A Minha Sanzala

no fim desta página

29 de fevereiro de 2024

sentado, espero Março

Me sento em silêncio e olho o zulmarinho. Aguardo o mês de Março. É mês de festa na cidade, é mês de festa em casa porque faz não sei quantos anos que me baptizaram, registaram e eu passei a existir de papel passado. É pena que eu não consiga pôr em palavras aquilo que os meus olhos olham, aquilo que a minha alma sente, aquilo que a saudade faz-me viver em cada instante do meu antigamente. 
Como posso eu escrever em tons de lágrima se eu não choro cada pedaço meu? Como posso eu sofrer de angústia se cada segundo meu foi uma experiência de vida? Como posso eu estar triste se os cabelos rareiam e a pele não tem mais a textura do antigamente se é sinal que eu estou aqui agora a rever cada passo que dei?
Me deixo só olhar o zulmarinho e esperar Março, faz de conta o tempo passado é presente e tempo futuro é grande para eu ter tempo de recordar cada instante como um agora.

Sanzalando

28 de fevereiro de 2024

K'arranca às quartas - 6º programa

Programa de Rádio com palavras, livros e música 
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Os Cús de Judas - Podcast do K'arranca às Quartas


Sanzalando

meus retalhos 24

Pouco passava das 15:30 horas de segunda feira. Dia caótico de segunda feira na urgência, o que me é normal. Entra o INEM pela reanimação dentro trazendo um trabalhador da construção civil literalmente como se fosse um espeto. Grande aparato, grande alvoroço e juntam duas equipas de enfermagem, os que iam sair e os que entravam. Lá tive que usar a minha voz de comando de modo a haver orientação e ordem num trabalho que nem eu ainda tinha conseguido imaginar no meu cérebro as imagens tridimensionais que via. Um ferro, usado na construção de pilares, com cerca de 8 mm de diâmetro que entrava abaixo da grelha costal à direita e saia na face externa da coxa esquerda. Estávamos ali com cerca de 1 metro de ferro que percorria o interior daquele sinistrado tal qual um espeto. Felizmente os colegas no trabalho, que auxiliaram a equipe da VMER, não ousaram retirar o sinistrado pela via como entrou mas sim optaram por cortar . Interessa dizer que o sinistrado caíra de um andar superior e entrara em queda num pilar que estava a ser construído. 
Feito o reconhecimento exterior, tendo os parâmetros vitais estabilizados, pedidos necessários feitos há que levar ao bloco e tratar o que houvesse para o fazer. Não havia hipótese de fazer nenhum exame de imagem pois o ferro iria deturpar qualquer imagem na sua proximidade. Como eu dizia, fazemos um tac in loco.
No bloco, seguindo a rotina habitual, feitas as observações mais pormenorizadas decidi avançar pela abertura abdominal e ver os estragos e a maneira como retirar aquele corpo estranho que nos incomodava no posicionamento para além de tudo o mais. Duas lesões no intestino delgado, identificadas e marcadas para mais tarde reparar. Agora temos aqui o problema maior, o ferro rasgou a veia cava e faz de clampe, isto é, rasgou e faz pressão de modo que não há sangue a voltar para o coração vindo da extremidades inferiores. Cada vez que mexíamos no referido era um lago que subia que nem mar em maré cheia.
O meu colega gritava de pânico ao mesmo tempo que empalidecia de susto. Eu pensava e acho disparei a pulsação para níveis inimagináveis. Eu não queria transparecer o pânico em que estava pois tinha de pensar rápido e resolver a situação. 
- Zé, vamos deixar o ferro aqui, vamos coser a veia cava e depois então retiramos o ferro. Olha, tem um rasgadura no fígado. 
O Zé, meu colega e ajudante nesta cirurgia dizia para mandarmos o doente para Lisboa. 
- Não, Zé. Ele não ia chegar lá porque não há retorno venoso. Temos que ser fortes, Zé. Respira e tudo vai correr bem.
Mimas, enfermeiro experiente estava a meu lado e dava-me força e estímulo para continuar. No fígado fiz um tamponamento com compressas grandes e agora viro-me para a cava. Na verdade apetecia-me cavar dali para fora mas o doente não ia gostar.
Sutura na cava feita, mexido o ferro e verificámos que não sangrava. Mas e agora tiramos o ferro pela coxa ou pela parte superior do abdómen? O ferro era irregular, tipo estriado. 
- Mimas arranja lá um alicate da Ortopedia. pedi eu enquanto pensava. 
Veio o alicate de pressão, ajustamos ao ferro na porção inferior , na coxa. 
- Mimas, vai puxando devagar enquanto eu e o Zé verificamos aqui o interior.
- Zé, toma conta do Fígado para não estragarmos mais. Eu tomo conta aqui da veia cava. eu dizia isto mas convicto que não seria assim tão fácil retirar aquele metro de ferro rugoso sem estragar mais.
Não foi fácil mexer. A força feita levava e o ferro. Com tentativa e modificações lá conseguimos ir tirando o ferro sem males maiores. Finalmente o ferro saíra e tinham decorrido apenas três horas. Era preciso verificar tudo novamente e reparar os danos identificados. 
O Zé recuperou e ajudou mais a partir do momento que tirámos o ferro. Fizemos todas as reparações possíveis, lavamos para aí com uns 15 litros de soro, e encerramos deixando uns drenos pelo caminho. 
Pós-operatório sem um único incidente.
Uns tempos mais tarde ele apareceu-me em visita ao hospital e contou-me que quando fora à sua terra natal, Cabo Verde, tinha levado as fotografias que eu lhe dera e que havia pedido para alguém tirar (não tinham ainda inventado os telefones que fotografam), e passaram a chamar-lhe o Reencarnado



