A Minha Sanzala

no fim desta página

31 de janeiro de 2024

meus retalhos 17

Era madrugada. Urgência calma e eu recostado num cadeirão passava pelas brasas ou sonhava acordado. Não me apercebi e também não fiz questão de saber. Vieram chamar-me porque estava ali uma jovem de pouco mais de 20 anos que nem se mexia, os olhos não abriam. Parecia morta porem o ECG estava normalíssimo, os reflexos idem. Mas nada fazia com que ela se mexesse. Respirava lenta e pausadamente.  - Precisamos que o chefe autorize fazer-se um TAC cerebral
- Vamos lá espreitar. Disse eu caminhando para o balcão onde jazia a menina mortamente viva.
Tentei abrir-lhe os olhos e senti resistência.
- Ok. Senhor Enfermeira prepare-me uma seringa de 20 ml com vitamina b1, b6 tudo diluído em água destilada e agulha grande para injecção intramuscular. Enquanto dizia isto pisquei o olho e num a´pice a mortamente viva pergunta:
 - Onde é que estou?

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Fernando Namora 1º Podcast do Programa K'arranca às quartas


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30 de janeiro de 2024

K'arranca as quartas em formato podcasts

https://open.spotify.com/episode/6dhXt2YtOaNIXP8JblDdPH?si=e2f4399bf72145c6

meus retalhos 16

Hora de visita à enfermaria. Aí vamos todos os que estão no Serviço. Quem olha deitado na cama deve pensar que chegou a procissão. É ritual diário e um bem mais que necessário. Se ouve a explicação de cada caso, do diagnóstico ao tratamento e evolução, bem como da previsão de alta, nos casos em que está para breve.
Acontece que doentes operados electivamente têm, por norma, alta mais cedo, comparativamente com os de urgência. Um estava preparado e estudado e o outro teve de ser nas condições que estavam.
- Sr. João tem alta hoje. disse eu para o colectivo que me rodeava.
- Já. Ainda nem aqueci a cama. disse-me o doente admirado
- Era simples, correu bem e que é que está aqui a fazer?
- Dr. quem vai acreditar que eu fui operado. Vão logo mandar apanhar lenha e batatas. Não posso ficar até segunda?
- Sr. João, claro que não. Ainda hoje é quinta e você está fresco e fofo.


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29 de janeiro de 2024

Sentado no jardim

Tem horas que eu dou comigo a sonhar saudades. Vais ver eu ainda me descubro que saudade tem hora. Vais ver eu ainda vejo a minha saudade num muro parece é cinema. Ainda vou rir de saudade de ter as saudades que eu tenho.
Imagina só olhar no relógio e ver que são horas de ter saudade, deixar de ouvir o ruído do mundo e ouvir apenas o som da saudade. 
Quem foi que disse que saudade é tristeza. Eu tenho saudade e ainda bem, porque assim eu posso ver que cheguei neste agora com vida passada lá atrás. Eu brinquei, saltei, chorei e ri num tempo para ter tempo de fazer tudo isso. O meu futuro encurtado já não tem veleidade de me dar tempo para eu parar a olhar para nada. Mas ainda tenho tempo para olhar para trás e saber que tenho um futuro para ver.
Na minha rua, no meu café, na minha praia, no meu jardim e no meu mato. Eu tinha tanto no passado deste presente que o meu futuro só tem de ser é brilhante.



