22 de outubro de 2025

Os Livros do caixote de madeira

Se calhar não tinha feito os 12 anos e vivia em uma cidade pequena e na minha casa tinha um caixote enorme onde estavam monte de livros, que a minha mãe dizia eram proibidos. Ela os tinha posto quando o meu pai fora para outro plano. 

Ela nunca me tinha dito que ler fazia mal, mas tinha gente que dizia que ler fazia as pessoas pensar demais — e pensar, naquele tempo, era perigoso.

As escolas ensinavam o necessário: contas simples, regras e a história oficial, repetida como um refrão. As bibliotecas tinham virado depósitos vazios, e quem fosse pegar um livro podia ser levado para a mal. Os livros escolares eram para dividir orações e saber significados, não eram para serem lidos ou interpretados. 

Mas sempre senti curiosidade pelo que, um dia, ajudado por um vizinho resolvi tirar uns pregos ao caixote e cada um tirou um livro. Calhou-me o Advogado do Diabo e a ele se bem me lembro calhou O Livro das Cinco Mil Palavras.

O coração dele disparou. Um livro de verdade com tantas palavras só podia ser com repetições. Gargalhámos e cada um foi para sua casa ler para depois comentar e se valesse a pena trocar..

Comecei a ler às escondidas, à noite, não fosse a minha mãe descobrir que eu tinha aberto o caixote. Aquelas palavras pareciam mágicas, Morris West mostrava-me que a bondade e a fé podem existir em pessoas comuns e que o julgamento humano, mesmo quando feito pela Igreja, nunca é completo. O “advogado do diabo”, no fim, descobre mais sobre a misericórdia e a fragilidade humana do que sobre o pecado. Aquelas palavras falavam-me de liberdade, de amor, de mundos diferentes. Cada página era um sopro de vida num lugar sufocado pelo silêncio. 10 dias e o livro estava lido. 

O Rui, fascinado pela filosofia chinesa me disse que a principal mensagem é que há uma sabedoria mais profunda que não se conquista pela força, pelo desejo de dominação ou pelo ego.

Com o tempo, fomos descobrir mais livros, sempre tirados ao acaso. 

Eu queria saber mais sobre aquele caixote. De vez em quando atirava perguntas à minha mãe. Ela desviava, atirava respostas vagas. Mas sempre me dizia para não falar a ninguém daquele caixote.. Afinal de contas só o Rui e eu é que sabíamos dele e lá fomos tirando e pondo os livros lidos. Um dia, o Rui caiu de cima do caixote. Chorámos os dois mas ele é que partiu o braço. Eu voltei a pregar o caixote e depois do Rui vir para casa com o gesso posto decidimos não voltar aquele lugar. Eles, dentro do caixote, são a memória do que lemos.

Prometi proteger aquele tesouro. Aos poucos, reaberto o caixote, comecei a copiar partes dos livros em cadernos, a ensinar outras pessoas de confiança e a espalhar as palavras escondidas pelos muros da cidade.

Um dia, alguém pintou em letras grandes:
“Ler é lembrar que somos livres.”

Ninguém sabia quem tinha escrito, mas, num qualquer lugar, eu sorria no escuro, segurando firme o seu livro que já não era proibido.


Sanzalando

Sem comentários:

Enviar um comentário