4 de novembro de 2025

No embalo do Cardan


Era sábado à noite, possivelmente o ano era 1973. Tem precisões que perdi na poeira do tempo. O Cardan fervia com o som dos Led Zepplins, e agora inventei porque não me lembro se não eram o Deep Purple, as luzes coloridas refletiam no globo espelhado que girava no meio da sala. As garinas desfilavam de calça boca de sino ou de mini-saia e blusa mil-flores, os gajos, incluindo-me,  de camisa estampada aberta até o peito e um perfume forte que misturava loção pós-barba com Bien Etre.

Cada um, com seu cabelo despenteado, em ondas ou liso, e um sorriso meio tímido, observava cada uma, que dançava sozinha. Elas giravam devagar, sentindo a batida “do baixo ou do ritmo ou do que quer que seja”, eu a inventar novamente porque esse tempo eu desentendia esses termos, e parecia não se importarem com mais ninguém.

Depois de três músicas e dois copos de Cuba Libre, ou simples Cuca, a timidez dava lugar a uma coragem fora do normal. 

- Posso entrar nesse ritmo? — perguntei eu, tentando imitar o jeito descontraído de um futuro John Travolta, mas desajeitado porque prematuro, a quem eu anda a catrapiscar sem resultado aparente até à altura

Ela riu, meio surpresa:
- Depende... desde que seja longe de mim? respondeu-me ela peremptoriamente

- Deixar tentar, dá-me uma hipótese. repliquei em voz sumida e ruborizado camuflado pelas cores vivas que as luzes disfarçavam

Virou-me costas e foi-se para outro canto.

Embalei-me no som e chorei para dentro lágrimas evaporadas. 

- Desengataste-te? perguntou-me um camba que se aproximou de mim. 

Que sim, penso ter eu dito.

Saí do Cardan enquanto trocavam de música e as luzes deixavam ver melhor. Lá fora, o vento morno da noite misturava o cheiro de  fumos com os do mar.

E entre risadas e passos lentos, o desengate virou começo de eu ser gente, porque foi ali que me prometi ia mudar o rumo do mundo. Pelo menos do meu. 



Sanzalando

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