A Minha Sanzala

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14 de abril de 2023

#zulmarinho


Vou de férias. Até já

Estaciono o carro na marginal. Ouço música no rádio. Aleatoriamente escolhida por quem está de serviço. Ouço-a sem tomar consciência dela. Se a desligasse eu ia notar a falta, porém não é importante. Necessito dessa melodia para admirar o zulmarinho e entrar nos meus pensamentos como quem vai viajar. Vou a Nairóbi e a Mombaça, vou africanizar o sangue, o pensamento e acalmar o desejo ardente desta saudade. Vou-me deixar ir por aí, recordando criancices e outras travessuras próprias da idade e do ambiente, vou à procura de mais versos, poemas e canções de bandido para mais uma ou outra cerveja. 
No fundo da baía percebo que há um barco que chega ou sai. Daqui a pouco entenderei. Agora não sei se vejo a popa se a proa. Mas não é importante, porque não entra nos meus pensamentos, não percorre a minha vida. Decora apenas o ambiente.
A música fala-me de ti. Acho que todas as músicas falam-me de ti. É sugestão, só pode, se eu não estou com atenção nela.
Passas num silêncio pela minha vida, deixas um rasto que marcou num até hoje e mesmo assim não existes da forma física e palpável. És a minha imaginação, o meu desejo, o meu passado feito hoje. Afinal de contas não sou mais que um utilizador de coração alheio para aguentar a dor do meu. 
Distraio-me a ver os pequenos barcos ancorados atoa na baía. Todos com a proa virada para o mesmo lado, qual formação militar. Se eu pegasse num e fosse gingar por aí? Certo seria levado pela corrente ou não sairia do mesmo lugar. Se eu tivesse trazido um fio e um anzol tentaria pescar. Nunca o fiz e não sei o que poderia acontecer para lá de ficar preso numa pedra que protege a marginal. Eu vim aqui para viajar pelos pensamentos e passados. Distraio-me e perco-me em presentes desfundamentados. 
Vou de férias. Até já.

 

Sanzalando

#imbondeiro #livros


13 de abril de 2023

#livros


é a vida

Sigo estrada fora, sempre em direcção ao zulmarinho, sempre com os olhos postos no meu início e no meio pois lá longe eu não consigo nem quero ver o meu futuro, ouvindo a minha musiquinha no rádio. 
As vezes que me perdi pelo tal de Cupido, num olhar ou num sorriso, num estar ou forma de ser, acho fui feito reacção química que me fez perder a razão e entrou a paixão. Assim numa forma aditiva de estremecer a alma e o corpo faz de conta eu entrei numa tremideira de ansiedade e desejo, deixando de olhar o mundo tal qual ele é. Custa dizer que a gente se perde nesse tal de Cupido, mas nem razão a gente tem mais, o juízo se desmorona, o olhar se desfoca. Tudo por causa dessa tremideira que esse Cupido nos faz. Nem faz tentar se por de lado a ver, desconsegue-se distinguir a realidade e a razão da ficção apaixonada. Tudo fica inexplicável, incomparável e impuro.
Esse de cúpido até nos faz perder o paladar porque o sabor sabe sempre a amor, musa perfeita da mais pura imperfeição.
A música toca no rádio, o carro segue automaticamente ao azul desse zulmarinho, as recordações chegam à superficialidade do pensamento e eu não tenho maneira de fugir-me e negar os amores que se iniciam sempre perfeitos.
Quantas tantas vezes me despedi dessas ilusões, desses amores de morte, dessas almas encantadas? Vida de ser humano tem destas coisas, ainda por cima quando se é normal e se tenta normalmente viver a vida de cada vez ao dia.


