18 de novembro de 2025

o carro de rolamentos

Quando eu era criança, as tardes pareciam sempre ensolaradas e infinitas. Lá, na rua onde eu morava, o barulho mais emocionante que se podia ouvir era o “trrrr… trrrr…” dos carrinhos de rolamentos descendo a ladeira que começava na casa da D. Maria Guedes e acabava depois da curva dos Fonseca. Bastava isso e todo mundo largava o que estava a fazer e ia a correr para a rua. As mães contrariadas lá nos deixavam ir. D. Maria depois das 4 da tarde não podia descansar com o inferno à porta. Ou eram os carros ou eram as vozes e as discussões de que quem ganhou fui eu e não sei mais o quê. 

O meu carrinho era simples: tábuas reaproveitadas, pregos tortos e aqueles rolamentos que eu e meu primo fomos buscar na oficina do Abel. A direção era uma corda amarrada ao eixo onde púnhamos os pés, acho ela não era direcção, era só mesmo onde a gente segurava as mãos pois a direcção e os travões era o pé. Parece simples mas para a gente era tecnologia de ponta!

A ladeira da Dona Maria às veze incomodava o senhor Raul Gomes mas era o nosso, como se diz agora, autódromo oficial. Antes de descer, a gente se alinhava como se fosse uma corrida profissional:

— Preparar…  Já!

E lá íamos nós, o vento a puxar os cabelos para trás e os olhos semi fechados, adrenalina e medo, que era coisa que a gente ainda não sabia. Sempre tinha alguém que se esborrachava no meio do caminho, mas ninguém chorava, no máximo levantava com o joelho esfolado e gritava:

— Valeu a pena!

O melhor era quando a descida era perfeita. A gente chegava lá embaixo com aquela sensação de vitória, como se tivesse conquistado o mundo, ou pelo menos a rua inteira. E depois era só puxar o carrinho de volta lá pra cima e começar tudo de novo, até o céu ficar laranja e as mães chamarem para dentro porque era hora do banho e jantar.

Hoje, quando lembro dos carrinhos de rolamentos, eu penso que talvez a gente já soubesse, mesmo sem entender: felicidade é um pedaço de madeira, quatro rolamentos e uma ladeira inteira pela frente.



Sanzalando

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