Sanzalando

27 de fevereiro de 2024

uma carta sem destinatário

Querido amigo

Espero que esta carta te encontre em boa forma física e mental e com um sorriso de orelha a orelha, pois estou quase a chegar naquela praia paradisíaca que você chama de lar! Eu sei que pode parecer um pouco louco, certo? Eu, já um completo estranho, aparecendo do nada e pedindo cama e roupa nesse retiro costeiro onde um dia aprendi a andar, me apaixonei e me deixei embalar em sonhos. Mas você sabe, a vida é cheia de surpresas e eu, desconseguido de mim não sou coisa rara nem estranha!

Deixa-me contar um pouco de mim para que possas me reconhecer quando chegar ao aeroporto. Não vou falar da cor do meu cabelo ou dos meus olhos, porque seria impossível veres. Quero que me vejas além do superficial, assim como tivesses uns óculos especiais.

Para começar, embora não pareça sou uma alma inquieta, sempre em busca de novas aventuras e emoções. Sou como um cão de rua, farejando cada canto e caminhando por aí sem sul nem norte. Lembras-te de algum cão da nossa vizinhança de antigamente? Aquele que ladrava quando um qualquer passava, ou quando não passava ninguém? Aquele que saltava o muro e ia atrás das bicicletas parecia só ladrar para mais depressa pedalarmos?  Bem, esse seria eu no hoje de agora.

Tenho uma paixão desenfreada pela natureza e pela escrita embora ainda não consiga escrever duas linhas seguidas, sem gaguejar nos ditongos ou tropeçar nas vírgulas. Às vezes me desconecto do mundo em lugares como praias ou florestas para me inspirar e pegar as palavras que voam no vento e escrevê-las na minha tentativa de ser eterno. Sinto-me mais vivo quando estou ao sol, com os pés na areia ou perdido numa floresta densa. Não preciso de luxos ou confortos extravagantes; apenas um cenário ilustrado e estarei no meu elemento.

Além disso, sou um grande amante de histórias. Não importa se são livros, filmes ou simplesmente anedotas que, como dizia a nossa amiga de infância que faz décadas que eu não sei nada dela, são as aventuras do dia a dia, estou sempre ansioso por mais. Sou como um velho que coleciona palavras em vez de objetos brilhantes. As histórias são os meus tesouros mais preciosos, embora a minha preciosidade esteja em não ter grande história.

Ah, e não posso esquecer de mencionar meu amor pela comida saborosa e bem apresentada. Sou um explorador culinário, sempre disposto a experimentar pratos exóticos e sabores desconhecidos, mesmo nada sabendo de paladares ou de especiarias. Para mim, cada refeição é uma aventura em si e cada dentada é uma nova descoberta que me mata a fome.

