No glorioso dia em que você finalmente ia tirar a carta de condução, parecia que o universo inteiro tinha decidido fazer testes contigo também. Logo de manhã, o despertador não tocou, talvez estivesse solidário com o meu nervosismo, e eu acordei com aquela sensação de “faltava qualquer coisa”… até lembrar que faltava tudo, principalmente sair da cama a correr, apesar de serem sete da manhã e o exame ser só às 11. Mas tal como o meu avô eu não gosto de chegar tarde e por isso duas horas antes é bom.
Chegando ao edifício das Obras Públicas, local de fazer o dito e referido exame, que eram dois, para tirar a carta de condução, o examinador, com aquele olhar de quem já viu de tudo, disse apenas:
- Hoje é o dia, hein? Não atropeles ninguém nem aleijes o examinador…
- Sr. Hilário, espero não magoar ninguém nem ter que cá voltar.
- Isso é o que vamos ver.
- Qual é o carro em vamos fazer o exame?
- No Colt do meu tio Cláudio. disse eu a pensar que ele estava a meter-se comigo, pois há mais de um mês que eu tinha lá deixado os papéis.
- Não é no da Escola de Condução? - perguntou assim como que a fazer uma cara que não era de fazer amigos.
- Não. Não andei na escola. Eu propus-me a exame. disse eu já a ver o meu mundo a girar contra.
- Esse carro não dá. Não tem as medidas...
- Quê?! gritei eu já a tremer.
Lá me explicou que não vira os papeis e que o Colt como o Mini não podiam ser utilizados.
E agora. Sentei-me no passeio, lágrima a cair da cara muito devagar. Levantei-me, fui à Secretaria e pedi para ligar à minha mãe que estava a trabalhar nos Caminhos de Ferro.
- Mãe. Tenho meia hora para arranjar um carro grande para fazer exame porque o do tio Cláudio não dá.
- Onde é que vou arranjar um carro agora? Olha, está ali o tio Adelino e vou pedir-lhe um conselho.
Claro que naquela altura os telefones eram fixos e as chamadas eram pedidas às telefonistas dos CTT.
- Filho, o tio Adelino vai aí ter contigo e já arranjam uma solução.
Abreviando, o tio deu o livrete, o examinador disse que sim e o exame podia começar.
Eu nunca tinha andado de Opel Kadet.
Assim fomos para uma sala onde me fez uma série de perguntas sobre sinais, prioridades, luzes e na maquete a brincar com Dink Toys, passa este e não aquele por isto e aquilo.
O código sabia eu na ponta da língua.
- Vamos para o carro.
Ah, o tio Adelino deixou o carro e foi trabalhar.
Carro a trabalhar e agora como se mete a marcha atrás para tirar do bem estacionado que estava? Pois é, não sei. No Mini e no Colt era fácil. Aqui não sei mesmo. Várias tentativas e nada.
- Devia ter treinado.
- Mas o senhor que sabe tudo e até é examinador pode fazer o favor de me dizer como é que é? - estava eu desesperado e ao ataque antes que me desse um ataque de nervos.
Ele tentou e nada. Sem querer ela entrou. Era assim, Puxa para cima e depois tudo para mim e depois para a frente. Totalmente ao contrário do que eu acho ser normal.
- Como é que fizeste isso? perguntou ele quase a sair do carro.
- Simples, pensei! respondo como se estivesse num pedestal a olhar para ele de cima.
Arrancamos dali para fora. Na rotunda do Radich manda-me virar à esquerda e eu, calma e serenamente encosto à direita e preparo para contorná-la.
- Eu disse esquerda. - barafustou ele de modo intimidatório.
- Sim, e eu contorno a rotunda e vou para o parque infantil. - respondi com ar descontraído que estava a começar a ter.
- Estaciona ali.- brusco.
Faço o pisca, parei. Sr. Hilário, não é perigoso fazer inversão de marcha aqi frente ao liceu para estacionar daquele lado e frente a um portão?
- Segue.
E eu segui
Vira para aqui, vira para ali e perto do Sporting há um lugar para estacionar e ele manda-me fazê-lo.
Eu achei um pouco apertado mas não podia esticar mais a corda. Faço o pisca e de marcha a ré vou virando o volante e fazendo as minhas medidas, mas curiosamente o carro de trás acompanhava os meus movimentos, isto é, deu-me espaço para estacionar. O Sr. Hilário saiu do carro, olhou bem e disse-me:
- Andas por aí a conduzir sem carta é?
- Não. Só no campo é que a minha mãe me ensinou a conduzir. Nunca conduzi na cidade. - afirmativo estava eu, ao mesmo tempo que estava a dizer uma grande mentira.
Agora vamos para a subida da Rua dos Pescadores para fazer o ponto de embraiagem. Se o carro não descair podemos terminar.
Fiz o ponto de embraiagem mesmo em frente ao portão da minha casa. Foi fácil.
Seguimos para as Obras Públicas e eu perguntei, já fora do carro.
- E agora como é?
- Esperas um bocado e dão-te uma guia.
- Então posso levar o colt para casa, já encartado?
- Quem o trouxe?
- Hã? o meu tio, claro. - por acaso tinha sido eu e por isso é que eu fui antes das Obras públicas abrirem.
E assim nasceu o mais novo condutor do país, mal acabado de fazer os 18 anos, emancipado.
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