28 de maio de 2025

Meus retalhos 34

Fui médico 39 anos e 4 meses. Vi de tudo, penso eu. Ouvi pacientes que juram que têm "o Google a dizer que é cancro". Outros tive com remédios caseiros feitos com cebola, mel, bicarbonato de sódio e nenhum, talvez só por acaso, que tenha adicionado o famoso lubrificante que também serve para tudo, WD-40.

Era uma quinta-feira morna, daquelas dias que nada prometem. Estava no consultório, a fazer as minhas consultas semanais, com os meus doentes, diria, crónicos, e alguns novos encaminhados de algum lugar.

- Doutor - disse o paciente que eu via pela primeira vez - estou com um problema "muito sério".

O paciente, senhor na casa dos 50, ar imponente, camisa aberta até o terceiro botão, corrente de ouro a brilhar sobre um peito cabeludo começou a falar mal transpôs a porta

- Bom dia. Sente-se - disse eu um pouco incomodado e sem jeito.

- Doutor, prepare-se. O que tenho... ninguém sabe tratar. Já fui a três médicos, uma senhora que lê cartas, ao YouTube e ao Google. Ninguém me resolveu.

- Diga lá o que sente - talvez com cara de pau com aquela entrada

Ele olha-me nos olhos, baixa a voz e diz:

- Doutor… espirro quando penso em sexo.

Fiquei calado dois segundos, fechei os olhos, pensei e repensei.

- Desculpe-me? - foi o que saiu

- Sempre. Basta pensar em sexo e atchim! Já não posso nem ver  mulher alguma na televisão. É olhar e atchim! Até a minha mulher acha que sou alérgico a ela. E cada vez que espirro a porca da hérnia dá pulos que até parece está a querer fugir de mim.

Mordi o lábio inferior para não rir, segurei-me à cadeira, olhei para o computador. Mas ele estava sério. Muito sério, mesmo.

— E isso acontece há quanto tempo?

— A Hérnia desde há muito, mas não liguei até que começaram estes espirros.

- Quando começaram os espirros? - segurando as palavras para não desatar a rir

- Desde que comecei a tomar um xarope para a sinusite, há uns dois meses que me foi dado pelo meu vizinho, que lhe fez muito bem.

Pedi para ver o xarope. Ele tira do bolso, como quem mostra contrabando. Olho para o rótulo.

"Cloridrato de pseudoefedrina".

Respirei fundo. Virei-me para o computador sem saber se ria se chorava. Pedi exames com o ar mais compenetrado do mundo. Recompus-me e virei-me para ele:

- Sabe que esse xarope tem como efeito secundário… excitação leve em algumas pessoas? - gaguejando para não perder o meu ar professoral

Ele arregalou os olhos.

- Está a dizer que o xarope me deixa…?

- Com a cabeça nas nuvens e o nariz sensível, digamos assim. 

Ficou em silêncio. Depois soltou um:

- Ahhh! Então não sou pervertido! Sou só alérgico ao amor!

E desatámos os dois a rir. Um riso livre, quase terapêutico. Acabei por lhe trocar o xarope. e continuar a sua inclusão em lista de espera para tratamento da hernia. 

E ele saiu, a dizer:

- Doutor, se me vir a espirrar na rua… já sabe. Olhe à volta...


Sanzalando

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