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28 de dezembro de 2025
o intelectual
22 de dezembro de 2025
Boas festas digital
Houve um tempo em que o "Boas Festas" pesava. Pesava no papel encorpado do postal, no relevo dourado da escrita e no selo que precisávamos lamber antes de confiar ao marco do correio. Hoje, o desejo de felicidade viaja à velocidade da luz, desmaterializado em pixels, mas carregando o mesmo dilema humano de sempre: como fazer-se presente quando se está ausente?
Desejar boas festas remotamente tornou-se uma espécie de coreografia digital. Há quem prefira o "bombardeio" de GIFs cintilantes nos grupos, aqueles onde o brilho da árvore de Natal virtual parece competir com a bateria do telemóvel. Há quem opte pela elegância sóbria de uma mensagem direta, personalizada, que tenta furar a barreira da frieza do ecrã com um lembrei-me de ti.
Desejar um feliz Natal remotamente é uma prova de resistência que faria o Pai Natal trocar o trenó por uma reforma antecipada nas Bahamas.
Depois temos o WhatsApp. Desejar boas festas por mensagem tornou-se uma modalidade olímpica de Copy-Paste. Há a "Mensagem Encaminhada" com aquele selo de vergonha no topo, enviada por aquele primo que claramente mandou o mesmo texto para os 457 contactos da agenda, incluindo o senhor que lhe vendeu um sofá no OLX em 2019.
No fim do dia, seja por um e-mail formal, uma mensagem de WhatsApp cheia de emojis ou uma chamada de vídeo tremida, o "Boas Festas" remoto é o nosso jeito moderno de dizer: "Eu podia estar em qualquer lugar, mas escolhi usar este segundo para te encontrar no espaço digital."
E, talvez, o segredo da magia de Natal hoje em dia não seja a conexão Wi-Fi, mas a conexão que ela permite manter viva, mesmo quando o Wi-Fi falha.
Conversas à Mesa nº2
Programa de Rádio de Conversas à volta da Mesa - 22 de Dezembro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
20 de dezembro de 2025
anúncio de inverno
O inverno tem destas crises de identidade. No calendário, ele já se anuncia com o rigor das sombras longas, mas aqui fora, na quase entrada da sua estação, o céu parece não se decidir entre a despedida do outono e a chegada do frio. É um dia de sol e chuva, um daqueles espetáculos meteorológicos que nos obrigam a uma dança constante com o guarda-chuva, o casaco e a gabardine.
Mas a atmosfera é traiçoeira. No horizonte, as nuvens não chegam devagar; elas galopam quais cavalos à solta. São cinzentas, carregadas, com barrigas pesadas de chumbo que contrastam com o azul elétrico que ainda resiste por cima das nossas cabeças.
Há algo de profundamente poético nesta indecisão do tempo. É assim como se o céu estivesse a tentar lavar a poeira do mundo sem querer apagar a luz. O cheiro que sobe da terra mistura-se com o ar gelado, criando uma perfume que é a própria essência da mudança de estação.
Neste dia de "sim mas não", aprendemos a aceitar a impermanência. O arco-íris surge, tímido e incompleto, entre dois prédios, lembrando-nos que a beleza precisa sempre de dois elementos opostos para se manifestar. O ritmo da cidade abranda. O café da esquina enche-se de gente que olha pela montra, à espera que a nuvem passe, enquanto o sol continua a refletir-se nas chávenas.
Na entrada do inverno, estes dias servem para nos preparar. Dizem-nos que o cinzento está a chegar, sim, mas que o sol não desapareceu, apenas mudou de tática. Ele agora brinca às escondidas, aparecendo apenas o tempo suficiente para nos lembrar que, mesmo nos meses mais curtos, a luz guarda sempre um lugar na agenda.
Termina a tarde e o céu fica de um laranja dramático, lavado pela água e polido pelo frio. É o inverno a dizer-nos que, mesmo na chuva, há uma claridade que só ele sabe dar.
19 de dezembro de 2025
ter saudade
A saudade é uma palavra que se veste de gala na língua portuguesa, se forma poesia ou romance, mas que, na verdade, prefere andar descalça pelos cantos da nossa memória. A saudade é o preço que pagamos por termos vivido algo que valeu a pena.
Estranhamente, ela não nasce apenas do que perdemos. Existe uma saudade que é quase uma profecia: aquela que sentimos enquanto ainda abraçamos alguém, antecipando o momento em que os braços se vão soltar. É o medo de que o agora se torne num ontem depressa demais.
Tem gente que diz que a saudade dói. E dói, de facto, como um aperto na alma. Mas há uma doçura clandestina nesse aperto. Se não sentíssemos saudade, significaria que nada nos marcou, que passámos pela vida sem deixar que o mundo nos tocasse. É o cheiro da maresia ou o som de uma porta que rangia de forma específica na casa dos avós. É o eco de uma gargalhada que já não habita o presente, mas que continua a fazer vibrar o ar quando fechamos os olhos. Talvez a mais difícil de carregar, a falta que sentimos da pessoa que fomos em determinado momento da vida, antes das responsabilidades nos endurecerem a pele, nos enrugarmos de idade.