Sanzalando

12 de abril de 2023

distraio-me e caio

Me sentei numa esplanada e sob ruído de fundo bebi um café. Não me apetecia fazer nem sequer pensar. Quase adormecido, em pensamentos cruzei o inferno de todas as indiferenças e naveguei por mares agitados de medos infernais, subi montanhas e desci ravinas de intranquilidade. As dúvidas e indecisões que formam a minha ambiguidade mental me atiram para picadas e caminhos tenebrosos que não me permitem planear destinos, rotas e marcar chegadas. 
Arrepiantes pensamentos me levam a infernais pesadelos. Eu, delicado senhor duma pacata existência, atormentado pelos espíritos maléficos dos meus pensamentos vadios e, quem sabe, freudianos passados, dou comigo sentado numa esplanada transpirando medos e dúvidas.
Arre. 
Sorri, abri os olhos, admirei a realidade do momento, vi que o sol brilhava, que os meus olhos olhavam para um mar sem fim e eu estava intacto mentalmente. Fora só um momento de distração.


Sanzalando

11 de abril de 2023

imaginação e realidade

Antes de ser um ávido ouvinte de música do rádio sou um livre pensador das minhas ideias e sonhos. Misturados, remexidos, batidos ou simplesmente agitados, estes factores me fazem sentir feliz. Não me deixo enrolar pela vida fria e melancólica, vazia ou agónica. Vou, ao som dos sons dos outros fazendo a minha caminhada, entre sorrisos e apreensões, entre dúvidas e certezas, assumindo cada uma como uma força natural da essência, não me esquecendo que já fui menino, de diabruras, travessuras, que fui crescendo e apurando certos sinais e comportamentos, ao ponto de poder dizer sou quem sou porque assim me fiz.
Esfolei joelhos e chorei. Amassei barros e moldei. Fiz rir e fiz chorar. Humano sou. 
Afinal de contas o que é real? Como sabemos que estamos frente a algo real? Na verdade o real é mais, muito mais que a observação cientifica e certificada. O sentimento da subjectividade faz parte do meu real. Assim sendo há varias realidades para o mesmo real. 
Qual o real que eu sou? A imaginação e a realidade me fazem sentir o momento que existo.




Sanzalando

10 de abril de 2023

#momentos


#livros


a minha vizinha

Ouço música no carro e deixo o meu pensamento vaguear numa levitação pelo passado, existente ou imaginado. Mas ambos fazem parte desse passado de lá longe que a memória não me apaga porque ambos são a minha estória, o meu eu de agora, por mais que eu queira esconder alguma coisa, mas também tem erro por aí. É que dizem que errar é humano e eu sei que o sou, embora às vezes pense que seja super. Mas a música que toca é uma balada duma tal Adele que não me deixa lá muito concentrado na construção de pensamentos. Lembro-me de uns cabelos compridos que me provocaram umas quantas lágrimas porque a indiferença me causou algumas feridas na alma e eu não era suficientemente forte para passar ao lado. Seu sorriso, sua simpatia e educação se mostravam a todos, menos a mim onde havia apenas indiferença. Eu não jogava tênis nos sábados de manhã no Clube Náutico. Eu não frequentava a casa do Sr. Dr. Fulano de tal e seus iguais. Era mesmo só o vizinho apaixonado e desgraçado de amor.


Sanzalando

9 de abril de 2023

Vou ao Saco ouvir música

Fui ver o mar para o lado do Saco. O monstro do minério se enferrujou. Quem não sabe bem que é que aquilo foi vai pensar é um dragão que se ferrou da cor de pó de ferro e petrificou ali num estado catatónico.
Tem barco atracado mas não usa aquele dragão feito grua petrificada. Acho ele é petroleiro. Mas isso não me é importante nem fica para a minha história que a minha é mais uma estória das outras. Mas que me doeu olhar assim para aquilo, doeu. Vou subir na estrada para a praia das conchas ou fico só mesmo aqui a olhar. Sou desapegado e prefiro ficar ali a imaginar o comboio chegar, automaticamente carruagem a carruagem era descarregada num fazer de pino que eu nem sabia havia máquinas para fazer aquelas piruetas nos vagões.
O comboio vinha dali, desligava o vagão, ele ia sozinho para dentro duma garagem. Se lhe prendiam assim acho eram uma ventosas, virava ao contrário e num segundo estava o tapete rolante a levar o minério para aqueles morros que depois assim num carrossel de pás era transportado para outro tapete e depois esses dragões deixavam cair parecia era chuva no porão de navios que dava quase para perder de vista da popa à proa. Agora aqui, sentado no meu carro, ouvindo uma rádio ao acaso dou comigo a viajar até aos idos tempos de ser jovem e achar que o Saco era longe para caraças.



