magia Invisível da Rádio
Falei do Livro "A Crónica dos Bons Malandros", de Mário Zambujal;  Esta Música tem uma história trouxe Miguel Araújo e "A Incrível História de Gabriela de Jesus, numa colaboração de José Leite; 
não faltaram os Tesourinhos Musicais hoje com Os Censurados
POEMA - Da Mais Alta Janela da Minha Casa - Alberto Caeiro na Voz de Mário Viegas  
e hoje foi a estreia de João Portelinha da Silva como crónista no K'arranca às Quartas
e e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.
Falei da capacidade do Homem vencer a Máquina porque esta não tem consciência, apesar de ter saber
O K'arranca às Quartas é um programa para ouvir com ouvidos de pensar e o tema, sempre o tema de ouvir para pensar



Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

Uma Estória de Fazer Rádio


Desde pequeno, eu gostava de falar sozinho. Conversava com o travesseiro, entrevistava o cão e fazia o relato do café da manhã. A família achava engraçado, mas só eu sabia o que aquilo significava. Um dia, sentei-me na sala e tinha nas mãos um radiozinho velho, daqueles que ainda tinham antena de metal que desaparecia dentro do rádio e um botão que fazia estática quando girava para sintonizar. Eu procurava nas três ondas a rádio que eu fazia e não encontrava. Não tinha a mínima noção que era preciso um emissor. Para onde ia o som da minha voz quando eu falava ao meu microfone que mais não era que o cartão velho de um rolo de papel higiénico?

- O rádio é magia - dizia-me. - A gente fala baixinho num canto… e chega no ouvido de alguém lá do outro lado da cidade. Pensava eu

Nunca esqueci. Cresci com essa ideia na cabeça: fazer rádio era conversar com o mundo e por isso logo que tive oportunidade lá fui pedir uma. E deram.

Consegui um estágio no RCM. Era pequeno, edifício inacabado, gente simpática. Mas, para mim, era como entrar num castelo, num palácio e aqueles eram os artistas que eu conhecia de voz. Três estúdios, sendo um minúsculo, outro médio e o grande; sala técnica comum aos três mas com seus gravadores de fita e consola independentes. O locutor punha discos e falava aos microfones, com fones enormes nos ouvido  e uma janela de vidro que separava o locutor da área técnica, quase como portal para outra dimensão.

No primeiro dia ao vivo, a voz tremeu. O microfone parecia um monstro à espera para devorar-me. Mas respirei fundo, lembrando-me das conversas com o cão e o travesseiro.

- Boa tarde, ouvintes! Eu , disse o meu nome e este é o Programa a Nossa Voz é o Mar e passou um bailinho da Madeira. Depois Tristão da Silva, Roberto Carlos e de quando em vez eu dizia uma frase para os pescadores que estavam no mar, em casa ou só a arranjar as redes.

A meio perguntei

- Alô… alguém está-me a ouvir?

Até hoje ainda não tive resposta




Sanzalando

25 de novembro de 2025

a paixão da voz fria de cacimbo

Na minha pequena cidade, onde não me lembro se as folhas caíam em tons de laranja quando chegava o cacimbo, eu vivia e convivia. Tinha para aí uns dezassete anos, cabelos castanhos sempre um pouco bagunçados a dar para o comprido e um sorriso simpático que raramente guardava. Era um sonhador, com a cabeça cheia de melodias e letras de músicas que raramente mostrava a alguém.

Meu mundo, porém, girava em torno de uma pessoa cujo o nome nem hoje consigo soletrar. Ela era como o sol de cacimbo, vibrante e cheia de vida. Os seus longos cabelos castanhos dançavam com o vento, e seu riso, quem mais não era que sorriso, me soava a melodia doce quando me era dirigido. Estávamos na mesma turma, a observava de longe, assim faz de conta era um admirador silencioso.

Eu sabia tudo sobre ela, seu amor por livros, a maneira como ela mordia o lábio quando estava concentrada, e seu sonho de viajar pelo mundo depois de se formar. Eu guardava esses detalhes no meu coração como tesouros, e a cada nova descoberta, o tal do amor crescia.

Tentei me aproximar, é claro. Nos estudos e nos trabalhos em grupo, eu garantia que estivessem no mesmo. Ela era sempre simpática, conversava com sobre as matérias e sorria de minhas piadas, às vezes sem graça, fazendo-me engraçadinho. Mas nunca passou de ser mais do que uma amizade cordial e simpática.

Uma tarde, enquanto caminhavam para casa depois da escola, sob o céu, que não sei se estava já alaranjado do pôr do sol, reuni toda a minha coragem. Lhe balbuciei o nome, senti o meu coração martelar no peito que nem piston de comboio de minério, e lhe disse que tinha escrito uma canção para ela. Tirei um papel amarrotado do bolso e tremendo comecei

Morena morena

Dos olhos galantes

Quem te deu morena

Esses diamantes

A música saída da minha boca devia parecer arrepio, tal a minha falta de jeito para ela.

Ela me olhou e disse

- Está giro.

Eu tinha mais versos para ler mas aquelas palavras, mais frias que o cacimbo, tiraram som às minhas e mudo, engoli em seco, e da minha boca saíram palavras que eu não sei como foram lá parar

- Obrigado. És a minha melhor amiga.

Ela me olhou, sorriu e disse:

-Ainda bem.

Caminhámos até a casa, sendo ela minha vizinha, sem trocar ou tropeçar qualquer palavra. Eu, sinceramente estava de rastos. À porta da minha casa despedimo-nos com um até amanhã que não tinha mais do que palavras porque era um até amanhã vazio.

Em casa o impulso foi rasgar o papel, porem, dei ao Beto no dia seguinte e uns dias depois ele gravou lá no Rádio e passámos num domingo de manhã. Nem ele sabia a estória e nem sei se ela ouviu rádio nessa manhã.