Olhamos para o mar e, mesmo sem ter ninguém do outro lado, sentimos que algo nos falta. É um estado de espírito que nos permite estar aqui, mas com o coração em algures, do outro lado. Se calhar, mesmo do outro lado de nós.
No fim de contas, a saudade é a prova viva de que o tempo não é uma linha. O passado não ficou lá trás, ele viaja connosco, guardado em frascos de perfume, em melodias de rádio e em nomes que o tempo não consegue apagar.
Ter saudade é, acima de tudo, ter para onde voltar, mesmo que esse lugar já só exista dentro de nós.
18 de dezembro de 2025
força maninha
O quarto da minha irmã passou a cheirar a álcool e a ter um sabor de doença. É um quarto de hospital. Eu, que sou mais novo, não gosto muito daquele cheiro nem do seu sabor, para não falar de hospital. Para mim, o quarto da minha irmã deveria cheirar a bonecas, trapos e outras coisas como dantes.
A minha irmã está com uma doença, como diria a minha mãe se cá estivesse para nos mimar. É uma daquelas que pede muito descanso, mantas fofas e dias inteiros deitada a olhar para a janela e sorrir. Eu não gosto de ver ou saber que a minha irmã está pálida, mesmo sabendo que não perdeu o sentido de humor, que não é igual ao meu mas é dela mesmo. Fico assim de coração apertado como se tivesse dado um nó nos atacadores que me estrangulam até na alma.
A minha irmã não vai ficar boa num passe de mágica, mas até sorrir também com os olhos, eu vou olhar para todas as estrelas e ver qual delas lhe vai brilhar na alma e fazer pensar que não foi mais que o susto de um relâmpago que me assustou.
Força maninha, tu consegues voltar-me a sorrir também com os olhos.
17 de dezembro de 2025
Programa 98 - K'arranca às Quartas
Programa de Rádio com palavras, livros e música - 17 de Dezembro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
16 de dezembro de 2025
e eu tive Natal, muitos
Eu não ligo ao Natal. Nada de confusões, não ligo porque não tenho o número. Tenho o do Natalino, do Dr. Jesus, o de Maria Madalena, minha mãe, mas não tenho o do Natal. Porém, todavia e por causa das coisas eu já passei por muitos natais que é o mesmo que dizer eu já tive muitos Natal, porque afinal o Natal é só um e só acontece uma vez por ano. Por isso a minha estória foi passada num desses que eu passei lá na terra.
Era véspera de Natal no deserto, um lugar onde o céu estrelado brilhava forte, mas a neve era apenas uma história contada por viajantes, livros e filmes. A areia ainda guardava o calor do dia, e o vento soprava suave, desenhando ondas douradas ao redor.
No oásis havia uma pequena aldeia e as pessoas se reuniam à volta duma fogueira. Em vez de pinheiros cobertos de branco, havia árvores, cujo nome nunca perguntei, enfeitadas com a luz da lua. As crianças não usavam casacos pesados, mas corriam descalças, rindo, com os rostos iluminados pelo fogo.
Naquela noite, uma família preparava a ceia. Não havia peru nem rabanadas, mas pão quente, tâmaras doces e leite de vaca. A minha avó contava que o Natal não precisava de frio para ser verdadeiro, precisava de partilha. Cada pessoa trazia algo simples, e tudo se tornava abundante quando colocado no mesmo tapete que servia de toalha.
Quando a lua cheia subiu alta, mesmo por cima de nós, um viajante chegou cansado. Trazia pouca bagagem e muita sede. Sem perguntas, oferecemos-lhe água e comida. Ele sorriu e contou que vinha de longe, seguindo uma estrela que parecia mais brilhante naquela noite. As crianças olharam para o céu e, pela primeira vez, repararam numa luz diferente, tranquila, quase acolhedora.
Sentados na areia, ouviram histórias de esperança, de recomeços e de um menino que nascera há muito tempo para lembrar o mundo do amor. O silêncio do deserto envolveu todos, como um abraço.
E assim foi o Natal naquele lugar onde não neva e sem frio, sem gelo, mas cheio de calor humano. Porque, mesmo no deserto, quando há partilha, acolhimento e luz, é Natal.
15 de dezembro de 2025
eu e o cachorro-quente
Naquela noite de sábado, a feira parecia respirar preguiça. A noite tinha caído depois de um Pôr-do-Sol mágico, os bancos de madeira das arcadas estavam vazias frente à barraquinha dos cachorros-quentes do Sr. Ferrão.
Eu cheguei com a fome de quem tinha jantado um jantar leve. O cheiro do pão aquecido, da salsicha aquecida na água e da mostarda faziam-me uma qualquer promessa que se dissolver no ar e me dizia que era hora de aproveitar a não chegada de muita gente. Pedi um cachorro-quente com tudo, porque há decisões que pedem coragem. E eu além dela tinha fome. D. Lígia me reconheceu e achou estranho:
- Não jantaste, João Carlos?