Quanto às minhas habilidades, bem, digamos que sou uma mistura de tanta gente que sou incapaz de definir. Posso arranjar quase tudo com fita adesiva e um pouco de engenhocas. Não sou o tipo de pessoa que desiste facilmente frente a um desafio mas, em vez disso, vejo isso como uma oportunidade de demonstrar minha criatividade e utilidade.

Então, amigo, quando me vir chegado no aeroporto, é só procurar alguém com o brilho da aventura nos olhos, o cheiro de sal na pele e um sorriso ansioso por explorar o desconhecido. Serei eu, pronto para mergulhar nas maravilhas do seu mundo costeiro da minha infância.

até breve
com carinho,

eu


Sanzalando

23 de fevereiro de 2024

ler

Ler um livro nas calmas é um saborear contínuo de sensações e emoções. Imaginemos que saltamos logo para o fim e ficamos a saber como acaba. Perdeu-se o encanto, a beleza do caminho. Um livro é sempre melhor que um nada. Há livros que gosto, outros desconsigo gostar. Uns devoro, outros lentamente vou página a página. Há livros que não chego na página 10. Mas eu prefiro esses a não ter nenhum. Ler é saber, adquirir conhecimento. É riqueza. Qualquer livro traz-nos sempre qualquer coisa. Nos dia velozes de hoje, em que a informação quase chega antes do acontecido e a gente precisa parar e ir ler, saber o ontem de há muito ou pouco tempo. Só com os agora deste momento o saber é quase nenhum, falta o passado, falta a história.  É preciso ler.


Sanzalando

22 de fevereiro de 2024

insónia de memória

Acordado na noite como se fosse mais uma parte do meu dia com muito para fazer. Sentado no sofá, vagueei por insónias, desejos, cóleras e prazeres passados num tempo que já nem a memória localiza. Era uma noite diferente. Além de ser noite em mim, também era noite na rua. O céu era negro e salpicado de estrelas, A lua era nova pois brilhava parecia tinham lhe puxado o lustro. Eu sentado contando minutos, horas ou outros tempos que nem os carneiros passavam para eu lhes contar. Olhei as flores que tal como eu não dormiam. Estavam viçosas do lado de lá da janela banhando-se em luar. Eu não sentia vento e elas também não porque não ventava. A noite além do céu negro estava cheia de silêncios. As nuvens que lentamente se modificavam ao ritmo desse silêncio faziam-no silenciosamente. O sono não veio e eu vagabundei no tempo, fui até tão longe que já estava com medo de não saber o caminho de voltar. Vi coisas do nada, voei idades, acariciei caras que faz tempo já não são como me lembro delas. Vi gente faz tempo não fazem parte deste tempo. Quando a aurora começou a romper o céu os meus olhos pesados vergaram-se e eu não sei como voltei ao tempo de hoje, pois o sol quente me bateu na cara, manhã alta.


Sanzalando

K'arranca às Quartas Programa 5 - 21-02-2024

Programa de Rádio com palavras, livros e música 
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21 de fevereiro de 2024

olhar sincero

Sou apaixonado por olhares sinceros, do tipo que arranca a alma. Adoro olhar nos olhos de uma pessoa e sentir o resto do mundo ausente. É uma sensação tão pura e verdadeira. Mas ligações assim são tão raras, você olha para muita gente todos os dias, mas quantas vezes se sente a olhar com pura sinceridade?
Quando achar alguém assim, aproveite, pois esse momento tão especial pode durar apenas alguns segundos, talvez algumas semanas; mas se você tiver sorte, a sua vida toda.

Sanzalando 

20 de fevereiro de 2024

eu, neorrealista

Todos os meus caminhos levam-me à origem. Deve ser defeito ou apenas uma engrenagem  empenada. Eu parto para longe e quando dou por mim eu estou no lugar de partida. Eu acho que sou uma encruzilhada de seres que se encontram no ponto da paixão, que se refugia no cérebro e que se imagina no ponto central. Eu sou aquele que fugiu de mim para estar mais dentro da minha existência. Eu sou um abraço de nada cheio de amor.
Eu, a realização de mim. 