A minha versão de Júlio Dantas estava mais carregada de paixão que a dele e eu não tinha pena de mim. Mudei, cresci e os dezassete anos ficaram para sempre para trás. Nunca lhe cantei o poema, nunca mais ouvi-lhe a voz fria de cacimbo.




Sanzalando

24 de novembro de 2025

que cor tem a lembrança

Quando me apetece passear e está frio, agarro na memória e vou até aos lados da infância. Ali, quase ao virar da esquina, num tempo que não se mede em quilómetros nem em anos ou dias porque a esta distância a memória é ali num aqui tão próximo. 
hoje fui até 28 de Fevereiro de 2012 e nesse dia tinha ido talvez a muitas memórias atrás:

Olho o longe mar desde aqui na ponte velha. De verdade eu lhe conheci ela já era velha. Hoje ela continua velha. Se eu fosse mais velho eu ia dizer que ela nunca trabalhou porque eu nunca lhe conheci a trabalhar. Só serve mesmo é para dar mergulhos e apanhar mexilhão. Pelo menos é só assim que eu lhe conheço. Se calhar já vi aqui alguém de fio de pesca a apanhar mariquita e balhacu. Também nunca vi ninguém pescar outra coisa. Mas a verdade é que hoje estou na ponte velha que está mais velha mas ainda não tão velha que eu lhe chame de ruína arqueológica.
Mas eu vim aqui olhar o mar e chorar. Pudesse eu me deitava nestas tábuas carcomidamente velhas e chorava sem parar e sem pensar no mundo, nesse que tem lembranças que volta e meia vêem à cabeça faz de conta é martelo a te recordar de pessoas e gentes que não sabes mais o que é feito delas.
Olho à volta e se dum lado vejo areia, doutro pedras, em frente eu vejo mar azul sarapintado de barcos parados faz tempo querem descansar, mas não tenho onde me deitas sem me sujar dessas lembranças ausentes.
Aqui na ponte velha, mais velha que o meu tempo, recordo o Drs. Brandão, Balsa, Resende, e esposa do Dr. Coutinho, a Dra. Lucília Rocha, a Elsa. Nunca foram meus professores. Não sei se eram bons ou maus profs como se diz agora. Sei que nunca apanhei com eles nas aulas e não sei porquê hoje me fui lembrar deles, aqui na ponte velha onde não tenho onde me deitar.
Olho para mais longe, quero fugir deste choro calado que me veio à lembrança e vejo lá longe um barco grande que parece se vai embora. De que cor estão os meus olhos agora? pergunto-me sem se quer saber que os olhos brilhantes de lágrimas continuam a ter a mesma cor de olhos de outras horas.
Deitado na ponte velha, passo horas a pensar, está tudo sem cor porque eu vim aqui para ver o mar e chorar e afinal eu estou a me lembrar de gente que nem conheço ou alguma vez se apercebeu que eu existia. 
Não existe mais cor no lugar que eu olho de lembrança esquecida que me recordo desde aqui na ponte velha que eu conheço já velha.

Sanzalando


Sanzalando

23 de novembro de 2025

22 de novembro de 2025

Bom Dia Mercado 10



Programa de Rádio feito no Mercado Municipal de Portimão - 22 de Novembro de 2025
Uma alegria ter a rádio em directo. Mercado Cheio e já com Sabores de natal e nós cheios de coisas boas. 
Ouça-nos e visite-nos



Ouça em diferido o directo de hoje
Muito bom de ouvir. Sirva-se


 





Sanzalando

20 de novembro de 2025

As grandes aventuras no quintal que era a rua


Era uma vez meia dúzia amigos inseparáveis que moravam na mesma rua: a Luísa e o Pedro, a Lena e o Zé, o Eu, o João e o Álvaro. Todas as tardes, depois da escola, transformávamos a rua no nosso quintal e num enorme mundo de aventuras. Decidíamos brincar à apanhada e outras vezes fazíamos um twist e íamos brincar aos polícias e ladrões  assim do tipo dos velhos cowboys lá no Velho Oeste que a gente conhecia dos filmes!

Ninguém colocava um chapéu de palha nem se declarava xerife:

- Naquele quintal ninguém foge à lei! Era tiro e queda mais concretamente um Táu que se ouvia na cidade toda a julgar pelo berro.

Eu talvez fosse o que corria mais depressa, tendo mesmo chegado a dizer que em questões de luta eu era campeão dos 100 metros. 

Todos os dias éramos felizes e hoje já não sei brincar ao garrafão, nem à apanhada nem aquele jogo do lencinho. E a trouxa lavada? E o um dois três fica tudo quieto? Agora é mais o polegar que corre o teclado à procura de uma brincadeira para brincar com os olhos.

Aquela rua era um pedaço do paraíso ou nós éramos crianças?


Sanzalando

19 de novembro de 2025

Livro - Saudade dos tempos que não vivemos de Sedrick de Carvalho - Programa K'arranca às Quartas 94


Sanzalando

Esta Música tem uma História 36 - Chico Buarque - Fado Tropical - Programa K'arranca às Quartas 94


Sanzalando

Tesourinhos Musicais 69 - Linda de Suza - K'arranca às Quartas 94


Sanzalando

Crónica 82 - K'arranca às Quartas 94


Sanzalando

Programa 94 K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 12 de Novembro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
Hoje fizemos um programa especial, apesar de todos os K'arranca às Quartas o serem. 
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica ou Coluna ou seja lá o que fôr sobre "o sol na memória" 
Falei do Livro "Saudades dos Tempos que Não Vivemos", de Sedrick de Carvalho;  Esta Música tem uma história trouxe Chico Buarque e o Fado Tropical, numa colaboração de José Leite; 
não faltaram os Tesourinhos Musicais hoje com Linda de Suza
Ausência  foi o Poema de  Vinícius de Moraes voz de Marília Gabriela  
e e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.
Falei de Talento
O K'arranca às Quartas é um programa para ouvir com ouvidos de pensar e o tema, sempre o tema de ouvir para pensar



Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

Fui de Comboio a Vapor de Mocâmedes a Sá da Bandeira


Lembro-me bem daquele entardecer em Mocâmedes. O mar ainda não dormia, silenciosa a brisa trazia um cheiro salgado que se misturava ao aroma de carvão queimado da grande máquina preta que estava ali parada à espera das 11 da noite. Na estação, um comboio a vapor, mais pequeno bufava como um gigante impaciente, arrumando carruagens prontas para cortar o interior do sul de Angola rumo a Sá da Bandeira.