Que sim, respondi meio a medo não fosse ela não querer me dar o saboroso e antecipado babar de cachorro quente. Virou-se para o marido e disse para me dar o cachorro-quente. Foi caprichado. Estava mais saboroso do que é habito. Achei eu
O Sr. Ferrão sorriu como quem me entrega um segredo. Mostarda em zigue-zague. Quando mordi, o mundo diminuiu de tamanho. O barulho da feira virou fundo musical, e cada mordidela era um acordo silencioso entre prazer e bagunça escorrendo pelos cantos da boca.
Ao meu lado, uma criança ria porque o molho escapou e pintou-me a camisa. Do outro, um casal discutia se comiam ou não com cachorro-quente, discussão antiga, com vencedores antecipado que foi quem disse que ia. Eu mastigava devagar, respeitando o ritual, sentindo o pão ceder, a salsicha responder, os sabores se encontrarem no meio do caminho.
Quando terminei, os dedos estavam sujos e o coração, limpo. Limpei as mãos num guardanapo insuficiente, como manda a tradição, e fiquei ali mais um pouco, vendo a vida passar em passos curtos. Às vezes, a felicidade cabe num pão macio, numa salsicha quente e na certeza de que, por alguns minutos, nada mais importa.
13 de dezembro de 2025
eu e a couve-flor
O sol estava com as forças fracas, próprias de um outono quase inverno e das 9h da manhã, eu era portador de um optimismo primaveril. Era hora de eu ir ao Mercado Municipal, levando um saco de ráfia ou coisas parecida, que tinha um desenho suspeito de uma abelha com óculos de sol.
O primeiro objectivo era simples: comprar uma couve-flor quase perfeita.
- Bom dia,! Cedo hoje, hein? - cumprimentou-me o Sr. Juvenal, o homem da segurança, com um sorriso sonolento.
- Cedo, sim, Juvenal. A caçada à Brassica oleracea exige pontualidade. - respondi com a seriedade de um general prestes a entrar em batalha e mostrando toda a minha cultura que não é agrícola.
Ao entrar no mercado, mergulhei imediatamente no caos vibrante. O ar cheirava a terra fresca, coentros, e um leve toque de desespero matinal.
A primeira paragem foi na banca do Tiago, o verdadeiramente conhecido por ter o melhor repolho e o humor mais azedo da região.
- Tiago, não há couves-flores que prestam? - disparei inspecionando uma que parecia ter levado um soco.
Tiago, sem tirar os olhos do que estava a fazer, murmurou:
- Estão ali, perto das abóboras. Não reclame, o preço está nas alturas. Culpa do tempo, dos impostos, e do meu gato que não me deixa dormir.
Suspirei. Eu sabia que o Tiago inventava histórias. Na semana passada, a desculpa foi o stress pós-traumático de uma beterraba estragada.
Dirigi-me à pilha de couves-flores, onde me deparei com sua arqui-inimiga matinal: Dona Euredice, estava a inspeccionar cada cabeça de couve-flor com a meticulosidade de um perito forense.
- Euredice! Que surpresa desagradável! Pensei que estivesse na sua casa, a meditar sobre a humildade, o reumático ou os netos que não tem - alfinetei.
Dona Euredice levantou uma sobrancelha, os óculos deslizando para a ponta do nariz:
- Meu querido. Estou apenas a garantir que esta couve-flor não tenha a mesma textura esponjosa que a sua moral. Ah, olhe! Esta aqui está perfeita!
Euredice pegou a couve-flor mais branca, mais firme e de aparência mais angelical da pilha.
Num acto de pura audácia e reflexo, estendi a mão para pegar uma segunda, igualmente majestosa, mas o cotovelo de um apressado bateu na minha sacola.
A couve-flor perfeita escorregou dos meus dedos e rolou acabando num estatelado e fragmentado.
Bem, não apenas rolou, ela ganhou impulso. Ela passou pelo pé do Tiago, que mal a notou. Ela curvou por cima de uma caixa de batatas-doces, desviou-se de um carrinho de compras e, com um toque dramático, escondeu-se sob a banca de pimentos coloridos, feita em fragalhos.
Larguei o saco, agachei-me, engatinhei, afastando as pernas das pessoas, ignorando os "Desculpe!" e "Cuidado, pá".
- Eu vi! Ela fugiu para perto do chuchus!", gritou um menino.
Dona Euredice, inicialmente chocada, agora estava a rir-se em silêncio.
Finalmente cheguei à banca dos pimentos. Olhei para o chão, mas a couve-flor não estava lá, o que estava lá eram pedaços de cérebro.
- Ei, pá, estás à procura de algum um anel de diamante? - perguntou o Sr. Domingos que vendia os pimentos, rindo.
- Perdi o meu futuro almoço! Ela... ela fugiu-me.
Nesse momento, uma senhora de chapéu grande inclinou-se, aponta para o lado e diz-me.
