14 de novembro de 2025

O deserto e o mar

Em Moçâmedes, na cidade que respira a poeira e o sal do antigo Saco, vivia uma anciã chamada Dona Dina. Seus olhos eram dois poços fundos, acinzentados como a neblina matinal que beija a costa. Dina não era daqui, mas a sua alma tinha-se misturado com o pó do deserto, que aqui se estende num manto sem fim, até encontrar o mar.

Na sua juventude, ela tinha percorrido os quilómetros entre Moçâmedes e Tômbua, quando ainda era Porto Alexandre, não em automóvel, mas a pé, seguindo a linha ténue onde a vegetação teimava em nascer.

O deserto, para Dina, tinha uma voz: era o Silêncio. Um silêncio que esmagava, feito da poeira rubra do planalto, dos cumes áridos que pareciam ossos gigantescos de um passado esquecido, e do sussurro das folhas secas da Welwitschia mirabilis,  a planta-símbolo, que vive mais de mil anos, agarrada à humidade da névoa.

"O Deserto", dizia Dina, aos seus netos, "é o Tempo. Ele não corre, ele espera. E a paciência dele é a lição que o mundo moderno esqueceu."

A vida de Dina, contudo, estava ancorada não no silêncio, mas no rumor incessante do Oceano Atlântico, que beija a orla de Tômbua. Tômbua era o seu oposto: uma cidade nascida da força e da fartura do mar, do cheiro intenso do peixe fresco e salgado, e do grito das gaivotas.

Na baía de Tômbua, onde a Corrente Fria de Benguela trazia riquezas geladas do sul, a água era de um azul-escuro profundo. Essa corrente, poderosa e misteriosa, carregava a vida que alimentava as indústrias da pesca e, mais importante, a alma daquela terra e a garra das suas gentes.

O Mar, para Dina, tinha outra voz: era o Movimento. O fluxo e refluxo, a chegada e partida das embarcações, o ir e vir das marés. Era a voz da emoção, da incerteza, e da Memória.

"O Mar", dizia ela, "é a História. Tudo o que é varrido da terra, ele guarda nas suas profundezas, esperando que a próxima onda o traga de volta à luz." E um dia trás, assim como um dia ele recupera o que lhe tiram.

A verdadeira beleza, Dina sabia, não estava em Moçâmedes ou em Tômbua isoladamente, mas na faixa de transição que as unia.

Certa manhã, guiada pela neblina fria que vinha do mar e se infiltrava no deserto, Dina decidiu percorrer o caminho. No início da viagem, a areia parecia engolir tudo, até o som. O sol, ainda baixo, pintava as dunas com sombras longas e fantasmagóricas. Ela sentia-se pequena perante a eternidade do deserto.

Mas à medida que avançava para sul, em direção a Tômbua, a paisagem começava a ceder. A aridez dava lugar a pequenos arbustos raquíticos, depois a matos, e finalmente, o cheiro de sal tornava-se esmagador.

A neblina, que era apenas humidade para a Welwitschia, transformava-se numa promessa de chuva para o deserto. Era o Mar a alimentar o Deserto com o seu hálito. E o Deserto, por sua vez, com o seu silêncio vasto e o seu relevo empoeirado, protegia o Mar das pressas da humanidade.

Ao chegar a Tômbua, Dina parou na praia. Tirou um punhado de areia fina e rubra da sua velha saca de pano. Olhou para o mar, para a espuma branca a desfazer-se na costa.

"Estou aqui, Mar," sussurrou ela. "Trouxe-te o Silêncio do Deserto."

E atirou a areia para a onda que chegava. A areia desapareceu, misturando-se com a água, tornando-se, por um instante, o fundo do oceano.

Dina sorriu. Ela percebeu que a lição era essa: Não há vida sem contradição. Moçâmedes era a paciência, Tômbua era a memória. A força daquela terra, a Província do Namibe, vinha da dança perpétua entre o tempo infinito da areia e o movimento incessante da água.

E assim, Dina sentou-se na praia, sentiu o ar frio e salgado no rosto, e o calor do sol a secar as lágrimas. Ela era o elo, o ponto de encontro, a tradutora entre o Silêncio e o Movimento. E naquele momento, naquela faixa de terra inóspita e bela, o Deserto e o Mar eram, afinal, a mesma coisa.



Sanzalando

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