Sanzalando

28 de janeiro de 2024

meus retalhos 15

Acontece que de vez em quando tem gente very importante que também precisa de cuidados, mesmo estando em férias. Férias não inibe a doença e esta quando aparece não pergunta onde nem quem. Assim foi a uma senhora. Devido à sua importância na sociedade portuguesa e à gravidade da situação logo começaram a chover telefonemas e palpites das mais altas esferas e cubos, quadrantes e outras lonjuras. Mantendo a minha aparente calma fui gerindo a situação com a preocupação maior que era tratar a doente. Tudo o resto tinha de ser secundário. Se me apetecia fugir dali apetecia mas a não podia e nem eu conseguia. Feito o estudo da situação e definido o tratamento foi falar com a doente. 
- Sou tratada aqui. perentória e sem mais coisas.
O marido, importante, porem aqui estava de mãos atadas e educadamente me disse.
- Avance Dr.
Foi o que fiz, depois de tudo explicado, papel assinado e documentado.
Equipe pronta e todos a olharem-me como que a ver como era o meu real estado de espírito ou coisas do género.
Cirurgia feita, demorada, mas tudo decorrera como o planeado. Eu estava tranquilo. Teria que voltar ao Bloco dentro de 48 horas. Enfim, tudo como por mim descrito no pior cenário. 
Decorridas as 48 horas voltámos ao Bloco, fez-se o que se tinha a fazer e os livros descrevem.
Começaram as pressões internas. Os palpites de fora da área começaram a cair até parece era chuva de verão. As esferas internas subiram aos mastros e desfraldavam palpites como quem vê um jogo de futebol. E eu na minha, sorrindo e discordando, certo que a minha certeza é a mais certa de todas as dúvidas.
Novo ataque vindo das altas instâncias internas com o palpite em forma de ordem. Para o bloco já, era o que parecia estarem a dizer.
- Sr. Presidente, sra. professora, não concordo, antes pelo contrário, estou totalmente contra a vossa opinião e se quiserem, perguntemos à doente e família qual a opinião a seguir, se a minha se a vossa. eu tremendo por dentro mas certo e sério por fora. Eu por dentro era uma seara ao vento e por fora uma rocha sólida ali da pedreira da Nave.
Mas e coisa e tal que eu é que...
- Sra. Professora, quer passar uma receita para o cirurgião aviar como se fosse empregado de farmácia?
Assim terminou uma conferência e a continuação decorreu como o planeado e previsto, embora eu tivesse conhecimento e idade suficientes para saber que às vezes as coisas não correm como o planeado.



Sanzalando

26 de janeiro de 2024

meus retalhos 14

São para aí umas onze da noite, segunda feira, dia onde a urgência tem frequência que parece feira. Cansado, com vontade de guardar o sorriso para uma manhã qualquer, tocar-me o telefone de serviço.
- estou...
- o dr. X está ao telefone, posso passar? pergunta-me a telefonista que tal como eu não escondia a voz de sono. 
- que remédio passe... ia fazer mais o quê?
Atendo o telefone com a voz de zangado que não tinha:
- que queres pá? atirei para o bucal do dito. 
- Fala Y... interrompi de imediato 
- Sr. Ministro, peço desculpa por este atendimento, mas na verdade acabou de sair daqui um colega com o seu nome e eu pensava que era ele... 


Sanzalando

25 de janeiro de 2024

meus retalhos 13

- Sr. Manel, cada vez mais novo. cumprimentado à beira da cama, o doente que eu operara ontem.
- O senhor quem é? pergunta-me ele desfazendo todo o programa mental que eu tinha, obrigando-me a entrar de outra maneira.
- Então Sr. Manel, você não veio ao hospital para ser operado àquela coisa que tinha no estômago? Eu sou o seu médico, o que lhe arrancou o estômago cá para fora.
- Não tenho essa coisa agora?
- Não, Sr. Manel. Não tem estômago e aparentemente está tudo limpinho.
- O meu filho sabe que eu não tenho essa coisa?
- Claro que sabe, Sr. Manel. Nós conversámos tudo direitinho. Está esquecido?
- Estou onde?
-Sr. Manel está no Hospital onde veio ser operado ao estômago. Tinha aí uma coisa ruim e foi tirado.
- Olhe, senhor, não sei o que você disse ou fez. Eu só sei é que disse ao meu filho que eu preferia ser cromado do que ser operado.