- Não fugiu, querido! Seu cérebro está fazendo um picado pelo mercado. Olhe lá a sujeira que fez!
Corri dali para fora, fui para a secção de pães, por outros corredores, e cheguei à seção de queijos, ofegante.
Lá estava uma tão bela Brassica oleracea, como a fugitiva branca, encostada suavemente num grande conjunto de queijos.
Peguei-a, abracei-a como se fosse um recém-nascido, uma pérola, uma pedra preciosa.
- És minha, não vai escapar de mim! Vou fazer-te em puré tão bom que o Tiago vai ter que admitir que errou nas suas inverosímeis desculpas.
- Esta ida ao mercado hoje foi uma aventura. - disse Euredice que me olhava desde o início - Mas sugiro que lave essa coisa. Está com cheiro de Parmesão ou Estrela - continuou.
Sorri, segurando a couve-flor ligeiramente temperada com queijo.
- Prefiro pensar, Euredice, que ela apenas adquiriu um toque de sabor gourmet.
Afinal de contas eu fui ao mercado e cumpri com a minha missão
Bom Dia Mercado 11
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12 de dezembro de 2025
Sabores do Mundo à Mesa
O convite dizia apenas: “Jantar em minha casa. Traz apetite e curiosidade.” Não mencionava dress code, mas percebi que era noite de aventura quando cheguei e senti, ainda no corredor, um perfume indecifrável — algo entre gengibre, manteiga quente e qualquer coisa que lembrava férias.
A porta abriu-se com a alegria de sempre, e lá estavam os amigos, cada um com o sorriso de quem já viaja há horas, embora ninguém tivesse passado da sala. A mesa era um mapa: tomates italianos conversavam com nacos mexicanos, enquanto especiarias indianas faziam uma dança silenciosa ao lado de uma travessa que, juro, parecia ter sido preparada por alguém que confundiu receita com poesia.
Começámos a provar, como quem visita cidades sem mapa, ao acaso. A primeira paragem foi Itália, bruschettas simples, mas tão boas que alguém comentou que deviam ser ilegais fora de Roma. Depois, Japão, numa salada tão leve que parecia ter sido feita para flutuar. México chegou em festa, com tacos que exigiam duas mãos e pouca vergonha. E Índia apareceu como sempre aparece na cozinha: deixando um perfume que fica na roupa, na memória e talvez na alma.
A certa altura, ninguém falava do prato que estava a comer. Falava-se da vez em que quase se perdeu um voo, da mãe que fazia bolo-bom, do medo de mudar de vida, do amor que foi e do que ainda pode vir. Descobrimos que, quando há sabores do mundo na mesa, as conversas também atravessam fronteiras.
No fim, enquanto a sobremesa francesa esperava pela devida atenção, alguém disse:
- Devíamos fazer isto mais vezes.
E era verdade. Não porque os pratos estavam perfeitos — não estavam, e talvez por isso mesmo estavam tão bons — mas porque ali, naquela mesa que parecia abarcar o planeta, percebemos que viajar não requer mala nem passaporte. Basta companhia certa, fome sincera e um punhado de especiarias.
Saí tarde, com o casaco a cheirar a histórias e a promessa silenciosa de que o mundo cabe inteiro num jantar entre amigos.
E se calhar é por isso que hoje há jantar do meu antigo serviço
11 de dezembro de 2025
as pernas longas do tempo
Na minha cidade, feita de poeira e sem pressas, onde relógios brilham nos pulsos dos mais velhos, sem ansiedade impaciente, vivia um velho relojoeiro. Ele não consertava apenas engrenagens; ela ouvia o coração do tempo, até dos atrasados Cauny ou dos novíssimos Omega, dos simples aos cronômetros complicados.
Um dia, um viajante cansado, de fato cinzento e passos silenciosos, parou na porta da sua loja.
- Relojoeiro - disse o viajante, na sua voz que mais parecia com o sussurro da areia que caía numa ampulheta antiga - os meus sapatos estão gastos. Eu sigo as pernas longas do tempo, e elas nunca cansam, porém o meu relógio desde ontem que paralisou no tempo.
Ele mostrou o seu sorriso, sem largar a minúscula lente com que observava um velho relógio que também se cansara de circular ponteiros.
- Ah, as pernas longas que o tempo tem, têm um alcance impressionante, não é?
O viajante melancólico disse que sim e continuou:
- Quando nasci, elas deram um passo. Um passo largo o suficiente para me tirar da infância num piscar de olhos, fazendo o quintal parecer subitamente pequeno. Pensei que o tempo estivesse a fugir para longe de mim.
- Muitos pensam - murmurou o relojoeiro sem tirar os olhos do tempo parado do velho relógio que tentava recriar.
- Mas eu observei - continuou ele - e percebi que não era a velocidade. Era a escala. Em momentos de alegria, ou de espera angustiante, as pernas longas simplesmente se dobram. Elas dão um passo tão minúsculo que um único segundo se estica e se desenrola, revelando cada respiração, cada tom de cor. Um beijo pode durar uma vida, um adeus pode ser instantâneo.