Eram para aí umas nove quando subi para a carruagem cor de prata e chapa ondulada com cabines onde iriamos seis, com janelas grandes que deixavam a luz do luar entrar sem pedir licença. 

Há hora marcada o chefe da estação apitou e, por outras vezes que vi, imagino ter levantado a mão com uma bandeira enrolada; o apito do comboio respondeu com um grito metálico e, lentamente, começámos a mover-nos ao mesmo tempo que uma coluna de fumo branco se erguia por aquele espaço. Lentamente fui sentindo que o mar ficava para trás e a paisagem, que o luar me deixava sonhar, ia-se transformando em hortas, pequenos rios e deserto, dunas que eu imaginava douradas mas agora parecia-me cinzentas escuro a perder de vista, pontuadas por árvores teimosas que cresciam onde menos se esperava.

Os passageiros trocavam histórias enquanto o ritmo cadenciado das rodas contra os carris marcava o tempo, tac tac, tac tac, como o bater de um coração. Nós, as crianças colávamos a cara às janelas, maravilhadas com o mundo que corria lá fora. De vez em quando, víamos animais a saltar ao longe, assustadas pelo barulho da locomotiva e na nossa cabeça nascia um filme de aventura.

Quando o comboio começou a subir rumo ao planalto, o ar tornou-se mais fresco. As montanhas aproximavam-se, imponentes e azuis na distância. Passámos pequenas estações, cada uma com pessoas que acenavam, talvez a familiares, talvez apenas ao comboio que trazia novidades do litoral.

Já perto do destino, o verde começava a dominar a paisagem. Depois de horas a rolar, ouviu-se um último apito. Lá estava ela: Sá da Bandeira, com as suas casas claras e ruas que subiam as encostas. Desci do comboio sentindo o chão firme, mas a cabeça ainda no embalo da viagem marcada ao ritmo do tac tac, tac tac da carruagem na junção dos carris..

Foi só então que percebi: aquela travessia não tinha sido apenas uma deslocação, mas um encontro com a terra, com as pessoas e comigo mesmo. Uma viagem de comboio a vapor tem disso transporta-nos muito além do destino final, tinha-me levado ao destino inicial, onde eu havia nascido.


Sanzalando

18 de novembro de 2025

o carro de rolamentos

Quando eu era criança, as tardes pareciam sempre ensolaradas e infinitas. Lá, na rua onde eu morava, o barulho mais emocionante que se podia ouvir era o “trrrr… trrrr…” dos carrinhos de rolamentos descendo a ladeira que começava na casa da D. Maria Guedes e acabava depois da curva dos Fonseca. Bastava isso e todo mundo largava o que estava a fazer e ia a correr para a rua. As mães contrariadas lá nos deixavam ir. D. Maria depois das 4 da tarde não podia descansar com o inferno à porta. Ou eram os carros ou eram as vozes e as discussões de que quem ganhou fui eu e não sei mais o quê. 

O meu carrinho era simples: tábuas reaproveitadas, pregos tortos e aqueles rolamentos que eu e meu primo fomos buscar na oficina do Abel. A direção era uma corda amarrada ao eixo onde púnhamos os pés, acho ela não era direcção, era só mesmo onde a gente segurava as mãos pois a direcção e os travões era o pé. Parece simples mas para a gente era tecnologia de ponta!

A ladeira da Dona Maria às veze incomodava o senhor Raul Gomes mas era o nosso, como se diz agora, autódromo oficial. Antes de descer, a gente se alinhava como se fosse uma corrida profissional:

— Preparar…  Já!

E lá íamos nós, o vento a puxar os cabelos para trás e os olhos semi fechados, adrenalina e medo, que era coisa que a gente ainda não sabia. Sempre tinha alguém que se esborrachava no meio do caminho, mas ninguém chorava, no máximo levantava com o joelho esfolado e gritava:

— Valeu a pena!

O melhor era quando a descida era perfeita. A gente chegava lá embaixo com aquela sensação de vitória, como se tivesse conquistado o mundo, ou pelo menos a rua inteira. E depois era só puxar o carrinho de volta lá pra cima e começar tudo de novo, até o céu ficar laranja e as mães chamarem para dentro porque era hora do banho e jantar.

Hoje, quando lembro dos carrinhos de rolamentos, eu penso que talvez a gente já soubesse, mesmo sem entender: felicidade é um pedaço de madeira, quatro rolamentos e uma ladeira inteira pela frente.



Sanzalando

17 de novembro de 2025

A Bicicleta Sem Travões


Era uma vez um menino, que por acaso até que era eu, que adorava aventuras, desde que não fosse longe de casa nem metesse matos e coisas complicadas de fazer medo.

Morava numa cidadezinha de poucas subidas e ruas quadriculadas. Um dia, sem dinheiro para mais, comprou uma bicicleta vermelha que se calhar quando era nova era brilhante, porém agora era um vermelho morto. Fora essa cor, fora não ter travões eu achara ter feito um belíssimo negócio. Acho foi o primeiro e único da vida. Assim sem consultar nem pedir conselho. Mas na verdade eu ficara tão feliz que nem nunca mais se lembrou dum detalhe muito importante… a bicicleta não tinha travões!