Sanzalando

19 de fevereiro de 2024

eu, cabeça no ar

Deixo o meu corpo seguir as leis da vida. Às vezes eu lhe tento forçar mas ele range e eu volto no meu lugar de comodidade.
Eu bem que não quero deixar o meu corpo se acomodar como se ele fosse uma nódoa da minha vida física. Eu lhe tento treinar para ele acompanhar a minha jovem cabeça, mas tem vezes que ele diz para ela ir que ele logo chega lá. Eu assim não lhe contrario e eu vou com a cabeça e a imaginação, o desejo e a intenção. O corpo se espraia no relax em quando eu mental vai sem físico.
Imagina o meu cérebro toca rock e o meu corpo dança slow. Eu assisto e me ouço, sem contestação nem argumentação. 
Eu bem que digo na minha cabeça para ela não sair do lugar mas ela teima em deixar o meu corpo e vai por aís como uma canção voa no vento.
Já minha mãe dizia que eu era um perfeito cabeça no ar. Eu só agora percebi que ela tinha razão. Cabeça vai e corpo fica.


Sanzalando

17 de fevereiro de 2024

saudade

Tem horas que eu dou comigo a sonhar saudades. Vais ver eu ainda me descubro que saudade tem hora. Vais ver eu ainda vejo a minha saudade num muro parece é cinema. Ainda vou rir de saudade de ter as saudades que eu tenho.
Imagina só olhar no relógio e ver que são horas de ter saudade, deixar de ouvir o ruído do mundo e ouvir apenas o som da saudade. 
Quem foi que disse que saudade é tristeza. Eu tenho saudade e ainda bem, porque assim eu posso ver que cheguei neste agora com vida passada lá atrás. Eu brinquei, saltei, chorei e ri num tempo para ter tempo de fazer tudo isso. O meu futuro encurtado já não tem veleidade de me dar tempo para eu parar a olhar para nada. Mas ainda tenho tempo para olhar para trás e saber que tenho um futuro para ver.
Na minha rua, no meu café, na minha praia, no meu jardim e no meu mato. Eu tinha tanto no passado deste presente que o meu futuro só tem de ser é brilhante.

Sanzalando

14 de fevereiro de 2024

meus retalhos 23

Ainda não era meio-dia duma segunda feira de inverno. A urgência deitava doentes para a rua porque não cabiam na sala de espera. A gripe tinha atacado e a força do pessoal também estava na mó de baixo. Doentes espirravam e o pessoal tossia, e vice-versa. Mas estávamos ali para o que fosse preciso e quando o fosse. A boa disposição disfarçada lá estava nos piropos, nas respostas e até apenas no olhar. 
Joaquim, enfermeiro com muitos anos de casa e mais os que tivera na tropa numa guerra que não era a dele, dizia que o inimigo atacava quando a gente não espera. E a gente ria com a vontade de mandar tudo para as urtigas. Doía-me o peito da tosse. O nariz da enfermeira estava mais vermelho que o do palhaço. Joaquim, apesar do frio mantinha a sua farda branca de manga curta. Apesar das dores do corpo, do pingo do nariz ele dizia que se não foi bala também não é vírus que lhe atira ao chão. Ele estava a ser a nossa força, ele era a descontração, a piada na ponta da língua e era quem mais sabia que gripes e afins não são com caldos de galinha. Para ele era mais avinha-te, abifa-te e abafa-te. No caso dele era mesmo só mais avinha-te. Então naquele dia acho ele tinha abusado da dose. A certa altura estávamos todos à procura do Joaquim. Desaparecera. Misteriosamente, entenda-se. Nunca ele se tina ausentado sem avisar. Ou a mim, seu amigo desde a minha chegada ou os colegas, muito cumplices de histórias passadas.
As horas passaram e o Joaquim nada. Vamos manter o nosso silêncio e continuar a procurar. Combinamos meia dúzia de nós que o conhecíamos bem. Pensávamos.
Hora de mudança de turno e nada. Continuei e os colegas dele se foram. Nem um recado chegou. 
No dia seguinte continuávamos na mesma. Terminava o meu turno na urgência e fui para a enfermaria. Preocupado. Não era hábito. 
Uns dias mais tarde soube. Ele tinha uma doença incurável e resolvera fazer tratamento à sua maneira. Muito álcool e até esquecer o que já há muito havia esquecido, a vida.
Fomos a sua casa, resolvemos levá-lo, assim a modos que contrariado porem sem violência. Resolvemos tudo, falámos com todos e todos foram um só, incluindo o Joaquim que ficou connosco mais dois anos, mesmo sem piadas, mesmo sem calores mas sempre pronto para nos acompanhar nas noites de folia. Nós éramos jovens e o Joaquim com as suas estórias era o nosso aglutinador. Enfermeiro à moda antiga.
30 anos depois ainda o recordo com saudade e com ciúme de não lhe ser um igual na disposição