O viajante olhou para a rua onde não passava ninguém e continuou:
- Agora, elas estão marcham rápido de novo. Levam as montanhas até o mar e transformam reinos em lendas antes que eu possa terminar um copo de água.
- E o que o assusta nelas agora? - perguntou o relojeiro, finalmente erguendo os olhos e largando a velha lente sobre a palma da mão que a esperava.
- O facto de que elas não têm direção - respondeu o viajante - Elas andam para a frente, mas também para trás, trazendo de volta memórias com tanta vivacidade que o passado se torna presente. Elas não me levam apenas para o futuro; elas carregam tudo. E quando elas derem o passo final de uma vida, eu me pergunto, onde elas pisarão a seguir?
O relojoeiro pousou as ferramentas, ouviu-se um clique suave do metal e disse:
- Este já tiquetaqueia de novo. Meu caro - disse ele, apontando para o coração pulsante de um relógio de pêndulo - as pernas longas do tempo nunca param. Elas não caminham sobre a poeira da Terra; elas caminham sobre o significado que damos a cada momento. Quando o seu tempo terminar, as pernas longas do tempo não desaparecem. Elas simplesmente dão o passo mais longo de todos, aquele que transforma a sua vida em história. E então, elas começam a marchar através da memória de quem fica.
O viajante sorriu pela primeira vez.
- Então, as pernas longas do tempo são na verdade as pernas da eternidade disfarçadas?
- Não - disse o relojoeiro piscando os olhos - São apenas o ritmo da vida. Cabe a nós decidir se o próximo passo é uma corrida ou uma dança.
O viajante saiu, e o relojoeiro ouviu o passo constante e interminável das pernas longas do tempo, como se fosse um concerto de melodia tiquetaquizada infinitamente.
10 de dezembro de 2025
Programa 97 - K'arranca às Quartas
Programa de Rádio com palavras, livros e música - 10 de Dezembro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
9 de dezembro de 2025
O Grande Dia da Carta de Condução
No glorioso dia em que você finalmente ia tirar a carta de condução, parecia que o universo inteiro tinha decidido fazer testes contigo também. Logo de manhã, o despertador não tocou, talvez estivesse solidário com o meu nervosismo, e eu acordei com aquela sensação de “faltava qualquer coisa”… até lembrar que faltava tudo, principalmente sair da cama a correr, apesar de serem sete da manhã e o exame ser só às 11. Mas tal como o meu avô eu não gosto de chegar tarde e por isso duas horas antes é bom.
Chegando ao edifício das Obras Públicas, local de fazer o dito e referido exame, que eram dois, para tirar a carta de condução, o examinador, com aquele olhar de quem já viu de tudo, disse apenas:
- Hoje é o dia, hein? Não atropeles ninguém nem aleijes o examinador…
- Sr. Hilário, espero não magoar ninguém nem ter que cá voltar.
- Isso é o que vamos ver.
- Qual é o carro em vamos fazer o exame?
- No Colt do meu tio Cláudio. disse eu a pensar que ele estava a meter-se comigo, pois há mais de um mês que eu tinha lá deixado os papéis.
- Não é no da Escola de Condução? - perguntou assim como que a fazer uma cara que não era de fazer amigos.
- Não. Não andei na escola. Eu propus-me a exame. disse eu já a ver o meu mundo a girar contra.
- Esse carro não dá. Não tem as medidas...
- Quê?! gritei eu já a tremer.
Lá me explicou que não vira os papeis e que o Colt como o Mini não podiam ser utilizados.
E agora. Sentei-me no passeio, lágrima a cair da cara muito devagar. Levantei-me, fui à Secretaria e pedi para ligar à minha mãe que estava a trabalhar nos Caminhos de Ferro.
- Mãe. Tenho meia hora para arranjar um carro grande para fazer exame porque o do tio Cláudio não dá.
- Onde é que vou arranjar um carro agora? Olha, está ali o tio Adelino e vou pedir-lhe um conselho.
Claro que naquela altura os telefones eram fixos e as chamadas eram pedidas às telefonistas dos CTT.
- Filho, o tio Adelino vai aí ter contigo e já arranjam uma solução.
Abreviando, o tio deu o livrete, o examinador disse que sim e o exame podia começar.
Eu nunca tinha andado de Opel Kadet.
Assim fomos para uma sala onde me fez uma série de perguntas sobre sinais, prioridades, luzes e na maquete a brincar com Dink Toys, passa este e não aquele por isto e aquilo.
O código sabia eu na ponta da língua.
- Vamos para o carro.
Ah, o tio Adelino deixou o carro e foi trabalhar.
Carro a trabalhar e agora como se mete a marcha atrás para tirar do bem estacionado que estava? Pois é, não sei. No Mini e no Colt era fácil. Aqui não sei mesmo. Várias tentativas e nada.
- Devia ter treinado.
- Mas o senhor que sabe tudo e até é examinador pode fazer o favor de me dizer como é que é? - estava eu desesperado e ao ataque antes que me desse um ataque de nervos.
