Nada me dá mais prazer do
que estar hoje aqui, a apresentar mais um livro de um conterrâneo meu, de um
excelente profissional émulo de Hipócrates, Galeno e al-Razi (Rhazes), de um
amigo, que após quase trinta anos de se ter fixado nesta terra que fez sua, bem
à imagem da sua Moçâmedes, se apresenta aos seus leitores com um terceiro
volume a tecer loas a uma outra cidade, entre o mar e o deserto, onde, com uns
dois anitos, se veio a fixar e a fazer sua, aí crescendo e a sonhar com a vida.
De facto, este é o último
de uma trilogia iniciada em 2016 com estórias soltas e palavras vadias, muitos delírios
ao sabor das ondas do zulmarinho da terra quadriculada onde o autor cresceu,
circulando sempre, na sua imaginação, pela cidade quadriculadamente desenhada.
Palavras. Só palavras. Os
livros que compõem a trilogia são palavras vagabundas a que se agarra, na
descoberta de memórias, saudades, recordações, lágrimas, tristezas e tantas
alegrias. Tudo isso numa cidade imaginária que já não existe, já só existe,
mesmo, no seu imaginário. E a imaginação do autor é fértil, caminhando por
pensamentos e palavras soltas, muitas vezes sem destino ou simplesmente
libertando-se das amarras que o tempo amarrou, com palavras que parecem querer
sufocá-lo, estranguladas que ficam na garganta ou na ponta de um lápis mal
afiado.
Imaginando-se sentado na escadaria
do tribunal com a extensa avenida da Praia do Bonfim a seus pés, de areia
vermelha que não levanta pó, a recordar as fontes
e as gazelas de bronze e, lá em baixo, as buganvílias a fazerem um túnel de
sombra onde aos domingos os mais velhos passeiam ao fim da tarde, o quiosque do
Faustino, a fonte da foca, lá bem no fundo o campo de futebol, o autor não faz
senão usar as palavras escritas nas folhas soltas da recordação.
Quantas vezes não percorremos nós essa avenida de alto a
baixo ou de baixo para cima ou simplesmente a atravessámos para ir para a Praia
das Miragens?
JCC revela bem
como traz tatuada na alma essa avenida feita jardim com o caramanchão de
buganvílias que o deixaram repousar nas tardes de muito calor a meditar sonhos
que mais tarde lhe vieram a fazer falta. Tudo nas palavras do autor.
Outras vezes
imagina-se na marginal, num dos arcos da praia das miragens ou sob as
casuarinas ao lado do Clube Náutico, a olhar para a baía, a apreciar o
zulmarinho, a cheirar a maresia, a sentir o sabor salgado da beira-mar, ou na
falésia, de costas voltadas para a igreja onde foi batizado (como muitos de nós
foram), tendo o mar como música de fundo ao ritmo das palavras.
Palavras, palavras, sempre por ali
a degustar palavras como quem saboreia o vento num dia de calor.
Com elas percorre desertos, desenha
silêncios e rabisca coisas de pensar. Vai por ali pregando, com elas, aos
quatros cantos dum quadrado, as sabedorias que acumulou, as crenças em que
acreditou e as fés que o alimentaram.
Gosta mesmo de se sentar tranquilo
a pensar que a quadriculada cidade é grande, a perder de vista, de como é tão
bom deixar a imaginação voar para lá das páginas dos livros e das sebentas.
Sente-se como um velho
que coleciona palavras em vez de objetos brilhantes. As histórias são os seus
tesouros mais preciosos, embora, como diz, a sua preciosidade esteja em não ter
grande história, mas não deixa de as passar para o papel na sua tentativa de
ser eterno.
Desde menino, aliás, que
se enamorou das palavras. Apeteceu-lhe um
dia, teria para aí uns dez anos, ir ter com o Zé Côco à Tipografia Namibe, que
também havia sido do pai, e assim, sem mais nem menos, disse-lhe que estava a
pensar escrever um livro de estórias, que fazia tempo guardava na memória. De
cigarro na boca, Zé Coco pergunta-lhe se é poesia e põe termo à conversa
dizendo que ali se faziam só livros de faturas e de remessa.
Mas
o nosso embrião de escritor não se conforma. Resolve ir falar com o filho Beto,
na esperança de que este o entendesse. Mal o vê, Beto dispara:
- Diz lá Chuinga, que é que queres?
Chuinga bem
lhe explica tudo direitinho:
- Quero fazer
um livro de muitas letras para os adultos lerem depois do pôr-do-sol na varanda,
como faz o meu avô.
A resposta foi
demolidora:
- Não Chuinga.
Primeiro tens de crescer e aprender a escrever, fazer os trabalhos de casa, ler
muito e depois inventar para escrever.
O nosso
Chuinga, hoje o escritor aqui presente, achava que já estava tudo inventado e
que era só escrever e lançar em livro, por isso não gostou do que ouviu, e mais
desapontado ficou quando ouviu o resto:
-Te digo,
Chuinga, vai prá escola e fica com muita atenção. Vais ver que o que escreveste
não é literatura para sair em livro.
Ele foi-se
embora e, segundo ele, ainda por cá anda a ver se aprende.
O pai, que o
Autor perdeu com 4 anos, havia sido o fundador da tipografia e do jornal ‘O
Namibe’ e era correspondente do jornal ‘O Lobito’, por isso ele achava que, não
tendo o pai tido tempo de lhe ensinar as palavras para ele as usar, por via de
morte prematura tinha o Autor 4 anos, havia-lhe, porém, passado nos genes a
habilidade de as usar, «para descrever a sua enorme vontade de ser feliz, as
coisas boas que dão certo e os sonhos de alegria feitos», como ele tão
assertivamente assegura no livro segundo da trilogia do zulmarinho.