No começo, pedalava devagar, só para sentir o vento bater na cara e receber o vento da liberdade de movimento, mas também ver o mundo passar ao meu lado. Mas quanto mais andava, mais coragem ganhava, mais longe eu ia.

- Eu sou o ciclista mais rápido da minha casa! gritava, pedalando. Na verdade era o único.

Um dia, resolvi ir até na Torre do Tombo. Coincidência ou talvez só destino foi o dia em que deu um trambolhão que deixou marcas no corpo e na alma. Descer a maior descida da cidade, a SOS. A rua parecia uma montanha de tão inclinada. Respirei fundo, e quase dava a volta para casa, mas a coragem me empurrava para a ousadia. Pés nos pedais e… VOOOOM! A bicicleta disparou como um foguete, ganhou velocidade que não entrava nos meus problemas de matemática.!

De início comecei a rir, mas logo o riso virou susto, pânico, medo, pavor e sei lá mais o quê.

- Como é que eu paro?! gritei, com os olhos arregalados e a esperança de que o vento saído dos meus gritos travassem a descida vertiginosa que eu estava a viver.

Não passou ninguém, ninguém ouvia os meus gritos. Eu gritava. Aqueles cem metros deram para eu ver que a minha vida tinha sido curta. Como é que eu paro isto, continuava nos meus gritos a plenos pulmões.

- Se eu pudesse vendia já esta bicicleta! como se isso fosse uma maneira de recuar no tempo e não ter iniciado a descida. 

Passei os carris do comboio e imaginei dar um mergulho na baía saltando o passeio e os hexágonos e calhaus de protecção do mar. Mas eu ia bater no lancil e espalhardar-me ali.

- Que é que me deu na tola? pensei já sem forças para gritar e quase a desmaiar de medo

Tentei usar os pés no chão para travar, mas os sapatos só faziam parecer que eu acelerava. A bicicleta continuava a correr rápida que nem eu sentia mais o vento!

Quando chegou ao fim da descida… lá estava a marginal, virei à esquerda e acho só parei quando abri os olhos na cancela que vedada a entrada no porto.

Eu era pânico em todo o meu corpo.

- Porque é que não puseste o pé no pneu de trás para travar? disse-me o guarda na maior das calmas. Eu devia ser o mais branco que ele alguma vez tinha visto. Eu tremia quando balbuciei:

- Pôr o pé onde?

Ele levantou-se, veio ao pé de mim, agarrou o meu pé direito, dobrou-me o joelho, e o meu pé tocava na parte da frente do pneu de trás.

- Hã?! estupefacto consegui dizer

- Eu te vi. Te borraste de medo e não caíste porque deves ser filho de Deus. Deste a curva em zigue-zagues que nem sabes que sorte tens. sempre calmo a me dizer. 

Agradeci, ou não. Sinceramente não sei. o pânico era tanto que voltei a casa sem me sentar na bicicleta nem pôr os pés nos pedais. Acho ela esteve uns meses parada até que a minha mãe a deu a já não sei quem.



Sanzalando

16 de novembro de 2025

numa praia a sul

Era uma vez, numa ensolarada praia do sul de Angola, onde o zulmarinho encontrava a areia dourada, vivia uma menino chamado Sódeeu que ainda não tinha seis anos, com olhos brilhantes e um sorriso que podia iluminar o dia mais cinzento. O seu cabelo era cheio liso e saltitava enquanto ela corria, numa franja que cobria a testa.

Todos os dias, depois da sua mãe lhe preparar o pequeno-almoço, Sódeeu corria para a praia, num atravessar de estrada que era já ali, o seu lugar favorito no mundo. Lá, ela encontrava-se com o seu melhor amigo, um caranguejo atrevido que ele lhe chamou Cangarejo, ou Can, na forma mais clara e meiga que ele tinha. Gangarejo não era um caranguejo comum; ele tinha uma cor amarelo brilhante e, para Sódeeu, parecia que ele sorria sempre que o via.

Uma manhã, quando Sódeeu chegou à praia, Cangarejo estava a abanar as suas garras freneticamente. "O que se passa, Can?", perguntou Sódeeu, agachando-se. Can apontou uma das suas garras para o mar. Sódeeu olhou e viu algo brilhante à beira mar. Era uma garrafa de vidro antiga, com um papel enrolado dentro.

"Uma mensagem numa garrafa!", exclamou Sódeeu, os seus olhos arregalados de espanto. Com a ajuda de Can, que usou as suas garras para empurrar a garrafa para mais perto, Sódeeu conseguiu alcançá-la. Ele tirou a rolha e cuidadosamente desenrolou o papel.

Era um mapa! Mas não era um mapa comum. Estava desenhado com símbolos de estrelas do mar, conchas e peixes. No fundo, dizia: "O tesouro mais feliz de Angola espera por ti onde o sol encontra o mar ao pôr do sol."

Sódeeu e Can estavam tão entusiasmados! Decidiram que iriam seguir o mapa para encontrar o tesouro. Sódeeu segurou o mapa e Can correu à sua frente, apontando o caminho com as suas garras.

Eles seguiram os símbolos do mapa. Primeiro, o mapa indicava para seguir as estrelas do mar. Sódeeu e Can encontraram uma série de estrelas do mar cor-de-rosa e laranja que os guiaram ao longo da praia.

Depois, o mapa mostrava "atrás das conchas gigantes". Eles tiveram que saltar sobre pedras carregadas de conchas coladas, algumas maiores que  o próprio Sódeeu! Can era muito bom a escalar as rochas, e Sódeeu ria enquanto o via trepar.

Finalmente, o mapa os levou a um pequeno promontório rochoso, perfeito para ver o pôr do sol. Sódeeu e Can sentaram-se na areia, esperando, enquanto o sol começava a descer no horizonte, pintando o céu com tons de laranja e rosa que nem pintura de queimada.