Ele tentou e nada. Sem querer ela entrou. Era assim, Puxa para cima e depois tudo para mim e depois para a frente. Totalmente ao contrário do que eu acho ser normal.
- Como é que fizeste isso? perguntou ele quase a sair do carro.
- Simples, pensei! respondo como se estivesse num pedestal a olhar para ele de cima.
Arrancamos dali para fora. Na rotunda do Radich manda-me virar à esquerda e eu, calma e serenamente encosto à direita e preparo para contorná-la.
- Eu disse esquerda. - barafustou ele de modo intimidatório.
- Sim, e eu contorno a rotunda e vou para o parque infantil. - respondi com ar descontraído que estava a começar a ter.
- Estaciona ali.- brusco.
Faço o pisca, parei. Sr. Hilário, não é perigoso fazer inversão de marcha aqi frente ao liceu para estacionar daquele lado e frente a um portão?
- Segue.
E eu segui
Vira para aqui, vira para ali e perto do Sporting há um lugar para estacionar e ele manda-me fazê-lo.
Eu achei um pouco apertado mas não podia esticar mais a corda. Faço o pisca e de marcha a ré vou virando o volante e fazendo as minhas medidas, mas curiosamente o carro de trás acompanhava os meus movimentos, isto é, deu-me espaço para estacionar. O Sr. Hilário saiu do carro, olhou bem e disse-me:
- Andas por aí a conduzir sem carta é?
- Não. Só no campo é que a minha mãe me ensinou a conduzir. Nunca conduzi na cidade. - afirmativo estava eu, ao mesmo tempo que estava a dizer uma grande mentira.
Agora vamos para a subida da Rua dos Pescadores para fazer o ponto de embraiagem. Se o carro não descair podemos terminar.
Fiz o ponto de embraiagem mesmo em frente ao portão da minha casa. Foi fácil.
Seguimos para as Obras Públicas e eu perguntei, já fora do carro.
- E agora como é?
- Esperas um bocado e dão-te uma guia.
- Então posso levar o colt para casa, já encartado?
- Quem o trouxe?
- Hã? o meu tio, claro. - por acaso tinha sido eu e por isso é que eu fui antes das Obras públicas abrirem.
E assim nasceu o mais novo condutor do país, mal acabado de fazer os 18 anos, emancipado.
7 de dezembro de 2025
a bicicleta levou-me ao Mundo
Chegado à minha idade, os anos passados num jeito tranquilo de quem já viveu muita coisa, depois de me reformar do trabalho de 40 anos, descobri que tinha tempo e muitos silêncios. Foi então que decidi tirar da garagem a velha bicicleta que nunca parou de andar, a mesma que usava, nas horas livres, mas agora para ver o mundo vais devagar.
Na primeira manhã, sai devagarinho, as pernas não reclamaram, mas logo foram-me lembrando que os movimentos não eram tão rápidos quanto o tinham sido uns anos muito atrás. O bairro onde moro parecia outro: os beirais eram trabalhados e algumas casas eram novas, árvores pareciam-me mais altas, os rostos cruzados na rua de todos os dias pareciam-me desconhecidos. A sensação de liberdade era a mesma de quando tinha 20 anos mas o olhar era agora mais apurado. Olhava e via.
Pedalei até ao centro da cidade. Lá, crianças corriam nos passeios, os donos passeavam cães e alguns jovens faziam manobras em bicicletas modernas. Quando passavam por mim, acenaram com respeito. “Bom dia, campeão!”, disse um deles. Ri, fazia anos que não me chamavam assim. Curioso. Eu estava com tempo para ver o mundo.
Beira rio +parei e sentei-me num banco a observar a água balançando devagar. Senti o coração bater forte, não de cansaço, mas de alegria. Era como redescobrir um pedaço esquecido da vida.
A partir daquele dia, o passeio de bicicleta virou ritual. Ver o mundo passou a ser hábito. Nalguns dias ia ao parque, noutros explorava as ruas onde nunca tinha passado. Às vezes conversava com gente nova; outras vezes pedalava em silêncio, apreciando o vento no rosto e a certeza de que nunca é tarde para começar alguma aventura.
E assim, descobri que a reforma não era o fim do caminho — era só o começo de um pedal mais leve, mais livre e cheio de pequenas descobertas. Tinha um mundo enorme para conhecer
5 de dezembro de 2025
o segredo do morro de salalé
Nas vastas terras avermelhadas da banda, mesmo onde fica a Vila que já foi Arriaga e que agora lhe chamam de Bibala, tinha um imbondeiro generosamente grande que até parecia a fortaleza do Morro de Salalé que ficava na ponta da sua sombra. Não era apenas um monte de terra, mas uma arquitetura gigantesca, uma torre de argila pura que parecia tocar o céu. Tão antigo quanto a memória da primeira chuva, ele era a casa de milhões de salalés, os pequenos obreiros que, ao longo de séculos, teceram aquela maravilha. Apetecia fazer um telhado para evitar o desmoronamento em dia de chuva no sopé da Chela.