Sanzalando

8 de abril de 2023

não ter feito mais

Vejo o mar e ouço música do rádio. Acho o rádio dá sempre as mesmas músicas, daqui a nada já as sei de cor. Seria a primeira vez. Não, a segunda, porque quando era criança sabia a do 'copo cair ao chão e partiu' e agora não sei nem quem cantava. Era um conjunto famoso aí nos anos 70 de mil e novecentos.
Mas não estou aqui a ouvir música moderna e falar de coisas que nem me lembro. Estão aqui e estão a dizer que envelhei-me por completo.
Dentro do carro não sinto a brisa mas precinto a maresia. Embalado na balada da Bárbara penso nas feridas que nunca saram. Levo-me à embriaguez tonta de recordar quantas feridas haverá por sarar. Sorri, porque nenhuma me dói. Deve ser mesmo ferida de memória, daquelas que nem o tempo apaga apesar de não deixar cicatriz. Estou tonto de dar voltas à tola a tentar contar. Uma sei. Procuro e nada mais. Mas tem de haver. Não aceitei tudo na vida de sorriso aberto. Houve coisas que contestei. Não marcou eternamente? Pelos vistos não. 
Olhando os barcos ancorados ao longo da marginal, balouçando suavemente ao ritmo das ondas criadas pela brisa, nesta tonta ideia de fazer uma reprise de feridas não cicatrizadas, encontro só mesmo uma: Não ter feito mais!


Sanzalando

6 de abril de 2023

#comida e se é Páscoa é folar. Bons vizinhos é o que dá


carta a uma menina

Querida menina
Escrevo uma carta a qualquer miúda que já foi da minha antiga idade, da idade em que eu pensava era feio e ninguém me olhava. Antes de ser o belo kota que me tornei com o passar dos anos, o simpático e sorridente mais velho que ficou respeitoso numa qualquer assembleia. Mais velho conta aí como é que era no teu tempo? Me dizem isso com o mais dos respeitos e só lhes respondo que o meu tempo é agora porque eu lhe acompanho. Sei que quando nasci o rádio era a válvulas, ide lá procurar no google que é que era isso do rádio ser a válvulas, que o telefone era uma coisa rara e mais fixa que qualquer pedestal. Mas na verdade eu cresci a ver isso tudo mudar e acompanhei. Já não uso a sebenta vermelha e uso o tablet que não é de chocolate.
Mas voltando à carta
Tudo está sendo muito estranho para a gente que nem se vê e nem se sorri como há um par de semanas atrás. Sinto muito se fiz alguma coisa que te desagradou e gostava que me desses um tempo para se esclarecer essa nossa questão que me está a deixar triste e com falta de apetite. Sabes que uma das coisas que mais me gosto é de te fazer rir porque o som da tua risada é assim como que uma carícia na minha alma. Sabes que me está a fazer falta ir ao cinema com o bilhete pago pelo teu pai que eu não o tenho. Sabes que me está a fazer falta levar um raspanete teu quando nas aulas eu falo alto que nem o professor me consegue fazer calar. Enfim eu sinto falta de tu na tua integridade moral e ralhativa.
Vamos lá fazer as pazes que a guerra não pode ser longa porque eu sei que quem vai sair a perder és tu: ficas sem este belo rapaz que te gosta sem medida.