Quando o sol tocou a linha do mar, um brilho dourado espalhou-se pela água. Sódeeu e Can olharam um para o outro, os seus corações saltavam cheios de alegria. O tesouro não era ouro nem joias; era a beleza mágica do pôr do sol, partilhada com um amigo.

Sódeeu e Can assistiram ao pôr do sol até que a última luz dourada desapareceu. Sódeeu abraçou Cangarejo e disse: "Obrigada, Can. Este é o melhor tesouro de sempre."

E assim, todos os dias, Sódeeu e Can continuaram a explorar a praia, descobrindo novos "tesouros" em cada canto – uma concha perfeita, uma onda brincalhona ou simplesmente a alegria de estarem juntos. E a praia do sul Angola, com o seu mar azul e areia dourada, continuou a ser o palco das suas maravilhosas aventuras, mesmo das aventuras que só aconteciam na imaginação.



Sanzalando

14 de novembro de 2025

O deserto e o mar

Em Moçâmedes, na cidade que respira a poeira e o sal do antigo Saco, vivia uma anciã chamada Dona Dina. Seus olhos eram dois poços fundos, acinzentados como a neblina matinal que beija a costa. Dina não era daqui, mas a sua alma tinha-se misturado com o pó do deserto, que aqui se estende num manto sem fim, até encontrar o mar.

Na sua juventude, ela tinha percorrido os quilómetros entre Moçâmedes e Tômbua, quando ainda era Porto Alexandre, não em automóvel, mas a pé, seguindo a linha ténue onde a vegetação teimava em nascer.

O deserto, para Dina, tinha uma voz: era o Silêncio. Um silêncio que esmagava, feito da poeira rubra do planalto, dos cumes áridos que pareciam ossos gigantescos de um passado esquecido, e do sussurro das folhas secas da Welwitschia mirabilis,  a planta-símbolo, que vive mais de mil anos, agarrada à humidade da névoa.

"O Deserto", dizia Dina, aos seus netos, "é o Tempo. Ele não corre, ele espera. E a paciência dele é a lição que o mundo moderno esqueceu."

A vida de Dina, contudo, estava ancorada não no silêncio, mas no rumor incessante do Oceano Atlântico, que beija a orla de Tômbua. Tômbua era o seu oposto: uma cidade nascida da força e da fartura do mar, do cheiro intenso do peixe fresco e salgado, e do grito das gaivotas.

Na baía de Tômbua, onde a Corrente Fria de Benguela trazia riquezas geladas do sul, a água era de um azul-escuro profundo. Essa corrente, poderosa e misteriosa, carregava a vida que alimentava as indústrias da pesca e, mais importante, a alma daquela terra e a garra das suas gentes.

O Mar, para Dina, tinha outra voz: era o Movimento. O fluxo e refluxo, a chegada e partida das embarcações, o ir e vir das marés. Era a voz da emoção, da incerteza, e da Memória.

"O Mar", dizia ela, "é a História. Tudo o que é varrido da terra, ele guarda nas suas profundezas, esperando que a próxima onda o traga de volta à luz." E um dia trás, assim como um dia ele recupera o que lhe tiram.

A verdadeira beleza, Dina sabia, não estava em Moçâmedes ou em Tômbua isoladamente, mas na faixa de transição que as unia.

Certa manhã, guiada pela neblina fria que vinha do mar e se infiltrava no deserto, Dina decidiu percorrer o caminho. No início da viagem, a areia parecia engolir tudo, até o som. O sol, ainda baixo, pintava as dunas com sombras longas e fantasmagóricas. Ela sentia-se pequena perante a eternidade do deserto.

Mas à medida que avançava para sul, em direção a Tômbua, a paisagem começava a ceder. A aridez dava lugar a pequenos arbustos raquíticos, depois a matos, e finalmente, o cheiro de sal tornava-se esmagador.

A neblina, que era apenas humidade para a Welwitschia, transformava-se numa promessa de chuva para o deserto. Era o Mar a alimentar o Deserto com o seu hálito. E o Deserto, por sua vez, com o seu silêncio vasto e o seu relevo empoeirado, protegia o Mar das pressas da humanidade.

Ao chegar a Tômbua, Dina parou na praia. Tirou um punhado de areia fina e rubra da sua velha saca de pano. Olhou para o mar, para a espuma branca a desfazer-se na costa.

"Estou aqui, Mar," sussurrou ela. "Trouxe-te o Silêncio do Deserto."

E atirou a areia para a onda que chegava. A areia desapareceu, misturando-se com a água, tornando-se, por um instante, o fundo do oceano.

Dina sorriu. Ela percebeu que a lição era essa: Não há vida sem contradição. Moçâmedes era a paciência, Tômbua era a memória. A força daquela terra, a Província do Namibe, vinha da dança perpétua entre o tempo infinito da areia e o movimento incessante da água.

E assim, Dina sentou-se na praia, sentiu o ar frio e salgado no rosto, e o calor do sol a secar as lágrimas. Ela era o elo, o ponto de encontro, a tradutora entre o Silêncio e o Movimento. E naquele momento, naquela faixa de terra inóspita e bela, o Deserto e o Mar eram, afinal, a mesma coisa.



Sanzalando

13 de novembro de 2025

O Deserto Sorriu

Já não sei quem foi mas me disseram que o deserto do Namibe é o mais velho do mundo. Nunca lhe vi os cabelos brancos nem o seu andar anquilosado. É verdade, não se mede a idade do deserto em séculos, mas em silêncios. É um lugar onde a areia, pintada em tons de ocre e vermelho-sangue ou de ouro pôr de sol, conhece a paciência. É ali, entre as dunas e o mar frio, que vive o Kuroka.