Sanzalando

12 de fevereiro de 2024

meus retalhos 22

Sábado para Domingo, num fim de semana algo agitado, com escaramuças na Praia da Rocha e seus golpes de arma branca. Fins de semana típicos de verão em que a paixão se sobrepõe à razão e de copo em copo até ao golpe fatal, pelo menos para fim de férias. 
Somo chamados à pequena cirurgia com certo grau de urgência. O que faço sem grande esforço. Questão de feitio ou sentido pessoal.
Entro na nossa salinha e está uma jovem com cara de há pouco ter feito 20 anos e um jovem pouco mais velho. Ambos choravam convulsivamente.. Achei que o choro era mais de susto que de razão física. Mas quem sou eu para fazer julgamentos e ainda por cima de madrugada? Quero é despachar e bem. Sempre digo que quando eu trabalho é por mal de alguém e eu não gosto do mal alheio.
- Então o que é que temos aqui? perguntei olhando para a tolha que estava no colo do jovem, cheia de sangue. 
- Quem te naifou? mais uma vez em adivinhação que verifiquei ser errada.
Ele assim num espaço de choro, cara de medo e envergonhado me diz:
- Casámos hoje, viemos para o hotel e quando comecei a fazer aquela coisa com ele só senti um calor e dor e quando olhámos eu era sangue por todo o lado. Pensámos que era por ela ter perdido a virgindade. Mas o sangue era meu e nós não sabíamos que ao deixar de ser virgem a gente também sangra. E isto não para. isto assim escrito demorou muito tempo a ser dito pois havia soluços, choros e pausas no meio até de palavras.
- Mostra-me lá o instrumento - disse eu tentando aliviar o ambiente - Epá, rasgaste o ferio. Tenho que dar aqui um ponto e reparar isto. Bem e aviso que vão ser precisos 8 dias de pausa para não voltar a acontecer.
O choro parou, e entrou a cara estupefacta de quem havia descoberto algo que não podia ter uso.




Sanzalando

10 de fevereiro de 2024

K'arranca às quartas - um programa de rádio nº1

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25 minutos finais do K'arranca às quartas de 31-01-2024

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a saudade feliz de ter passado

Faz assim muito tempo que eu lhe aprendi que nem tudo é flor, nem tudo é sol. Tem desertos e tem tempestades. Mas os desertos e as tempestades passam, assim que nem a tristeza. Tristeza não dura para sempre. Flor não dura para sempre e a gente não dura para sempre. É bom mesmo aquele dia que a gente descobre que a vida vale mesmo quando é vivida e não só olhada ou chorada. Depois da noite tem sempre um dia novo. Com o dia novo quem sabe vai nascer a oportunidade?
Olha-me nos olhos e me diz que depois de tantos anos tu não tiveste saudade? Não a saudade triste mas a alegria de ter vivido aquele dia, a saudade feliz de ter passado.
É assim a vida e vamos fazer mais como então?