Sanzalando

23 de janeiro de 2024

meus retalhos 12

Várias vezes o profissional põe de lado as suas dores e segue em frente. O doente não tem de saber que quem está à sua frente hoje não está a 100% sob o ponto de vista físico porém sabe que ele tem de estar a 100% mental. Estamos em pleno Agosto. A população triplicou e a afluência à urgência acompanha. Não só o escaldão, o corte na lata de conserva, a porta de vidro demasiado limpa que foi estilhaçada por um corpo a correr, também a patologia habitual como apendicite, oclusão não foram de férias. Estão cá, então eu tinha de estar mesmo que fisicamente a dor me fustigava e a moleza estava a instalar-se assim como que a bateria dum telefone quando se fina.
Já ia na terceira operação urgente do dia quando disse para a minha colega: 
- Vou ao Rx pois acho que fiz um pneumotórax.
lá fui eu. Fiz o referido Rx e enquanto olhava para o monitor, pálido e com o coração a quase sair da caixa numa corrida que nem eu conseguia lhe acompanhar. O Radiologista passa no corredor e diz sem parar:
 - Esse gajo está lixado.
Se eu já não tinha sangue no cérebro, o pouco que me restava cristalizou numa paragem cerebral, numa branca que até a pele empalideceu.
O técnico que me fez o exame e me acompanhava naquele meu momento de desespero saiu a correr e foi falar com o Radiologista. Eu estava hipnotizado a olhar aquele monitor. Não me podia acontecer aquilo apesar de eu ter feito na vida tudo para aquilo poder acontecer. Um filme passou na minha pele esbranquiçada como se fosse uma tela de cinema. Eu era o culpado, eu tinha pregado todos os pregos daquele caixão.
O Radiologista voltou, no seu andar lento e calmo como se nada tivesse acontecido à instantes. Olhou, pensou e disse:
-  Pode ser que não seja. É melhor fazer um TAC.
Lá fui eu fazer o referido TAC. As veias estavam em parte incerta. Eu não as tinha pois ninguém encontrou uma. 
- Faz-se sem contraste. Disse o radiologista e assim se fez. 
Feito o exame eu era o primeiro novamente no monitor a ver-me por dentro. A lágrima corria silenciosamente.
Liguei para a colega e disse que estava no Rx e sem condições.
- Deixa de brincar e vamos comer que são horas.
- Sério. Vem cá!
Entretanto já alguém tinha chamado o Pneumologista. Éramos três a olhar um TAC. O Radiologista dizia que não era. O Pneumologista andava com as imagens para a frente e para trás e balbuciava sons que eu não conseguia decifrar. Ou eu não conseguia mais raciocinar a informação que me chegava. A minha colega chegou. Olhou e pausadamente disse:
- Vou chamar alguém para te vir buscar.
- Não é preciso... disse eu como que a fazer-me de forte.
- Jota, amanhã quero aqui às 8 horas para fazermos uma broncoscopia. 
- Ok. foi o máximo que consegui dizer.
Não pensei mais na dor que não me deixava estar sossegado. A causa era aquela coisa a tocar na pleura. Fui para casa. Se não tinha sangue acabei por ficar também sem lágrimas porque chorei todo o caminho até casa.
Em casa disse apenas que estava mal disposto e por isso deixei a urgência e vim. Não sei se fui convincente ou não a verdade é que telefonaram para o Hospital a saber o que é que se passava.
Afinal de contas o Radiologista acertou na sua segunda opinião e passados 14 anos aqui estou a sumarizar um retalho meu.

Sanzalando

22 de janeiro de 2024

meus retalhos 11

Era de tarde, se calhar ao fim da tarde, antes de ouvir a noite cair, quando sou chamado para dar um parecer a um coma em consequência de um acidente de viação. Não sei se já tinham inventado a tomografia axial computorizada. Simplesmente nós não tínhamos. Entro na ultra idosa e pequena sala de emergência e quase ia caindo para o lado. O cheiro a vinho era por demais. Somei mentalmente que havia um como alcoólico associado a um traumatismo craneano. Era elementar, se eu tivesse ali um detetive com quem discutir o caso. 
Erro primário e de aprendiz de coisa alguma. Valorizei um facto que se me apresentou como exuberante. 
- Dr. na carrinha dele há para ai uns cinco garrafões partidos e de bebida branca. Tivemos que o despir lá porque não aguentávamos. 
Roda o cérebro em tantos graus, desculpas mentais. Exames de diagnóstico pedidos e feitos. Nada parecia estar fora do normal. Mas a verdade é que ele respondia pouco a estímulos quando entrou, mas progressivamente foi recuperando até chegar ao que eu diria normal.
Era um produtor de aguardente que ia levar a sua produção quando embateu contra outro num cruzamento. Eu tinha sido vítima do meu preconceito nasal. 
Falado com neurocirurgião da capital e foi-nos pedido que o mantivéssemos em observação 48 horas, findas quais teve alta com um tal prejuízo que nem sei contabilizar. 