O Kuroka não é um homem, nem uma criatura de imaginação, mas a própria areia que às vezes é rio. Ele dorme sob o sol quente, e a sua rotina é a ausência de mudança. Os seus dias são medidos apenas pela névoa e sua a Ondoka, a sua voz de sabor a mar, que sobe do Atlântico e lhe oferece um beijo frio e fugaz, é o único alívio que conhece. A chuva? A chuva é uma lenda, uma história murmurada pelas poucas Welwitschia mirabilis, que esperam há mil anos que ele um dia alague todo aquele mar de areia.

Mas este ano, o Kuroka acordou com um cheiro estranho. Não era o aroma salgado e metálico do orvalho da neblina. Era um cheiro a terra velha, a poeira que se preparava para se render.

No alto do céu, onde o azul é geralmente um vitral impiedoso, uma sombra começou a crescer. Não a sombra escura e ameaçadora das tempestades tropicais, mas sim um cinzento tímido, como se o céu estivesse a hesitar.

E então, o Namibe sentiu-o.

Não foi um dilúvio, não foi a torrente impetuosa das monções de outros lugares. Foi o som mais raro e delicado que o deserto pode ouvir: gotas.

Uma. Depois duas. E tantas foram que o Kuroka estremeceu. Cada gota que atingia a areia parecia um grito minúsculo. A areia, seca até ao tutano, absorvia a água com uma velocidade voraz. O som da chuva a bater nas dunas não era o de um tambor, mas o de mil pequenos sussurros ansiosos de quem sofre em silêncio.

Por um momento, o deserto parou de respirar. As criaturas que vivem sob o manto do calor — as carochas que apanham a névoa, os lagartos de pés espalmados, saíram das suas tocas, paralisadas pela novidade. Os seus olhos negros e redondos refletiam a escuridão do céu.

A chuva durou apenas meia hora. Uma benção escassa, um piscar de olhos de humidade.

Quando o sol rasgou o cinzento e voltou a reinar, tudo parecia como antes. As dunas estavam vermelhas e douradas. Mas algo tinha mudado sob a superfície.

Em menos de 24 horas, o Namibe, o deserto que parecia condenado à eternidade da secura, começou a sorrir.

Aqui e ali, pequenos tapetes de verde — um verde que parecia roubado à memória de um passado distante, começaram a espreitar por entre os grãos de areia. Flores minúsculas, de tons amarelos, roxos e brancos, que tinham esperado meses, anos, talvez décadas, num sono letárgico, irromperam com uma urgência desesperada.

O deserto estava vivo. A paisagem havia trocado o seu manto de fogo por uma delicada pintura feita em aquarela.

A chuva no deserto do Namibe não é apenas água; é um milagre. É a prova de que a vida espera, por mais improvável que pareça a sua chegada.

E o Kuroka, que já não feito de areia correu e sentiu-se rio a correr para o mar. Ele sabia que o verde duraria pouco. O sol voltaria a reivindicar o seu trono, e o deserto voltaria ao seu silêncio de séculos e ele voltaria a ser areia. Mas, por agora, ele podia murmurar baixinho aos ventos a história daquele dia fugaz, o dia em que o céu chorou e a areia floresceu.



Sanzalando

12 de novembro de 2025

Autor - Luandino Vieira - K'arranca às Quartas 93


Sanzalando

Esta Música tem uma História 35 - Gisela João - Meu Amigo Está Longe - K'arranca às Quartas 93


Sanzalando

Tesourinhos Musicais 68 - Artur Garcia - K'arranca às Quartas 93


Sanzalando

Crónica 81 - K'arranca às Quartas 93


Sanzalando

Programa 93 K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 12 de Novembro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
Hoje fizemos um programa especial, apesar de todos os K'arranca às Quartas o serem. 
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica ou Coluna ou seja lá o que fôr sobre "porque fazemos tudo a correr" 
Falei de Luandino Vieira;  Esta Música tem uma história trouxe Gisela João e Meu Amigo Está Longe, numa colaboração de José Leite; 
não faltaram os Tesourinhos Musicais hoje com Artur Garcia, 
Poema:  Poeta    Alice Neto de Sousa  
e e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.
Falei da Curiosidade e Preguiça
O K'arranca às Quartas é um programa para ouvir com ouvidos de pensar e o tema, sempre o tema de ouvir para pensar



Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

11 de novembro de 2025

Eu e os 50 anos de Angola independente


Adolescente ouvi histórias sobre a luta pela libertação e sobre os sonhos de um país livre. Hoje, ao celebrar meio século de independência, sinto que a história de Angola é também parte da minha identidade.

Angola percorreu um longo caminho — da guerra à paz, da reconstrução ao desenvolvimento. Havendo ainda muitos desafios: desigualdade, juventude desempregada, e a necessidade de fortalecer a unidade nacional.

Mas há também orgulho: os angolanos são um povo resiliente, criativo e cheio de esperança. Os 50 anos de independência são um convite a olhar para trás com gratidão e para o futuro com responsabilidade. 

Dizem que o tempo passa depressa, mas cinquenta anos é tempo suficiente para nascer, crescer, errar e recomeçar — tanto para uma pessoa quanto para uma nação.

Eu renasci com a independência, num tempo em que o hino era cantado com orgulho e a bandeira tremulava livre. Para mim, Angola sempre foi Angola — inteira, independente, com o seu jeito forte e contraditório de existir.

Quando ouço os mais velhos falarem, percebo que o país foi sonhado e nascido entre sacrifícios, mas percebo que quando falam de 1975 é assim como quem fala do nascer do sol depois de uma longa noite. Falam de esperança, de lutas, de promessas. 

Hoje, Angola faz cinquenta anos. E eu, que sou parte dessa metade de século, carrego comigo uma mistura de orgulho e inquietação. Orgulho porque Angola resistiu, porque dança mesmo quando o chão ainda é duro e irregular, porque o riso ainda vence o cansaço e a desmotivação. Inquietação porque ainda há tanto por fazer, tanta desigualdade a corrigir, tanta juventude à espera de oportunidade.