Sanzalando

#lugaresincriveis


#lugaresincriveis


5 de abril de 2023

meditando a conduzir

Lá vou por essa estrada fora ouvindo música no rádio. Quando eles falam nem sei o que estão a dizer. Descontraído rio ou apenas sorrio se dizem piada que nem entra no chip da memória. Se Dão música eu entro em transe e vou só com ela no ouvido. Feliz, diria. Na memória não ficou a música que ouvi. Lá ficaram os restos da minha meditação ou reviveração de momentos passados que são repassados a pente fino. Alegres ou tristes, envergonhantes ou não, são revividos ao pormenor. É, eu medito a conduzir e ouvir música do rádio. Nem me dou ao trabalho de lhe escolher. Fico com outros trabalhos. 
É evidente que eu tenho medo de despertar dum desses momentos, dum desses inconscientes reviver e ver que já não estou no grupo dos vivos. Desde já alerto que isso é a última coisa que quero fazer e será sempre contra a minha vontade. 
Hoje enquanto percorria a minha estrada me recordei da chuva quente que cai por estes dias na terra da minha infância, da inundação da esquina do Fonseca, da quase impossibilidade de ir á Oasis ter com aquele grupo que não discute futebol mas antes carros e outras motorizações. Uns são do Sporting e outros do Benfica e, não sei se tem algum doutro clube qualquer, eles não discutem. Sabem que o Eusébio é uma maquina, que o Peres é outra. Mas mais que isso fica para conversa animada da falta de pontos que são só dois. Tu ganhaste ou perdeste e se acabou ali. Agora motores é um ver se te avias. Desde os centímetros cúbicos, à potencia e força, dos cavalos á rapidez de resposta ao arranque até parece eles são mecânicos. São-no só de saber teórico pois tenho a certeza que se o motor lhes avariar fazem que nem eu: abrem o capot e ficam a olhar à espera do milagre acontecer






Sanzalando

#comida


#lugaresincriveis


4 de abril de 2023

a minha mãe e a carta de condução

Ao som duma qualquer canção que passa no rádio eu medito sobre vazios e passados, presentes e desejos futuros. Não me preocupa, quero é só estar preparado. Ter resposta é meio caminho para uma solução. É que em cada passo da vida pode haver percalços, lancis invisíveis, buracos disfarçados, tanta coisa em que podemos tropeçar e é importante que não fiquemos sem resposta e continuemos sem caminho. Se eu ficasse estático no primeiro contratempo eu não tinha berrado ao sair do corpo da minha mãe. Eu respondi com um choro que me trás até neste momento de agora em que ela cansada de ir a pé até na Estação dos Caminhos de Ferro resolveu tirar a carta. A idade avançada para uma mãe tirar a carta não abonava a favor, ainda por cima acho não havia na família assim directa uma tradição de conduzir quatro rodas. Tudo me estava a dizer ela ia só gastar dinheiro na carta na única escola de condução que havia. Ela teimou e, com a tia dela, foram ambas na escola. Imagino a cara dos homens a lhes receber. Devem ter dito mil e uma coisa que ela chegou em casa zangada mas teimava que isso não ia ficar assim. Se outra mais velhas que ela conduziam porque é que ela não o ia fazer? Acho eu ela se perguntou mil vezes. Tanto insistiu que lá lhes aceitaram. Foram as aulas de código, as de condução e mais o estudo em casa que eu estava a ver ela ia ser mau exemplo para mim quando eu fosse uns anos mais tarde tirar a dita. Dois exames e num faltou o ponto de embraiagem e no outro não compreendeu que virar à esquerda numa rotunda tinha que a contornar que foi directa ao chumbo.
Mas uns tempos de aulas na escola e tentativas de aulas particulares dada pelo filho, que sou eu, e ela foi tentar a terceira e última vez.
Aconteceu milagre da persistência e cá veio ela para casa com o papel assinado e carimbado a dizer que tinha conseguido.
Ainda hoje estou incrédulo, mas também porque nunca fui um grande crente.





