E foi no meu cérebro que me
encontrei a pensar num parece que até foi ontem, mas era 1980 e o mundo girava
com outra cadência. Os corredores do Hospital de São João, cheiravam a éter,
desinfetante e café requentado e um certo
odor bafiento, uma mistura curiosamente familiar que acabaria por se tornar a
fragrância da minha juventude.
Entrávamos de bata branca, ainda
engomada pela mão zelosa funcionária do lar que achava que Medicina era
sinónimo de dignidade. Não sabia, ainda, que a dignidade se ia buscar nos
gestos pequenos, no toque calmo ao auscultar um peito aflito, ou no olhar que
pede desculpa por não ter mais para dar a um doente terminal. Éramos estudantes
de Medicina. Íamos de sebenta na mão e olhos bem abertos, sonhando com
bisturis, diagnósticos brilhantes e salvações de última hora. Achávamos que
sabíamos mais do que sabíamos. E, no fundo, era isso que nos movia: a ilusão de
que o saber tudo era apenas uma questão de tempo. Mais cedo ou mais tarde
iriamos salvar o mundo. A tristeza teria cura, a solidão seria uma virose
passageira e as vezes impossíveis deixariam de existir.
Lembro-me de uma aula prática em
que o professor, um homem seco, de voz firme e olhar de quem já tinha visto demasiada
dor, lançou-nos uma pergunta simples sobre insuficiência cardíaca. Silêncio. O
coração, símbolo do amor e da vida, escapava-nos entre fórmulas e nomes
complicados. Foi aí que aprendi que Medicina não é apenas decorar: é ver,
escutar, repetir, errar e, sobretudo, estar presente.
O Hospital era um microcosmo do
mundo. Lá dentro havia uma hierarquia invisível: os doutores, os internos, os
estudantes, os enfermeiros, os auxiliares. Mas, nos momentos certos — num parto
difícil, numa paragem cardíaca, numa notícia trágica — tudo isso desaparecia, e
só restava a urgência de ajudar alguém.
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