Sanzalando

8 de fevereiro de 2024

meus retalhos 21

Era sábado com uma tarde de primavera quente. O dia estava calmo e a urgência parecia um enfermaria de um hospital perdido no meio de um nada. Um ou dois doentes e o pessoal trabalhador parecia adormecido na moleza. Era uma tarde estranha. Se alguém acredita nessas coisas parecia que estava adivinhar que vinha ali tempestade. Quando ninguém sabia. Mas dia assim não estamos habituados. Alguém disse a brincar que a polícia tinha fechado os acessos ao hospital. Era muito estranho mesmo.
Mas tanto brincámos com a situação que ainda não havia chegado o meio da tarde e estávamos a entrar em pé de guerra. Não é figura de estilo. Era mesmo o prenuncio da guerra que se ia instalar.
Um casalinho acabadinho de casar deu entrada no Serviço de Urgência. Ela em vestido imaculadamente branco e ele de fato de um azul a dar para o celeste. 
Conjecturámos logo que havia ali um falhanço ou um ferver amoroso mais quente. Em resumo Fizemos um filme e ficámos à espera que o colega que os atendeu nos desse pormenores do caso. Todos parecíamos umas velhas alcoviteiras, apesar de não sermos elas e nem velhos.
Toca-me o telefone de serviço e ouço:
- Chefe, preciso que venha aqui com urgência. disse-me a funcionária da admissão de doentes.
Como não conheço outro termo eu desliguei e já lá estava com o meu ar sério de chefe desta coisa toda num sábado à tarde.
- Que se passa? olhando para trás do vidro onde estavam aí uma meia centena de pessoas todos vestidas com roupa de cerimónia.
- Este pessoal quer todo fazer ficha porque foram envenenados. E todos querem entrar ao mesmo tempo.
- Han? com a minha maior cara de espanto.
Dirigi-me ao vidro e perguntei lá para fora o que é que se tinha passado.
- Queremos o antidoto do veneno das osgas. 
Se não era um coro, a mim pareceu-me um coro bem afinadinho de tanta gente a querer falar ao mesmo tempo.
- Um só se faz favor. com a minha autoritária voz.
- Estávamos num casamento e vieram-nos dizer que tinha caído uma osga dentro da panela da sopa. Ora o veneno mata que se farta pelo que queremos todos o remédio.
- Calma, calma. Que tipo de osga era? perguntei eu como que a mostrar que entendia muito do assunto.
- Era uma osga. 
- Ok. Vão lá para a festa, divirtam-se porque a osga não é venenosa apesar de haver esse mito, esse boato, essa fábula. 
- Não não. O senhor da comida é que nos mandou aqui porque diz que é mortal.
- Vão-se lá embora, divirtam-se e na segunda feira vão a uma biblioteca e estudem alguma coisa sobre as inofensivas osgas que nos comem os mosquitos.
Até parece que atirei álcool para uma fogueira. Quase entravam pelo buraco do vidro da admissão. 
Virei-me para a funcionária e pedi-lhe para ligar para o Centro de Informação antivenenos e passasse o telefone a um deles.

(na verdade naquele tempo ainda não havia o famoso Dr. Google e eu havia lido há pouco tempo a história das osgas e seus mitos)

Quando os ânimos acalmaram fui saber dos noivos e o meu colega que não sabia de nada do que estivera a acontecer tinha pedido análises e aguardava a sua realização. Ele enquanto esperou pela ligação ao Centro de Informação foi pedindo análises... lá estiveram os noivos com a festa interrompida até saberem que sob o ponto de vista analítico estavam bem

Sanzalando

6 de fevereiro de 2024

meus retalhos 20

São horas de ser rendido. Ultima revista aos doentes da urgência, não vá ficar algo pendurado ou perdido. É dia de Natal e a madrugada não foi nada calma. 
- Chefe, precisamos de si aqui na recepção.
- A caminho. dito e feito.
- Esta senhora está a reclamar porque a companheira dela está aqui e ninguém dá alta e ela quer ir embora. 
- Que é que se passa? pergunto eu dirigindo-me para a senhora não inscrita e que apresentava um hálito etílico, tal como a companheira que havia entrado num quase coma alcoólico.
- Ela - dizendo o nome - tem de sair agora. 
-Mas não está em condições de ter alta ainda. disse eu no mais puro sentimento de que uma bebedeira devia tratar-se em casa ou nunca a ter.
Mas na verdade eu nem tive tempo para pensar a frase anterior pois fui interrompido por um tabefe que me fez ver estrelas. A segurança, apanhada desprevenida, actuou e lá fui eu buscar os meus óculos a dois metros de mim.