Sanzalando

3 de abril de 2023

conduzir em meditação

Ouço no rádio uma música, olho para frente sem estar a ver nada, apenas só se algo de anormal acontecer eu sou como que acordado deste meditar que me leva dum aqui para um outro qualquer ali.
Na verdade eu já fui criança e me lembro de muitos momentos dessa altura. Posso mesmo dizer que eu sou criança nesse exacto instante. 
Em cada instante eu sou um eu de mim. Tudo depende da circunstância.
Agora sou uma criança que se recorda da marginal, uma recta semi-curvada para a direita que marginaliza a baía. Eu vou de pendura com a minha mãe. Acho é hoje ela vai usar a 4ª. Tenho que insistir e quase na curva da SOS ele consegue meter a mudança. Eu estou nas núvens, vou a 80 no Mini da minha mãe com ela a conduzir. Mãe, agora tens de reduzir, grito de espanto a ver a SOS ali mesmo à minha esquerda. Que nada, ela seguiu em frente e só parou na cancela de acesso ao porto e com travagem de quem ia atropelar a dita. 
Nesse instante desmeditei-me e lembrei-me que nunca tinha tido tanto medo dentro dum carro. 
Voltando à recordação, saído da meditação, reconheço que a minha mãe estava pálida e só me dizia que conduzir era uma coisa muito séria e perigosa.
Verdade seja dita que aquele mini se não fosse o filho da minha mãe lhe gamar o carro nas noites de farra, ele ia ter teias de aranha no motor.
E lá vou ver o mar conduzindo ao sabor da música


Sanzalando

2 de abril de 2023

Confissões sobre a vida de um Cirurgião - a tiróide e o zulmarinho

A Minha apresentação na despedida do CHUAlgarve

Confissões sobre a vida de um Cirurgião - a tiróide e o zulmarinho

 

Começo por agradecer a presença de todos. Desculpem-me o incómodo, desculpem qualquer coisinha.

Tudo o que eu aqui disser é cientificamente provado, mesmo que não haja estudos, por quanto é verdadeiro.

Procurarei não referir nomes, porque são tantos aqueles a quem devo o que sou, que a omissão de apenas um seria para mim motivo de grande tristeza e imperdoável indelicadeza.

Enquanto vos falo, passam ali uns slides, maneira arcaica, antiga, de dizer que serei acompanhado por imagens no ecrã deste anfiteatro. Algumas imagens poderão ferir os mais sensíveis, mas foram captadas por mim, ou com as minhas máquinas, mesmo antes de haver estes aparelhos que agora também servem para telefonar. Outras slides são acasos, palavras ou momentos da minha História.

(A vida de um Cirurgião é penosa sob o ponto de vista físico, mental, familiar e social.)

Começando pelo nascimento. Fui nascer a 283 km de casa, onde vivia o meu avô paterno, enfermeiro chefe num Hospital. A razão foi simples: existência de maternidade nesse hospital.

Com esta polémica actual com as maternidades, nota-se que eu naquela altura já estava atualizado. Sou um dinossauro com software actualizado. Mas nasci em casa dum familiar porque havia futebol: Benfica -Sporting por Lisboa e o meu pai tinha de ouvir o relato, porque naquele tempo não havia ainda a TV.

A RTP dava os primeiros passos por cá enquanto eu gatinhava por lá. Em rodapé: Ela foi criada no dia que fui baptizado. Coincidências.

A primeira complicação do nascimento é a vida e esta é a primeiral causa de morte.

Dai que eu diga que cada instante deva ser vivido com a intensidade que merece. Hoje, emocionado, agradecido, tenho até medo de dar intensidade ao meu coração já cheio.

Como sempre pensei, a monotonia é desmotivante, a leitura é inimiga da ignorância e o saber melhora a qualidade do pensamento. Este tem sido o meu mote, o meu mantra de vida. Eu sou assim!

A vida está cheia de ‘por acasos’, de momentos inexplicáveis, de pausas e ciclos. Assim é a História da minha vida.  Quase na hora de fechar mais um ciclo.

É possível apagar a minha história? A minha resposta é simples e categórica: Não! De todo impossível. Pode ser esquecida, pode ser até florida, diminuída ou aumentada, adulterada, porém nunca apagada e tenho dúvidas que possa haver uma segunda edição.