Sanzalando

21 de janeiro de 2024

meus retalhos 10

Pouco passava da das 10 da amanhã. Uma chamada telefónica avisa-me que vem a caminho um masculino de 60 anos com uma mordedura de javali na coxa.
Preparar sala de emergência que na altura era a mesma que a de tratamentos de enfermagem. Arranjar espaço, mobilizar pessoas e material.
Éramos poucos mas suficientes e carregados de vontade. Ninguém se escondia ou assobiava para o lado. Se era emergência era mesmo. 
O transporte chegou, rapidamente doente levado para a sala. Garrote posto no local manteve-se até estarem reunidas condições para uma melhor observação. O pé da coxa garrotada estava assim a dar sinais de que precisava de sangue fresco lá. 
-Bora, pessoal, mais rápido, preciso aliviar o garrote. 
Aliviado e logo o mar vermelho me alagava o campo visual. Novo garrote e vamos para o bloco. Ordens rápidas, concretas e poucas palavras. 
À chegada do bloco novo aliviar do garrote e nova garrotagem. 
- Eu quero este pé com sangue. Bora, bora.
Anestesista anestesia. Quero lá saber da mesa posta ou composta. Quero é tratar disto e bem. Ajuda está a chegar mas enquanto não chega vamos trabalhar. Este pé tem de ter sangue arejado. 
O anestesista palpita qualquer coisa que eu digo sim sem saber bem a quê. Afinal ainda não havia sido pedido sangue ao laboratório. 
- Manda vir já.
Tudo desinfectado, tudo preparado. Ajudante à mão. 
- Bora que temos pouco tempo. Carregas aqui com a tua mão direita e com a esquerda vais limpando. 
- Ok!
Assim comecei a tirar o garrote e a abrir mais o espaço para ter espaço de visão. 
- Alivia a mão direita... pressão outra vez. É a safena e a femoral que estão rasgadas. 
-Temos de transferir! diz anestesista.
- Porquê, estás com problemas aí em cima?
- Se a Artéria está lixada tens de mandar para cima...
- Calma aí. Safena e Femoral são as veias. Eu as reparo aqui e já.
Laqueei a safena, suturei a femoral, lavamos umas vinte vezes. Seco e lindo de se ver. 
- Raio do javali que por pouco não comia o chouriço ao homem. disse em modo descompressivo.
Resumindo um pós-operatório sem infecções e apenas a extremidade do quinto dedo do pé com uma lesão isquémica a precisar de novo cuidado.



Sanzalando

19 de janeiro de 2024

meus retalhos 9

Era um dia qualquer da semana. Sinceramente já não me lembro. Eram para aí 2 da madrugada. Toca o telemóvel. Como sempre que posso, atendo-o. 
 - Dr. Pode chegar aqui ao Bloco... Precisam de si!
Reconheci a voz e foi o suficiente para me levantar da cama, vestir um fato treino de desportista de fim de semana, meter-me no carro e ir para o Hospital.
Deixei o carro assim num mal estacionado ao deus dará. Corri para o bloco sem ver se alguém estava no caminho para eu dizer educadamente boa noite, pelo que nem me lembro qual o caminho que fiz. Tinham passado 7 minutos desde o telefonema recebido. Equipei-me e entrei na sala que os colegas ansiosamente me aguardavam. 
Fizeram-me o relato e a decisão foi gastrectomia total. Fui desinfectar-me, equipei-me a rigor e fiz a operação cirúrgica previamente estabelecida. Feita a parte nobre deixei os colegas concluírem o pouco que era preciso fazer, escrever os papeis necessários, e fui para o carro e regressei a casa já era quase manhã, hora de levantar e ir trabalhar.
Antes de chegar a casa toca novamente o telefone. Parei e atendi. 
- Dr. não está de Serviço?
- Não. disse eu assim como que admirado com a pergunta
- Só agora é que aqui no bloco soubemos que estava em casa... Tem avião ou quê?
Tomei banho, encostei-me uma horita no sofá e lá fui eu para a minha vida laboral como se não tivesse havido nada fora do normal.


Sanzalando

18 de janeiro de 2024

balanço intermédio

A minha vontade de responder a perguntas faz com que eu as invente. É um exercício mental, é fazer com que o cérebro não pare e o coração continue ritmado a dar-me força. A primeira mais importante pergunta que me fiz foi perguntar-me o que eu queria ser quando fosse grande. Quando se é criança esta pergunta parece boba, tipo que pode uma criança decidir para seu futuro. Mas toda a criançada tem uma resposta. Uns querem ser polícias, bombeiros e tantas coisas mais. Uma impossíveis, por não serem profissões, outras inverosímeis porque impossível lá chegar assim nuca fase tão madrugada da vida. Mas agora sabe bem recordar-me desse tempo. 
Depois vem a adolescência e a sua conturbada fase. São tantas as descobertas que as perguntas importantes muitas vezes ou não são feitas ou ficam-se pela metade. A liberdade que se tem faz com que o tempo parece interminável pelo que perder tempo a perguntar é isso mesmo, perca de tempo. Não é o fim do mundo não perguntar. Pior é não ter respostas.
Já o jovem adulto tem de escolher. Sobressaem as perguntas do tempo de criança e as transformações feitas na adolescência.
Depois é a vida e vivida tal e qual ela é. Sem peças sobressalentes, sem trocas e sem repetições. Cada dia é único e nessa unicidade cada dia é diferente, uns de lágrimas e outras de galhofas. Mas as fases anteriores estão lá. A fase de viver na lua, a fase de viver na imaginação e a fase de saber tudo. Tudo está na vida.
Bem, mais muito depois, na hora do balanço, passada a fase mágica, passada a fase criativa, passado o tempo que foi, olhando para trás vejo que sou hoje o que fui. Hoje não tenho que prestar provas, mostrar valor acrescentado, fazer trabalhos, sustentar e educar, ouvir e calar ou calar para ripostar. O coração já não acelera nas arritmias do olhar, o orgulho já não sobe quando se atinge o cimo da montanha. O sorriso já não disfarça e as lágrimas não se escondem. Ouço a música que me apetece. Vejo o caminho que me apetece e sigo o que quero. 
O cheiro a terra molhada é saudade, boa, lembrativa, sorrida e tão bem vivida.
Caminhar na areia do deserto ou ver os verdes campos, é sonho, é lembrança da esperança tida, é concretização do tempo.
Ver os álbuns de fotografias é ver tantas respostas a perguntas que não foram pensadas. 
Olha como a maria agora está e como era linda. A maria podia ser o manuel, um joaquim ou uma rita. Ouço a música no rádio, porque por acaso ainda o há. Tanta coisa já desapareceu e passou de moda numa evolução que nem um TGV da vida acompanhou.
E se eu tivesse levado à letra a minha resposta à mais importante primeira pergunta que me fiz?