Para o povo das aldeias à volta, o Morro não era só um ninho de insetos. Era o guardião do silêncio, o lugar onde a sabedoria dos mais velhos se misturava ao murmúrio incessante da natureza. Ninguém lhe tocava, pois dizia-se que lá, onde a argila era mais fina e o sol mais forte, residia o espírito de Nzinga, a rainha-mãe dos salalés, que podia conceder um único desejo a quem fosse puro de coração.
Havia na aldeia uma jovem chamada Kianda, conhecida pela sua curiosidade indomável. Enquanto os outros jovens temiam o Morro, Kianda sentia-se atraída por ele, sonhando em descobrir o segredo da rainha Nzinga. O que ela desejava não era riqueza nem poder, mas sim a capacidade de ouvir a terra, de compreender os sussurros do vento que pareciam carregar histórias esquecidas.
Num ano, a seca apertou o povo da Bibala. A água dos poços secou, e os rios encolheram-se como os cabelos dos velhos cansados. O desespero abateu-se sobre a vila. O velho Soba lembrou-se então da lenda de Nzinga e do desejo que ela podia conceder.
Kianda, movida pela compaixão, decidiu ir.
À luz da lua crescente, ela iniciou a subida. O Morro, liso e duro como pedra, parecia observá-la. Sentia os pequenos salalés a correrem por debaixo da superfície, como um coração a palpitar. Ao chegar ao topo, o ar tremeu. Não havia um palácio de rainha, nem um trono de ouro, apenas um único buraco no cume, por onde soprava um bafo quente e perfumado a terra.
Kianda ajoelhou-se e, com a voz quase sussurrada, pediu: "Rainha Nzinga, não peço por mim. Peço para que a minha gente possa ouvir onde a água se esconde, para que saibam onde cavar e onde a vida espera."
O silêncio que se seguiu foi mais alto do que qualquer grito. Sugundos depois, do buraco, subiu um ténue pó de terra avermelhada que a envolveu. Kianda desceu o Morro, vazia de esperança, mas com um estranho zumbido nos ouvidos.
Ao chegar à aldeia, notou algo novo. Quando fechava os olhos, conseguia sentir a paisagem. Ela ouvia o barulho fresco da água subterrânea a correr, como o som de um tambor distante, vindo de uma zona de mato seco.
Guiada por este novo "ouvido da terra", Kianda levou os homens para lá. E cavaram. E cavaram. Até que, finalmente, a água jorrou, pura e abundante, salvando Bibala da seca e da morte certa.
Kianda nunca mais regressou ao topo do Morro. Ela não precisava. A rainha Nzinga tinha-lhe concedido não um desejo, mas um dom: a capacidade de ser a voz da terra.
A partir desse dia, o Morro de Salalé não foi só o guardião do silêncio, mas também o sussurro da esperança. E Kianda, a "mulher que ouve a água", tornou-se a nova guardiã da sabedoria, lembrando a todos que, mesmo nos mais pequenos obreiros da natureza, se esconde o maior dos milagres.
4 de dezembro de 2025
eu e o mar
Era ainda cedo quando cheguei à praia. A areia ainda estava fria e o vento da manhã trazia consigo o cheiro fresco de mar. Fiquei ali parado, quieto, como se tivesse medo de assustar o mar, de lhe acordar num acordar sobressaltado, daquelas calemas que vão até na falésia da fortaleza e suja a estrada de terra, pedras e mar..
O horizonte era uma linha azul infinita que parece é recta mas é curva tal e qual a terra o é. Olhos arregalados, porque sempre me disseram que o mar era grande, mas ninguém dissera que era também vivo. As ondas vinham e iam como se respirassem, e cada uma parecia querer contar-me um segredo.
Sentei-me na areia e fiquei a ouvi-las. A primeira onda contou-me sobre peixes que brilhavam como estrelas debaixo d’água. A segunda falou de barcos que cruzavam mundos. A terceira… a terceira só suspirou, como quem carrega uma saudade antiga.
- O que foi? — perguntei-lhe.
A onda não respondeu, recuou muda após tocar-me os pés suavemente. Levantei-me e entrei alguns passos no mar. A água estava fria, mas não assustadora.
- Eu não entendo — disse baixinho. — Mas prometo voltar para ouvir mais.
E foi aí que o mar, pela primeira vez, sorriu-me, com uma onda pequena e morna que me chegou aos joelhos. Era como um abraço, pensei.
Naquele dia, descobri que o mar não se vê apenas com os olhos. Vê-se com a alma, e ouve-se com o coração. E por isso, desde então, sempre que a vida me parece grande demais, eu volto à praia, sento-me na areia fria e deixo o mar contar-me mais um pedaço da sua estória infinita.
3 de dezembro de 2025
Programa 96 - K'arranca às Quartas
Programa de Rádio com palavras, livros e música - 26 de Novembro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
uma esplanada na minha cidade
Na minha pacata cidade, aninhada entre o deserto e o mar, havia uma esplanada que parecia uma janela do tempo. Não era um lugar qualquer; era um ponto de encontro onde as gerações se entrelaçavam, um testemunho vivo de que o tempo, embora implacável, também podia ser generoso.