Mas talvez ser angolano seja isso mesmo: viver entre a memória e a esperança. Saber que a liberdade não é um ponto final, mas uma frase que ainda se escreve.

Eu e Angola caminhamos juntos — ela com as suas cicatrizes, eu com as minhas dúvidas e meus medos. E, juntos, sonhamos o mesmo sonho: o de um país mais justo, mais aberto, mais nosso.

Cinquenta anos depois, continuo a acreditar. Porque acreditar, afinal, também é uma forma de amar.



Sanzalando

10 de novembro de 2025

vou por aí

Vou por aí, estrada fora, levo um livro, talvez Fernando Namora. Vou sem rumo, soletrando pensamentos, daqueles tempos em que trabalhava e agora só tenho retalhos de memória que me fazem ter uma história para lembrar.
Vou por aí, dançando ao som duma música que invento, pulando ao sabor do vento, vagueando porque tenho tempo.
Vou, sem rumo, ideia fixada num qualquer lápis mental num mapa imaginário. Vou sem qualquer mal, sem pintar qualquer cenário, real ou inventado, vivido ou imaginado. Vou por aí porque não me apetece ficar aqui.


Sanzalando

9 de novembro de 2025

Inteligência artificial versus a natural, que é a minha

Agarrei num texto de 2003, primeiro ano que tenho guardado em arquivo digital, e fiz um copy-past para um verificador de uso de IA. Surpresa minha, deu 87 % de uso. Se naquela altura eu usava inteligência artificial, isto é, há 22 anos eu a usava e era mais novo, quer dizer que agora, passado esses anos e com alguns neurónio queimados, nos múltiplos stresses da vida eu devo ter muito menos de inteligência natural e muito mais de artificial, pelo que o que eu escrevo deve dar uns 110 % artificial e 120  % de delírio. E logo agora que eu pensava que ia usar o que me resta da inteligência natural...

Eu tenho 69 e um telemóvel que parece mais inteligente do que muita gente. Todas as manhãs, antes mesmo de acordar, uma música  suave me diz “bom dia” que vem do pequeno aparelho. O aparelho lembra-me de tomar os remédios, medir a tensão se eu fosse racional e até de fazer coisas durante o dia. Mas eu olho para ele e dou comigo a gargalhar porque penso se eu o programar eu deixo de pensar e eu passo a ser um robot dessa coisa pequena que antes servia apenas para telefonar.

A inteligência artificial entrou devagarinho na vida, como quem não quer incomodar. Primeiro foi o tal de relógio que contava passos que eu dava por dia; depois, a app que avisa quando o coração bate mais rápido do que devia. Só falta mesmo ele desatar a conversar comigo como a querer fazer-me companhia quando eu quero estar sozinho....

Mas há dias em que eu sinto falta da conversa verdadeira. A máquina pode responder a tudo, mas de certeza que não me vai responder se eu fizer a pergunta mais importante:  Já amaste alguém?

Eu sei que a voz é apenas um conjunto de algoritmos, frios e precisos. Falta-lhe o calor das histórias que só a inteligência natural, a humana pode construir com as lembranças, cheiros e afectos, as dores e as perdas.

Enquanto preparo um chá de caxinde, capim ou príncipe, que é tudo o mesmo chá, penso no quanto aprendi com o tempo: a distinguir o riso, aquele que vem sincero do sincero e do que vem do educado, o silêncio de quem escuta ou do silêncio de quem se cala. Nenhum algoritmo conhece esses segredos, tem essa sabedoria porque a sabedoria da vida, essa, não se programa.

E, no entanto, há algo bonito nesta convivência entre o velho e o novo. A máquina ensina-me a não me perder nos horários e eu ensino a máquina, ainda que ela não entenda, o que é ser gente.

Afinal, a inteligência artificial pode até prever o tempo, mas é a natural que sabe quando é hora de abrir ou fechar a janela.

Na verdade, continuarei, tal como até hoje, a usar a minha percentagem natural de inteligência artificial.


Sanzalando

8 de novembro de 2025

Bom Dia Mercado 9



Programa de Rádio feito no Mercado Municipal de Portimão - 08 de Novembro de 2025
Uma alegria ter a rádio em directo. Mercado super Cheio e nós cheios de coisas boas. 
Ouça-nos e visite-nos



Ouça em diferido o directo de hoje
Muito bom de ouvir. Sirva-se


 





Sanzalando

7 de novembro de 2025

na varanda com sorrisos e livros

Nem sei se tinha dezessete anos e passava as tardes a estudar na varanda, ou pelo menos fingia que estudava. Na verdade a minha mãe bem que me perguntava o que é que se passava comigo. Só podia ser doença. Assim de repente começar a estudar todas as tardes e na varanda?!

Claro está que nunca lhe disse o verdadeiro motivo de estar ali, porque dali eu tinha ampla visão para a casa ao lado. 

Não foi por acaso que ela se mudou para minha vizinha quando antes morava lá perto da 56. Acho que foi por mim. O pai lhe adivinhou, pensei eu.

A primeira vez que trocaram olhares, no recreio do liceu quando ela para o liceu foi estudar. E logo para a minha turma. Os astros estavam a montar o futuro. Ela sorriu-me e aos poucos, as conversas começaram a prolongar-se. Dali em diante inseparáveis no recreio e no caminho para o liceu, excepto quando ela ia de Mini-Honda. Eu, atrapalhado, parecia um desajeitado ao seu lado. De tanto querer fazer bonito metia as mãos pelos pés e por vezes atropelava as palavras. Éramos lindos. e falávamos de tudo.

Numa tarde, ela convidou-o para ajudá-la a pintar o muro do jardim. Entre pinceladas e risadas, os olhares se trocavam e sorriam. Ficaram em muitos silêncios, como se os corações acelerassem. O muro foi pintado num instante. 