Sanzalando

17 de janeiro de 2024

a dúvida

Se faz vento eu protesto. Se chove eu entristeço. Se está calor de rachar eu contesto que devia estar noutro lugar. Quantas vezes me perguntei se eu escolhi o caminho certo? Será que as minhas decisões nos momentos chave da minha vida foram as mais correctas? Será que eu devo estar no lugar que estou? Olho e vejo a vida que nem uma árvore. Cada ramo um caminho. Será que eu escolhi os galhos certos? Hum,,, posso voltar a trás e recomeçar por outro galho faz de conta é um jogo de brincar? Onde é que eu gostaria de estar? Onde estou, é a resposta certa. Mas é o sitio certo? Os meus caminhos tomei-os por decisão minha, certo que baseado em acumulações de influências que confluíram para um dado estado de espírito. Mas acho que eu podia ter escolhido outro mesmo com essas pressões de vida passada. Mas devia? 
Na verdade eu tenho as minhas respostas e a mais acertada é que eu tomei o caminho certo para chegar aqui.


Sanzalando

16 de janeiro de 2024

meus retalhos 8

- Bom dia Dr. lindão...
- D. Júlia lá está você a tentar envergonhar-me e a pôr a minha timidez à prova...
- Dr. tímido? deixa-me rir... Eu bem vejo como as suas fãs falam de si...
- D. Júlia diga-me lá como tem passado.
- Fiz os exames, que devem estar aí no computador. Tenho feito os tratamentos. Portanto só posso estar boa.
Abri as análises e tudo estava bem, de facto. Incluindo os marcadores tumorais. O TAC não tinha nada de relevante para além da falta do estômago.
- Dr. eu queria engordar. Pesar mais um bocado. Qualquer dia o vento me leva.
- D. Júlia, você sabe que um dos tratamentos para a obesidade é cirurgia ao estômago...
- Sim, mas que eu queria eu queria. Não vou deixar de querer apesar de saber que não consigo... E a injecção da vitamina B12 tenho que fazer. 
 - Sim, sim.
- Dr. a maior parte das vezes não há nas farmácias e não me apetece vir ao hospital fazer. 
- D. Júlia, é uma das maneiras de sair de casa, dando um passeio mensal ao Hospital.
- Nem pensar. Aqui agora é só para a consulta e para o ver. Passear é dar a volta ao mundo, nem que seja através dos livros e das suas escritas.
Encabulei, e tentei disfarçar. 
- D. Júlia, não se esqueça que tem de fazer a injecção mensal, comer várias vezes ao dia e evitar deitar-se depois de comer ou beber...
 - Dr. sobre isso eu sei mais que o Dr. Eu vivo cada dia como se fosse o último, e já lá vão 4 anos e não me tenho dado nada mal. Dê cá um beijinho para esta velha dar lugar a outro.



