25 de junho de 2025

Cheguei ao Porto 10 de não sei mais quantas

E foi no meu cérebro que me encontrei a pensar num parece que até foi ontem, mas era 1980 e o mundo girava com outra cadência. Os corredores do Hospital de São João, cheiravam a éter, desinfetante e café requentado  e um certo odor bafiento, uma mistura curiosamente familiar que acabaria por se tornar a fragrância da minha juventude.

Entrávamos de bata branca, ainda engomada pela mão zelosa funcionária do lar que achava que Medicina era sinónimo de dignidade. Não sabia, ainda, que a dignidade se ia buscar nos gestos pequenos, no toque calmo ao auscultar um peito aflito, ou no olhar que pede desculpa por não ter mais para dar a um doente terminal. Éramos estudantes de Medicina. Íamos de sebenta na mão e olhos bem abertos, sonhando com bisturis, diagnósticos brilhantes e salvações de última hora. Achávamos que sabíamos mais do que sabíamos. E, no fundo, era isso que nos movia: a ilusão de que o saber tudo era apenas uma questão de tempo. Mais cedo ou mais tarde iriamos salvar o mundo. A tristeza teria cura, a solidão seria uma virose passageira e as vezes impossíveis deixariam de existir.

Lembro-me de uma aula prática em que o professor, um homem seco, de voz firme e olhar de quem já tinha visto demasiada dor, lançou-nos uma pergunta simples sobre insuficiência cardíaca. Silêncio. O coração, símbolo do amor e da vida, escapava-nos entre fórmulas e nomes complicados. Foi aí que aprendi que Medicina não é apenas decorar: é ver, escutar, repetir, errar e, sobretudo, estar presente.

O Hospital era um microcosmo do mundo. Lá dentro havia uma hierarquia invisível: os doutores, os internos, os estudantes, os enfermeiros, os auxiliares. Mas, nos momentos certos — num parto difícil, numa paragem cardíaca, numa notícia trágica — tudo isso desaparecia, e só restava a urgência de ajudar alguém.


Sanzalando

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