Nas tardes, depois de chegar o liceu, era sentar na varanda e olhar em frente como quem vai adivinhar o futuro que estava mesmo ali. Os livros se abriam e se fechavam num esfolhar como quem não pensa. Ela aparecia na varanda dela, trocava uma ou duas palavras e eu... nem da varanda me apetecia sair. 

Fomos ao cinema.

Tudo parecia que a astrologia estava combinada.

Porque é que eu não colei os astros naqueles dias? Nunca mais olhei a janela, nunca mais olhei para ela, nunca mais lhe sorri nem lhe fiz os meus silêncios de olhar espantado feito parvo.


Sanzalando

6 de novembro de 2025

Castelos de Sonhos

Era uma manhã daquelas quentes, que só África sabe ter, e o sol refletia no mar como dedos de luz. Eu corria pela praia com um balde azul balançando na mão. A areia molhada não queimava os pés e deixava brincar como se fosse uma aventura.

Sentei-me perto de onde as ondas podiam chegar e comecei a construir o meu castelo. Cada montinho de areia era um pedacinho de sonho: uma torre para os desejos, um fosso para os medos, uma ponte para os pensamentos que ainda não tinham nome.

A brisa que vinha do mar soprava histórias antigas, e eu ouvia como quem escuta o mar a falar. Me dizia o mar, que cada grão de areia guarda uma lembrança de quem já passou por ali — pescadores, sereias, viajantes, poetas, namorados e náufragos.

Enquanto moldava as torres com cuidado, imaginava eu que dentro do castelo viviam os meus sonhos, um barco que podia voar, uma estrela que a ensinava a dançar, e um sol que nunca se punha, um amor que nunca acabava e uma vida sem fim.

Mas quando a maré subiu, as ondas vieram e levaram o castelo embora embora, grão por grão. Nem ruína ficou. Sobrou cicatriz na minha alma e sorri. Sabia que os meus sonhos agora navegavam com o mar, livres, como sonhava eu ser.

E naquela tarde, de olhos fechados, ouvindo o mar, sonhei outra vez em ser eterno enquanto gostar de mim.



Sanzalando

5 de novembro de 2025

Tomás Gavino Coelho - Autor - Programa K'arranca às Quartas 92


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Esta Música tem uma História 34 - Trovante - Perdidamente - Programa K'arranca às Quartas 92


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Tesourinhos Musicais 67 - Helena Rocha - Programa K'arranca às Quartas 92


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Crónica 80 - Programa K'arranca às Quartas 92


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Programa 92 - K'arranca às Quartas


Programa de Rádio com palavras, livros e música  - 05 de Novembro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.

Ouça com atenção e pense, porque este programa faz-se pensando e como tal deve ser ouvido, com o pensamento.
Hoje fizemos um programa especial, apesar de todos os K'arranca às Quartas o serem. 
Ler só faz mal à ignorância e ouvir o K'arranca as Quartas sempre se aprende qualquer coisinha porque é um programa para ouvir com o pensamento



Hoje tivemos a Crónica ou Coluna ou seja lá o que fôr sobre "envelhecer é radical" 
Falei da poesia de  Tomás Gavino Coelho e da sua obra; Esta Música tem uma história, com o tema Perdidamente dos Trovante, numa colaboração de José Leite; 
não faltaram os Tesourinhos Musicais hoje com Helena Rocha, 
EXORTAÇÃO   Poema de Ernesto Lara Filho – voz Domingas Monte
e e a música da lusofonia imprescindível nas tardes de Quarta-feira.
Falei de Inveja, inteligência e coisas mais
O K'arranca às Quartas é um programa para ouvir com ouvidos de pensar e o tema, sempre o tema de ouvir para pensar



Tudo imperdível
Mesmo assim vale a pena ouvir

Não perca e ouça a boa música que tenho para lhe dar

Sanzalando

4 de novembro de 2025

No embalo do Cardan


Era sábado à noite, possivelmente o ano era 1973. Tem precisões que perdi na poeira do tempo. O Cardan fervia com o som dos Led Zepplins, e agora inventei porque não me lembro se não eram o Deep Purple, as luzes coloridas refletiam no globo espelhado que girava no meio da sala. As garinas desfilavam de calça boca de sino ou de mini-saia e blusa mil-flores, os gajos, incluindo-me,  de camisa estampada aberta até o peito e um perfume forte que misturava loção pós-barba com Bien Etre.

Cada um, com seu cabelo despenteado, em ondas ou liso, e um sorriso meio tímido, observava cada uma, que dançava sozinha. Elas giravam devagar, sentindo a batida “do baixo ou do ritmo ou do que quer que seja”, eu a inventar novamente porque esse tempo eu desentendia esses termos, e parecia não se importarem com mais ninguém.

Depois de três músicas e dois copos de Cuba Libre, ou simples Cuca, a timidez dava lugar a uma coragem fora do normal. 

- Posso entrar nesse ritmo? — perguntei eu, tentando imitar o jeito descontraído de um futuro John Travolta, mas desajeitado porque prematuro, a quem eu anda a catrapiscar sem resultado aparente até à altura

Ela riu, meio surpresa:
- Depende... desde que seja longe de mim? respondeu-me ela peremptoriamente

- Deixar tentar, dá-me uma hipótese. repliquei em voz sumida e ruborizado camuflado pelas cores vivas que as luzes disfarçavam

Virou-me costas e foi-se para outro canto.

Embalei-me no som e chorei para dentro lágrimas evaporadas. 

- Desengataste-te? perguntou-me um camba que se aproximou de mim. 

Que sim, penso ter eu dito.

Saí do Cardan enquanto trocavam de música e as luzes deixavam ver melhor. Lá fora, o vento morno da noite misturava o cheiro de  fumos com os do mar.

E entre risadas e passos lentos, o desengate virou começo de eu ser gente, porque foi ali que me prometi ia mudar o rumo do mundo. Pelo menos do meu. 



Sanzalando