Sanzalando

15 de janeiro de 2024

meus retalhos 7

Era um dia normal de Outubro. Não chovia, não fazia sol. Cinzento mas sem frio. A urgência funcionava devagarinho. Não havia pressa nem gente à espera. Era Outubro perfeitamente normal. Uma apendicite operada numa criança e pouco mais a cirurgia tinha feito. É verdade que quando a cirurgia trabalha na Urgência é um mau sinal. Mas faz anos tinha fechado a Horta 2 e as emergências rodoviárias das madrugadas quase faziam parte da história de alguns. Mas ainda era de tarde duma tarde cinzenta e sem chuva. 
Pouco antes das 16 entrava uma ambulância e um espalhafato à sua chegada. Todos gritavam por mim e eu ali e admirado porque não me viam. Percebi, o cenário era forte para alguém ver com olhos de ver e cabeça de pensar. 
- Estou aqui, meninos. Só fica aqui quem é mesmo necessário. Autoritei a voz. - mas não o suficiente ao que deu para ver. SÓ FICA AQUI QUEM EU DEIXAR!! assim alto que todos ouviram e fiquei eu e mais três, dois enfermeiros e um auxiliar. 
Olhei, falei com o paciente acalmando-o. Mediquei e começámos a prepará-lo para levar ao Bloco Operatório. Fomos falando, foi-me contando o que tinha acontecido. Fiquei a saber que o telemóvel era uma bem necessário. 
- Peçam um serra ou serrote às oficinas. Autoritei com voz assertiva.
- Vai fazer aqui? perguntou-me um enfermeiro espantado. 
- Não. Claro que não. Mas este ramo tem de ser encurtado para melhor transportar e melhor eu manobrar.
Na verdade ei estava perante um empalado. Estava a apanhar medronhos na serra de Monchique, um galho partiu-se e ele espetou-se noutro de cerca de 7 cm de diâmetro que lhe entrou na virilha e parou no toráx. Ele trazia ainda de fora o resto do arbusto que eu não imaginava podiam atingir dimensões de árvores.
Ele foi-me contando que conseguia tocar com o bico dos pés no chão. Calma e serenamente telefonou ao pai e aos bombeiros. A estes ainda conseguiu ir dizendo onde estava para eles o localizarem. O sangue frio e o telemóvel eram-lhe a salvação.
Cortado o resto da árvore trazida, retirada a roupa, feita a medicação lá fomos para o bloco.
O medronheiro, pelo menos aquele, sabia de anatomia. Entrara na virilha ao lado dos vasos femorais sem os danificar, passou por baixo do cordão espermático numa dissecação perfeita, foi subcutaneamente até parar no apendice xifoide. Perfeito. Na ponta, junto ao apendice xifoide estava um pouco da ganga das jeans como que a fazer de calço para não o lesar. 
Eu espantado com a aula de anatomia dum ramo de medronheiro, acabei a cirurgia depois de gastar uns bons litros de soros em lavagem e tudo correu bem.
Ainda hoje eu não gosto de medronho.

Sanzalando

13 de janeiro de 2024

meus retalhos 6

A criança chorava que até parecia estar a assistir ao fim do mundo. Acho eu que ela pensava isso se é que criança de dois anos sabe o que é isso de fim do mundo. A mãe chorava em silêncio mas deixava ver as lágrimas a escorrer lentamente pela face. Assumia naquele silêncio a culpa do fim do mundo da criança. 
-Vamos lá saber o que se passa aqui. Eu também quero chorar. Contem-me lá o que é que se passa aqui.
... silêncio da mãe, berros da criança. Olhei para toda a equipe que ali estava pronta para salvar o mundo, ou pelo menos a criança. Todos franziram a cara sem saber o que me responder. 
- Sabe, Dr., acho que o Pedro Nuno meteu uma coisa qualquer no nariz. Em casa tentei ver mas cada vez que lhe tocava ele gritava e desde então tem estado assim. disse-me a mãe com a voz mais culpada deste mundo. 
- Vamos lá espreitar. Quem segura o Sr. Pedro Nuno? não estava a ser sarcástico, mas criança com medo tem mais força que leão com fome.
Primeira tentativa falhada. Segunda idem. Vamos levar o miúdo ao bloco para através de sedação eu ter condições para ver. 
- Preparem-ma, disse eu para a equipe que me rodeava.
Lá fomos em cortejo para o bloco, com a mãe parecia que rezava em lágrimas ou vice versa.
Com uma pequena dose anestésica a anestesista criou condições para eu conseguir ver um pequeno objecto vermelho encravado no corneto.
- Quero uma pinça fina e um tubo de soro esterilizado para pôr nas pontas da pinça. 
Equipe perfeita equipamento dado e remoção do corpo estranho. Gesto simples e eficaz. Pequena peça vermelha do LEGO de um som pin.
No momento da alta, do alto da minha calma e sorrindo perguntei:
- Pedro Nuno porque puseste o lego no nariz?
- Cabeu. 