A amplitude da minha história é tão grande quanto é a minha vida, pelo que se torna impossível de conhecer neste instante de pausa. Pausa porque refletimos sobre mim, sobre o que fiz, o que faço e o que farei.

Este momento marca-me?

Só se eu fosse imbecil é que não me marcaria.

A imbecilidade é uma escolha e eu não a quero. Reflito, medito, penso e se for necessário corrijo. Não posso apagar o passado, mas tenho capacidade mental para corrigir e retificar num qualquer momento. No hoje de agora posso dizer que chego aqui com a consciência tranquila.

Como todos, também tenho dias complicados e dias simples, dias altos e baixos, dias no meio da multidão e outros na mais sólida solidão.

Sei que quem procura a felicidade de ‘per si’, só encontra nós, alguns aparentemente impossíveis de desatar, complicações e confusões. Porém digo que a felicidade é uma das mais raras e bonitas complicações desta vida. Mas é ela que nos encontra, e é através da esperança. Quem a perde a esperança raramente encontra a felicidade.

Ora, eu sempre tive e mantenho a esperança e é por isso que dou comigo tantas vezes a olhar o Zulmarinho, esse mar que me liga à minha terra natal, à espera dum sinal ou só à espera como se olhasse para dentro de mim.

Coisas simples simplificam-me a vida e eu mantenho a esperança de assim permanecer, simples, sorrindo e vivendo. Só morrerei em último caso e contra a minha vontade.

Outro complemento da vida é o ‘por acaso’.

Por acaso nasci e vivi onde o fiz. E também foi por acaso que naquela altura temporal fui um jovem ‘revolucionário’, que viveu coisas que por acaso não tiveram um outro desfecho.

Por acaso vim para Portugal estudar e mais uma vez, por acaso, fui parar ao Porto.  Lisboa era fervilhante de actividade política, de amizades complicadas e interesses que quase de certeza me levariam para outros caminhos que não o estudo de Medicina.

Como se vê, é fácil ter esperança e viver por acaso. Mesmo que isso dê muito trabalho.

Também foi por acaso que fiz a especialidade em Santarém, que tal como o Porto eu nem sabia que existia. Fui feliz e consegui atingir o objectivo traçado: Ser Cirurgião e ter o espírito aberto dos ‘velhos’ cirurgiões dos Hospitais Civis de Lisboa.

Por acaso não me torturo pelo que poderia ter feito, pelo que poderia ter sido nem por onde podia ter andado. Há tanto caminho ainda que posso percorrer. Não tenho feridas por cicatrizar.

Na Cirurgia aprendi que pode haver muitas técnicas, mas só há duas maneiras de operar: Bem e Mal. Opto sempre pela primeira. Tenho a capacidade mental de escolher, chamar ou dizer não, quando sei que não sou capaz.

Nunca procurei lugares de liderança porque para mim liderança não é um lugar, é uma atitude, é um modo de ser no estar. Eu sou apenas esta personagem que está aqui à vossa frente.

De 1984 a 2023 fui crescendo e hoje dou comigo aqui, para falar de Retalhos da Vida de um Médico, fosse eu Fernando Namora, distinto escritor médico que já saiu desta vida mas que a sua obra, vasta e bem feita, não o deixa ser esquecido. Meritoriamente.

Eu, por acaso, não tinha uma única tiroide operada quando acabei a especialidade, e muito suei no meu exame de saída por esse motivo. Por acaso desse exame, por esse problema, fez com que no Hospital de Santarém passasse a operar Tiroide em vez de as mandar para Lisboa.

Quando aqui cheguei, 1996, pedi ao então Director do Serviço que me ensinasse. Boa hora o fez. Agradeço.

A tiroide foi um gosto que aprendi a gostar. Não era a minha primeira opção, pelo que disse, era-me até muito amarga, mas na altura não havia escolhas. Cirurgião era o mais próximo do Supremo, só que o supremo não sabia operar. Cirurgião que se preze sabia tudo e tudo devia saber fazer.