Quem sabe? Se
calhar herdou mesmo os genes do pai, porque, como diz no prefácio outro
moçamedense, o Tomás Lima Coelho,
«a obra, toda ela,
é um mar de nostalgia doce, de alguém que ama a vida e a aceita como ela é,
como ela vem, sem ansiedades, raivas ou rancores, porque entre o nascimento e a
morte há toda uma vida para se viver».
Nesse mar de
nostalgia doce, continua o Tomás no prefácio, «o zulmarinho de que fala, um
neologismo que o autor criou, é um ponto de união, um mar chão, de ondas
mansas, de afetos, um enorme hífen que faz com que Angola e Portugal sejam uma
só palavra, um só sentimento, uma saudade serena».
Não queria
terminar sem mencionar mais dois aspetos interessantes. Um deles é a sua
passagem pelo rádio Clube de Moçâmedes. Queria ser aprendiz de técnico de som
do RCM. O Ivo, o diretor, olhou-o de alto a baixo e perguntou: é só um dia?
Não, disse ele. Eu quero viver esta vida.
Não foi a
vida, mas lá ficou uns anitos na sonoplastia do RCM, com a paciência do Sousa
Santos e do Mendes, que lhe ensinaram a mexer nos botões e nas bobinas. Outra
paixão do Autor, alicerce da sua presença nos dias de hoje, desde há uns meses,
aos microfones da Rádio Portimão. Um ciclo que se encerra, que vem confirmar,
mais uma vez, como a sua existência tem passado, passado esse que é a sua
memória transfigurada em presente.
Desde criança
que se foi moldando a uma imagem de liberdade. Cito-o:
«Dei comigo a
dizer-me que o que não largo tenho de carregar, o que carrego pesa, e o que
pesa lixa-me. Ora, assim vestido, assim alegre, fui largando consciências. Umas
mais pesadas que outras. E olhando-me no reflexo das montras, fui vendo a
imagem do ser livre que me fui tornando».
Pode ser
livre, sim, mas está nostalgicamente amarrado à cidade quadriculada, como
vimos. Mas há uma outra amarra, mais asfixiante, que vem até aos dias de hoje. Tropeçamos
a cada passo com as memórias de uma paixão antiga, com a nostalgia de uma
paixão adolescente não declarada, não concretizada, por alguém que conheceu, e
amou, na terra do zulmarinho. Amou e morreu de amores por ela, vendo nela a luz
que o fazia morrer de amor e ressuscitar de paixão. Sim, porque ele não concebe
a vida sem essa de morrer de amor e por ela teve desencadeados no peito
inúmeros incêndios.
Ele mesmo se interroga
se, em vez de amor, isto não será doença. Chega a ter esperança que, como
dizem, o tempo cura tudo, mas não é assim, reconhece ele próprio. Ele bem
queria ser curado de morte de amor, mas nada. A certa altura clama pela ajuda
de alguém que o salve da melancolia, das velhas canções e da nostalgia.
Percebe-se na
obra - aliás, em toda a trilogia - esta angústia de um amor não consumado, não
partilhado, nunca mais encontrado, perdido no tempo, mas não na memória, nem no
coração, nem na alma. A nostalgia de alguém de quem se tornou amante sem o
objeto desse amor se dar conta. De facto, a nostalgia por alguém que nunca
teve, a não ser na imaginação, e agora na memória.
Eu diria, até,
que sem esta miragem de adolescência, num sonho que não cumpriu, a Trilogia do
Zulmarinho não existiria. Sentado na escadaria do tribunal, na falésia ou na
marginal, ele viajou ao seu passado e recantou todas as músicas, todas as canções
que ouviram juntos, ele mais ela, nos bancos do jardim, na varanda de casa, no
sofá da sala, ou nos passeios de carro de fim da tarde, querendo voltar sempre
àquele momento em que não se despediram, o que foi mau, mas, pior, nunca
mais se cruzaram.
O que é que
aconteceu realmente? O autor medita nas palavras que não terá dito ou devia ter
ouvido, no gesto que fez ou no silêncio que guardou, enfim, no branco neutro de
uma qualquer desculpa, no cinzento-claro da ignorância. Mas continua sem
resposta. Não sabe o que aconteceu. Mas continua a sonhar que um dia a vai
encontrar para ser capaz de lhe dizer adeus. Há dor de quem parte e de quem fica.
Dessa vez ficou ele.
«Partiste e
não tiveste tempo de dizer adeus», resume, melancólico.
Melancolia que
perpassa por toda a trilogia. Sem a necessidade desta catarse, esta viagem
imaginada à terra do zulmarinho não teria provavelmente acontecido.
Enfim, pode
ser que esteja enganado, mas a verdade é que, tendo o próprio autor confessado
que uma das coisas de que gosta é ver os outros a descobrirem coisas que ele
nunca disse, estou tranquilo e sinto-me desculpado! De qualquer forma, os
leitores de JCCarranca agradecem esta viagem imaginária a uma terra inesquecível,
só quem lá viveu pode entender, e tudo graças, provavelmente, à saudade de um
amor eterno.
Termino auspiciando
que, a estas palavras vadias da trilogia do zulmarinho, se seguirão outras, porventura
mais diretamente relacionadas com a atividade profissional desenvolvida no
campo da medicina, como as curtas histórias a que chamas retalhos soltos no
Algarve, com que acabas, caríssimo amigo, este terceiro volume que são, no
fundo, prenúncio de uma vontade de continuar sanzalando.
Ficamos todos
à espera.
Muitos
parabéns e muitas felicidades.
Eduardo Ribeiro
Muito bom!
ResponderEliminarAgradecido em nome de Eduardo Ribeiro
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