1 de agosto de 2025

Meus retalhos 38

Cheiro a álcool. Cheiro a betadine ou iodopovidona para não fazer publicidade a ninguém. Era sinal que eu ia calçar luvas, concentração máxima, bisturi na mão e corte e costura. Todas eram a cirurgia mais importante da minha vida. As passadas que correram bem não me vinham à memória. As que correram mais ou menos estavam sempre a vir à superfície mental. As que correram mesmo mal essas não saiam nem para dormir. Mas a mais importante era sempre aquela, a daquele instante. O bisturi é um instrumento cortante, afiado e sem personalidade própria mas por vezes parecia querer ser independente. 
Na verdade a vida daquele paciente estava agora na ponta do meu bisturi. Eu posso cortar alguém. Bem, é claro. Mas às vezes a minha confiança vacilava. Eu previa o futuro por instantes. Antecipava-o. Um erro, um tremelique, uma distracção, um momento de loucura e lá se ia o meu passado e o futuro de quem estava deitado. 
As luzes da sala quase sempre eram insuficientes. Ninguém conseguia ver o medo que eu sentia. A plateia, adormecida, não ia dizer um ai ou resmungar. Os meus neurónios ferviam na febre do medo. Era a cirurgia mais importante. Aquela, que fizera centenas semelhantes. Mas aquela ali era o instante. 
- E se me dá alguma coisa?
pergunta calada na retórica de um ser consciente.
Fechava os olhos, pedia silêncio e actuava. O medo estava lá mesmo que eu não deixasse entrar em mim. Naquela não. Eu era teimoso, mas acho ele era mais que eu.
Suspirava, inspirava. Bufava, resmungava no meu silêncio e calado continuava a pôr cá fora o meu mau feitio, como então me diziam. 
Bisturi sem tremor, arma feita ferramenta. Actuava. Era a mais importante para mim, aquele momento.
Hoje, passados dois anos e quatro meses, ainda sinto o medo que não deixava entrar em mim, ainda guardo o silêncio das memórias que não apago, que não se afastam e que me sacodem nos instantes dos meus silêncios.
Afinal de contas, o medo era uma visita constante que não se afasta da responsabilidade



Sanzalando

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