Daqui a pouco falarei uns números que aqui são isso mesmo: números. Mas nunca me esqueci e nem me esqueço que atrás desses números existem uma pessoa que, para além da doença, tem sentimentos: de angústia, de raiva, de tristeza ou revolta; ou simplesmente carência afectiva. Isso também fez de mim quem sou.

Mesmo que digam que o mais próximo do psicopata seja o cirurgião, aquele que sente prazer em cortar um ser igual, que se vangloria do facto, que chega a casa feliz porque fez e aconteceu, eu nunca poderei esquecer aquele olhar no momento da alta, aquele sorriso quando estou à cabeceira, aquele mimo que recebo em qualquer lugar por reconhecimento.

Mas voltando o fio à meada, não descurei nunca outra qualquer patologia, órgão ou sistema que faz parte do currículo do Cirurgião Geral. Mas se gostava do todo da cirurgia geral, fui acompanhando os tempos e aperfeiçoando a técnica, promovendo a ‘especialização’, o pormenor, a diferença, de modo que o doente estivesse consciente de que as complicações fossem cada vez menores, o seu risco mais atenuado e a sua qualidade de vida melhorada porque eu estava mais capaz. Tinha mais treino.

Tive a oportunidade de tutelar três internos da formação específica. Um, no segundo ano anunciou-me que a vida de cirurgião era muito mais pesada que a sua inicial ideia, pelo que mudou e foi para outra especialidade onde sei tem ganho o apreço dos seus pares. Dois foram-me seguindo e hoje são Cirurgiões que me orgulham. Não são a minha cópia, porque sou inimitável, único, mas posso garantir que estão aptos a me operar se eu necessitar.

Voltando ao título e não vos quero deixar defraudados.

O cancro da Tiroide representa 1 % das patologias oncológicas mas a sua incidência tem vindo a aumentar quer no homem quer na mulher, com predomínio nesta. Não se sabe a causa.

A patologia tiroideia, oncológica ou não, é muitas vezes silenciosa e outras vezes indirectamente sintomática, pelo que o tratamento cirúrgico pode levar o doente a pensar que é desnecessário, que é demasiado agressivo ou simplesmente ineficaz. Há que ter o bom senso e boa capacidade de comunicação para fazer entender o propósito do tratamento.

Não esquecer que o dever primeiro do cirurgião é manter a qualidade de vida, se a não poder melhorar. Como diz o povo: para pior antes assim.

Agora falo em números. Olhando para os registos do CHUA, unidade de Portimão, só a partir 1998 poderei considerar fiáveis.

Fiz  21.157 consultas, 7.868 são novos doentes.

Operei 5.365 cirurgias em Cirurgia Geral e cerca de 100 na Ginecologia ou Obstetrícia, Urologia, ORL e Ortopedia.

Para não maçar digo-vos que há um slide por aí com números de vários capítulos mas sublinho apenas 248 Tiroidectomias sendo que 197 foram totais e 151 lobectomias.

Nas cerca de 100 fora da cirurgia, algumas por solicitação da minha experiência, outras porque sempre me considerei o eterno interno e sempre estive disponível.

Se tive complicações? Claro. Só quem não faz não as tem.

Todas elas me marcaram, todas elas deixaram-me cicatrizes que jamais conseguirei esquecer, principalmente as que foram fatais para o doente. Poderia dizer aqui o nome de todos os que na cirurgia electiva complicaram de modo fatal mas guardo-os na memória e no coração.

Também quero que fiquem com uma ideia que sempre me norteou: Eu não sou aquilo que tenho, sou mesmo aquilo que fiz e faço.

Lembrem-se que quando partimos desta vida só levamos uma muda de roupa e não somos nós quem nos veste mesmo que tenhamos feito essa escolha.

Deixados os números e tristezas passemos ao zulmarinho

Esse Zulmarinho onde me perco nas palavras simples, nos trocadilhos, nos recados ou nas memorias e que me acaricia no seu ondular, me deixa continuar a ter os meus sonhos, a cumprir os meus desejos e, quem sabe um dia, será a minha estrada de imaginação.

 

Obrigado a todos

 



Sanzalando

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