Depois do almoço o lado esquerdo da esplanada pertencia aos "Velhos Sábios". João Trindade Junior, Figueiras das Ameijoas, João Aldrabão, Artur Gomes, e mais uns quantos. Sentados em cadeiras de chapa, gastas mas confortáveis, os senhores todos com cabelos grisalhos e alguma brilhantina, olhares serenos falavam do dia. O cheiro do café e as páginas dos jornais amarrotados contrabalançavam a conversa ao tom de desafio. Ali, o João Aldrabão, um pescador que não sei se lá foi alguma vez, até parecia o Raul Gomes, pai do Artur, a falar de peixes que eram tão grandes que acho não cabiam no barco onde iam e mais com histórias de mar para dar e vender, jogava xadrez verbal com o João Trindade, benfiquista de gema, despachante de alfândega e ar muito sério porém sorriso que mostrava o desafio. Nestes tempos sem pressa, o melhor remédio é uma boa prosa e um café forte, costumava dizer o Sr.Reis, enquanto observava o movimento da rua com um sorriso enigmático e via o seu café cheio.
O lado direito eram jovens. Uns já considerados adultos outros ainda adolescentes. Era um ponto de aprendizagem, com o lado contrário e também de má linguagem, num corte e custura que nem velhas alcoviteiras. Todos eram passados a pente fino. À tarde, a esplanada começava a ganhar uma nova energia. Aos poucos, os jovens da cidade começavam a aparecer, paulatinamente ocupando o lado esquerdo porque eles eram homens de trabalho. A maior parte estudantes, uns ainda com livros outros já sem eles, gastavam o tempo até terem tempo de ir para o Áero-Clube jogar bilhar, na maior parte das vezes ao perde- paga.
A Esplanada da Oásis deixou de ser apenas uma esplanada do café, tornou-se um símbolo de união, um lugar onde o passado e o futuro se encontravam no presente. Era um lembrete de que, apesar das diferenças de idade e de experiência, todos partilhavam a mesma humanidade, a mesma necessidade de conexão e a mesma sede de histórias para contar e ouvir. E assim, na pacata cidade, a esplanada continuou a ser um refúgio, um porto seguro onde as gerações se encontravam, aprendiam e celebravam a beleza da vida em todas as suas fases.
2 de dezembro de 2025
o meu papagaio de papel
Numa ensolarada tarde de verão, na minha cidade de ventos do deserto onde a minha avó dizia que o que estragava tudo era o vento leste, vivia eu que além de adorar chuinga também gostava de papagaios de papel. Sempre sonhei em ter o maior e mais bonito papagaio de papel, e que voasse tão alto que pudesse tocar as nuvens.
Um dia, enquanto saboreava um gelado comprado no Tico-Tico, de morango ou baunilha por serem tão diferentes eu agora não me lembro, tive uma ideia brilhante. "E se eu fizesse um papagaio de papel que parecesse um gelado gigante?" Usei a imaginação e desenhei na cabeça um papagaio de papel com listras vermelhas e brancas, uma ponta castanha como se fosse o cone e um delicioso aroma de morango e baunilha voando no ar.
Passei a semana a desenhar e a construir o meu papagaio de gelado. Usei papel colorido, varetas leves feitas de caniço e muita cola feita de farinha. A minha mãe, habilidosa, ajudou a cortar e construir a cauda, que ela fez parecer um a derreter, escorrendo em cores berrantes.
Finalmente, o dia do papagaio ficar pronto chegou. Levei o meu papagaio de gelado para o campo aberto, perto do campo do Benfica, lá para o lado dos estaleiros do Guerra, onde não havia postes nem antenas nem outros empecilhos. Ali era eu e o meu papagaio que era diferente de todos os outros que eu já tinha visto. Ele era grande, colorido e tinha a forma de um delicioso gelado. Não, já tinha feito joeiras coloridas mas agora eu queria um papagaio de papel como um dia vi num qualquer filme de matiné, possivelmente feito em Macau ou arredores. Eu agora tinha um papagaio de papel. Joeira era para os outros.
Segurei o fio de sapateiro com firmeza e, com um empurrão do vento, o papagaio de gelado subiu no céu. Ele dançou e girou, as cores berrantes brilhavam ao sol. Náo tinha ninguém para olhar o meu papagaio de papel, original e lindo. O papagaio subiu cada vez mais alto, até parecer um pequeno gelado a voar em direção ao sol.
Enquanto o papagaio voava, senti uma onda de felicidade. Eu tinha criado algo único, algo que trazia alegria. Veio uma rajada mais forte, dei-lhe guita, ele subiu e rodopiou numa volta gigante e se desfez com estrondo quando bateu na areia dura do velho acampamento do Guerra. O meu papagaio de papel feito em forma de gelado tinha 'derretido' ao sol da minha alegria