Sanzalando

5 de fevereiro de 2024

meus retalhos 19

E no meio de tantas recordações quase me ia esquecer de falar da primeira vez que o chefe disse que era eu quem ia ser o Cirurgião principal daquela apendicectomia. 
Até aquele dia eu era só o ajudante. Estava sempre pronto para agarrar nos afastadores, para cortar os fios, para mostrar sem mexer, sem atrapalhar. Ajudar é um acto de inteligência porque quem está a operar não pode perder o fio ao pensamento nem o olhar do seu foco.
Hoje, naquele dia, eu ia ser o número um. O bisturí que normalmente é uma lamina que corta numa linha perfeita, passou de repente a ser uma faca pesada e tremida, irrequieta e eu quase pensava que ela tinha ganhado vida na minha mão. Afinal era só eu a tremer. Uma coisa é a compressa na mão e outra é a lâmina.
Mas eu já tinha ajudado muitas. Eu sabia os passos todos. Naquele instante eu estava branco. A cabeça perdeu a sua carga e ficou um vácuo. O meu ajudante, pouco mais velho que eu naquele lugar., me foi acalmando e falando tranquilamente que até quase consegui me convencer que aquilo era fácil.
Lá fui eu passo a passo fazer as coisas que mostraram que afinal eu sabia o que é que estava ali a fazer.
Sem eu notar, o meu cérebro estava totalmente dentro daquele buraco que eu tinha feito para retirar o apêndice, entrou gente na sala. Num susto senti um frio a correr desde o pescoço até mesmo chegar lá no anus num ardor que quase me fez sair dali a correr. Ao mesmo tempo ouvi:
- Cirurgião nem que o tecto caia deixa o doente aberto. Era só mesmo o meu chefe a me praxar.


Sanzalando

4 de fevereiro de 2024

eu vou

Vou por aí perdidamente, umas vezes escrevendo outras apenas memorizando lembranças, transcendências de mim, o que sinto, o que me tortura, o que me alegra. A vida, enfim. Ainda não encontrei um jeito de falar ou uma disposição de me ouvir, sem filtros nem limpandor de incertezas. Escrever ou memorizar é a única forma que sei de modo a não me esquecer ou desistir de ser quem sou e como sou. Mas na verdade tem dias que os dias parecem esquecidos de me recordar as palavras para as escrever. 
Vou por aí, perdido no sono duma madrugada, num início de tarde, escrevendo lembranças para não me entristecer.



Sanzalando

1 de fevereiro de 2024

podcast

balada da praia dos cães

meus retalhos 18

-Dr. temos uma emergência e precisamos de si como chefe de equipa.
- Tudo acontece nos meus dias? Que é que se passa?
- Temos um doente que se atirou da janela do 5o andar...
- Às 11 da noite? As janelas não estão fechadas à chave?
- Pelos vistos aquela era a única que não estava.
- Dali só parou na radiologia. Liguem à PSP, ao presidente e afastem o máximo de pessoas do local.
Aceder ao local foi um bico de obra mas lá se encontrou a forma.
Chegou a PSP que disse que tinha que chemar a judiciária mas nem ouvi a explicação. 
- Chamem.
A administração deu-me luz verde e pediu discrição. Feito.
O PSP não cabia na janela de acesso ao local e pala além disso o seu peso poderia aumentar a caratera feita pela queda. O da judiciária disse que sofria de vertigem e não conseguia ir ao local.
Chefe de equipa pensou e perguntou :
- Que precisa dali?
- Fotos. e dá-me a máquina para as mãos. Eu e um assistente operacional lá passamos a janela e comecei a disparar. O corpo jazia morto e eu fotografei-o para aí de uns 50 ângulos diferentes.
- E agora? perguntei eu como que a pensar que mandariam alguém lá para retirar o falecido.
- A gente já não precisa de mais nada. Agora é só ver a janela...
Percebi. Cheguei a chefe de equipa para fazer tudo, incluindo resgate de corpos. Olhei para o assistente operacional e disse:
- Temos que ser nós. 
Arranjamos maneira para entrar na caratera e com suavidade e segurança fazer um trabalho que ninguém nos tinha preparado.
Feito e sem notícias na imprensa. No dia seguinte recebemos um agradecimento pela maneira como ajudamos as forças de segurança. Ficamos gratos e com currículo melhorado. 


Sanzalando

Podcasts

recomeça o futuro sem esquecer o passado