Sanzalando

12 de janeiro de 2024

meus retalhos 5

A urgência decorria calma e serena no campo cirúrgico. Umas dores abdominais, uns vómitos, uma ou outra ferida pequena. Nada de cansaço. A paciência sobrepunha-se à impaciência da espera de qualquer coisa grave. E se eu não souber como resolver.? Gente nova, o colega google ainda devia andar na escola primária, os séniores não serviam de bengala porque não estavam ali ao lado para nos segurar. Mas hoje a paciência estava serena como a urgência. 
Eram cinco para a meia noite duma noite invernosa, nada parecia acontecer no mundo até que uma chamada telefónica alvoraçou toda a urgência. Acidente de comboio em Estombar. Só foi dito isto e os bombeiros desligaram porque iam partir para o local. Bem, eu jovem, cirurgião único em presença, começo a arranjar espaço para meter gente. O espaço era pequeno e não esticável. As pessoas eram poucas mas nestas circunstâncias logo começaram a aparecer voluntários para ajudar. 
De Lisboa chega telefonema a MANDAR acender as luzes do campo da bola para aterrarem vários helicópteros da força aérea. E eu perguntava para quê? Ainda não tinha chegado ninguém ao Hospital... Mas acidentes ferroviários são coisas graves. Não é melhor esperar para se fazer um balanço e activar os meios? Perguntava eu a medo. Não senhor! O Sr. Ministro é quem manda. Ok... Assim seja, senhora. Diga ao Sr. Ministro que ligarei ao presidente do Clube para acender as luzes do campo. 
À 1:30 chega o único paciente, o maquinista do comboio que embatera no que estava à frente. Mais alguém, senhores bombeiros? Não encontramos ninguém no comboio da frente que estava vazio.
Visto, revisto e o paciente não tinha nada para além dum tremor de medo e nervoso miúdo. 
Novo telefonema de Lisboa a dizer-me que o senhor ministro dos Transportes vinha a caminho. Mas só existe um paciente e não é grave. Mas o senhor Ministro já arrancou e por favor o maquinista não pode falar com ninguém... Sim, mas posso eu falar com ele?
Às 5:30 chega o Sr. Ministro, samarra castanha de bom corte. Contado o sucedido naquela unidade hospitalar ele atira-se-me:
- Eu vim cá fazer o quê?
- Sr. Ministro, o que veio cá fazer eu não sei, mas alguém vai ter de dizer para apagar as luzes do Estádio que V. Exa mandou acender.
Em abono da verdade o Sr. Ministro vinha aí com umas sete pessoas e eu estava cansado de tanta azafama preventiva. Eu que mandara ligar agora tinha de fazer o contrário. Na verdade eu não tinha ligado a ninguém e elas estavam apagadinhas desde o último jogo nocturno.
- Tem de arranjar um quarto isolado para pôr o Homem e ele não pode falar com ninguém até ser transferido para Lisboa.
- Mas ele não precisa de ir para Lisboa, ele até já se acalmou. disse eu tentando poupar umas massas à nação.
- Nem sombras. Até ao final do inquérito ele tem de estar isolado.
Ah... Eu ia internar uma patologia nova. Inquerite.


Sanzalando

11 de janeiro de 2024

meus retalhos 4

- Bom dia Sr. Manuel. Hoje vejo-o com um sorriso. Foi comprado ou foi prenda de anos?
- Lá está o Dr. a se meter com um velho todo comido pela idade. Ó Dr., às vezes me apetecia agarrar a minha Maria e ir dar uma volta no campo como fazia quando era novinho que nem o sr. Mas o raio da velha diz-me que eu estou doido.
- Sr. Manuel, tem de a levar com falinhas mansas, com flores e carinhos.
- Dr., se eu fizer isso lá se vai a vontade.


Sanzalando

10 de janeiro de 2024

os meus retalhos 3

- Dr., venho aqui porque a minha médica me mandou cá outra vez porque ela não concorda consigo.
- Então D. Fátima, que é que se passa.
- Há 10 anos o Dr. disse-me que eu não tinha Tiroide. Agora fiz uma catrefada de exames e ela manda-me para cá porque tenho um nó na tiroide. Eu vim.
- Deixe cá ver os exames, D. Fátima.
....-Ora bem. A menina tem aqui um nódulo de 9 mm, que era igual ao exame anterior. As análises estão boas.
- Boas Dr.? Eu estou cheia de não prestas e do Dr. diz que estão boas?
- Estou a falar em relação à tiroide. É assim. A menina, D. Fátima tem um nódulo na tiroide que não é preciso fazer nada. A tiroide é uma glândula muito importante, mas ter nódulos é quase normal. Você não sofre da Tiroide. Daqui a 10 anos faça novo exame. 
- Oh Dr., já me tirou um peso de cima. Pensava que tinha que ir à faca.


Sanzalando

9 de janeiro de 2024

meus retalhos - 2

- Dr. , desculpe eu falar o que lhe vou dizer mas a verdade é que as minhas almorródias deixam-me o cu a arder que nem um formigueiro inteiro a entrar por ele adentro.
- D. Alzira, pode falar como quiser que eu entendo. Mas sente ardor que parece ferida ou parece coisinhas a andar?
- Dr. É um ardor que apetece coçar até chegar ao pescoço e depois fica essa impressão das formigas. 
Vamos lá a ver se eu me explico melhor para a D. Alzira entender. O Ardor e o formigueiro aparecem ao mesmo tempo ou a horas diferentes? O formigueiro não lhe aparece assim mais ao fim da tarde quase noite?
- Dr, sei eu lá a que horas tenho o cu a formigar. Tem cada pergunta. Tem dias que só sinto o formigueiro e outros que tenho uma comichão que me deixa até bater com a cabeça no tecto.
- Vá lá para a marquesa e vire-se para a parede para eu ver o que se passa nesse rabiosque... D. Alzira tem aqui uma fissura.
- Arranque-lha.



Sanzalando

8 de janeiro de 2024

Um diálogo de consulta - meus retalhos 1

Então sr. Manuel o que o trás cá hoje?
Perguntei eu com a minha voz de Dr., meus olhos sorrindo e minha boca simpaticamente faladora.
- Dr. vim de Lisboa onde fiz um catecismo, voltei com a perna a mudar de cor, mais negra que um negro, entre a minha ida ao dr. do Centro de Saúde e a minha vinda aqui, de negro estou a ficar da cor do chinês, amarelo. Acha isso normal?
Oh, Sr. Manuel, fez um catecismo em Lisboa porquê? eu a tentar traduzir o que é que ele tinha feito, pois não estava a ver a catequese a dar estes efeitos secundários. Mostre-me lá essa mudança de cor, ganhando tempo para ter tempo para pensar.
Ele baixa as calças e na raiz da coxa quase até ao joelho uma valente nódoa negra já em fase de resolução.
Pois, Sr. Manuel só podemos tratar dessa hérnia depois de resolver essa nódoa negra após o cateterismo. Isso estava negro, agora amarelo e vai esverdeando até passar tudo,


Sanzalando

4 de janeiro de 2024

o teu olhar

Tens um brilho de esperança no olhar que cada vez que me olhas sorri a minha alma. Deixo-me levar por estas e por outras ideias que te tenho e sorrio com alegria verdadeira. Quando me sinto assim fragmentado em pedaços lembro-me do teu olhar e num repetente me monto como se fosse um pequeno jogo de criança. Meus mil pedaços se organizam neste todo sorridente. Dizem-me que sou tolo, sorrio e sigo. Deixo-os falar porque o teu olhar me suporta nesta felicidade. Pudesse eu ter o teu olhar em constante mirada... seria o rei dos astros e a mais brilhante estrela da terra.


Sanzalando

3 de janeiro de 2024

sou, em palavras soltas

O melhor lugar do mundo é aqui e agora. Aqui, lugar indefinido em que me perco e reencontro, tantas vezes quantas eu me olho. Agora, é um tempo incerto na certeza de que de vez em quando me ponho a ver o mar.
Sou luar do meio da manhã. Sou lua cheia ao meio-dia. Quarto crescente quando calha. É, eu tenho luas. Às vezes eu quero ser disforme na forma como penso, como alinho as palavras ou como imagino que devia ser. 
Sou sol da meia-noite num verão nórdico em cerrado inverno. Sou o que me apetece, quando tal acontece.
Já sonhei estar aí, porem no aqui e no agora estou aqui agora.



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2 de janeiro de 2024

primeiro dia

Passei o dia a ver coisas banais na televisão. Hoje nem apetecia pensar. Hoje era dia 1 de um Janeiro, dia primeiro do inicio de alterações ao plano ontem feito. Para o ano e coisa e tal e zás, hoje se começa a alterar, adulterar. a desfazer e contradizer.
Ao fim dumas horas, combatendo a inércia com toda a força que me restava fui pôr o corpo a ver o zulmarinho.
O sol começava a deslizar suavemente para um horizonte pintado de cores alaranjadas. O zulmarinho me parecia transparente e me convidava à contemplação. O mundo submarino revelava os seus mistérios e tudo me parecia maravilhoso. À medida que as ondas se espraiavam na praia parecia que eu via as muitas cores mais do que laranja na areia brilhante da pouca água estendida. O sol parecia cada vez mais tocar o horizonte, mais a intensidade dos laranjas se deslizavam no zulmarinho. Um ou dois pares enamorados caminhavam na beira-mar. Eu mirava deslumbrado. Silenciosamente deixava-me embalar naquela beleza profunda.
Voltei para casa e imaginei a águarela que a minha imaginação tinha pintado no primeiro dia de um ano do resto da minha vida


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