Programa de Rádio com palavras, livros e música - 10 de Dezembro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
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10 de dezembro de 2025
Programa 97 - K'arranca às Quartas
Programa de Rádio com palavras, livros e música - 10 de Dezembro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
9 de dezembro de 2025
O Grande Dia da Carta de Condução
No glorioso dia em que você finalmente ia tirar a carta de condução, parecia que o universo inteiro tinha decidido fazer testes contigo também. Logo de manhã, o despertador não tocou, talvez estivesse solidário com o meu nervosismo, e eu acordei com aquela sensação de “faltava qualquer coisa”… até lembrar que faltava tudo, principalmente sair da cama a correr, apesar de serem sete da manhã e o exame ser só às 11. Mas tal como o meu avô eu não gosto de chegar tarde e por isso duas horas antes é bom.
Chegando ao edifício das Obras Públicas, local de fazer o dito e referido exame, que eram dois, para tirar a carta de condução, o examinador, com aquele olhar de quem já viu de tudo, disse apenas:
- Hoje é o dia, hein? Não atropeles ninguém nem aleijes o examinador…
- Sr. Hilário, espero não magoar ninguém nem ter que cá voltar.
- Isso é o que vamos ver.
- Qual é o carro em vamos fazer o exame?
- No Colt do meu tio Cláudio. disse eu a pensar que ele estava a meter-se comigo, pois há mais de um mês que eu tinha lá deixado os papéis.
- Não é no da Escola de Condução? - perguntou assim como que a fazer uma cara que não era de fazer amigos.
- Não. Não andei na escola. Eu propus-me a exame. disse eu já a ver o meu mundo a girar contra.
- Esse carro não dá. Não tem as medidas...
- Quê?! gritei eu já a tremer.
Lá me explicou que não vira os papeis e que o Colt como o Mini não podiam ser utilizados.
E agora. Sentei-me no passeio, lágrima a cair da cara muito devagar. Levantei-me, fui à Secretaria e pedi para ligar à minha mãe que estava a trabalhar nos Caminhos de Ferro.
- Mãe. Tenho meia hora para arranjar um carro grande para fazer exame porque o do tio Cláudio não dá.
- Onde é que vou arranjar um carro agora? Olha, está ali o tio Adelino e vou pedir-lhe um conselho.
Claro que naquela altura os telefones eram fixos e as chamadas eram pedidas às telefonistas dos CTT.
- Filho, o tio Adelino vai aí ter contigo e já arranjam uma solução.
Abreviando, o tio deu o livrete, o examinador disse que sim e o exame podia começar.
Eu nunca tinha andado de Opel Kadet.
Assim fomos para uma sala onde me fez uma série de perguntas sobre sinais, prioridades, luzes e na maquete a brincar com Dink Toys, passa este e não aquele por isto e aquilo.
O código sabia eu na ponta da língua.
- Vamos para o carro.
Ah, o tio Adelino deixou o carro e foi trabalhar.
Carro a trabalhar e agora como se mete a marcha atrás para tirar do bem estacionado que estava? Pois é, não sei. No Mini e no Colt era fácil. Aqui não sei mesmo. Várias tentativas e nada.
- Devia ter treinado.
- Mas o senhor que sabe tudo e até é examinador pode fazer o favor de me dizer como é que é? - estava eu desesperado e ao ataque antes que me desse um ataque de nervos.
Ele tentou e nada. Sem querer ela entrou. Era assim, Puxa para cima e depois tudo para mim e depois para a frente. Totalmente ao contrário do que eu acho ser normal.
- Como é que fizeste isso? perguntou ele quase a sair do carro.
- Simples, pensei! respondo como se estivesse num pedestal a olhar para ele de cima.
Arrancamos dali para fora. Na rotunda do Radich manda-me virar à esquerda e eu, calma e serenamente encosto à direita e preparo para contorná-la.
- Eu disse esquerda. - barafustou ele de modo intimidatório.
- Sim, e eu contorno a rotunda e vou para o parque infantil. - respondi com ar descontraído que estava a começar a ter.
- Estaciona ali.- brusco.
Faço o pisca, parei. Sr. Hilário, não é perigoso fazer inversão de marcha aqi frente ao liceu para estacionar daquele lado e frente a um portão?
- Segue.
E eu segui
Vira para aqui, vira para ali e perto do Sporting há um lugar para estacionar e ele manda-me fazê-lo.
Eu achei um pouco apertado mas não podia esticar mais a corda. Faço o pisca e de marcha a ré vou virando o volante e fazendo as minhas medidas, mas curiosamente o carro de trás acompanhava os meus movimentos, isto é, deu-me espaço para estacionar. O Sr. Hilário saiu do carro, olhou bem e disse-me:
- Andas por aí a conduzir sem carta é?
- Não. Só no campo é que a minha mãe me ensinou a conduzir. Nunca conduzi na cidade. - afirmativo estava eu, ao mesmo tempo que estava a dizer uma grande mentira.
Agora vamos para a subida da Rua dos Pescadores para fazer o ponto de embraiagem. Se o carro não descair podemos terminar.
Fiz o ponto de embraiagem mesmo em frente ao portão da minha casa. Foi fácil.
Seguimos para as Obras Públicas e eu perguntei, já fora do carro.
- E agora como é?
- Esperas um bocado e dão-te uma guia.
- Então posso levar o colt para casa, já encartado?
- Quem o trouxe?
- Hã? o meu tio, claro. - por acaso tinha sido eu e por isso é que eu fui antes das Obras públicas abrirem.
E assim nasceu o mais novo condutor do país, mal acabado de fazer os 18 anos, emancipado.
7 de dezembro de 2025
a bicicleta levou-me ao Mundo
Chegado à minha idade, os anos passados num jeito tranquilo de quem já viveu muita coisa, depois de me reformar do trabalho de 40 anos, descobri que tinha tempo e muitos silêncios. Foi então que decidi tirar da garagem a velha bicicleta que nunca parou de andar, a mesma que usava, nas horas livres, mas agora para ver o mundo vais devagar.
Na primeira manhã, sai devagarinho, as pernas não reclamaram, mas logo foram-me lembrando que os movimentos não eram tão rápidos quanto o tinham sido uns anos muito atrás. O bairro onde moro parecia outro: os beirais eram trabalhados e algumas casas eram novas, árvores pareciam-me mais altas, os rostos cruzados na rua de todos os dias pareciam-me desconhecidos. A sensação de liberdade era a mesma de quando tinha 20 anos mas o olhar era agora mais apurado. Olhava e via.
Pedalei até ao centro da cidade. Lá, crianças corriam nos passeios, os donos passeavam cães e alguns jovens faziam manobras em bicicletas modernas. Quando passavam por mim, acenaram com respeito. “Bom dia, campeão!”, disse um deles. Ri, fazia anos que não me chamavam assim. Curioso. Eu estava com tempo para ver o mundo.
Beira rio +parei e sentei-me num banco a observar a água balançando devagar. Senti o coração bater forte, não de cansaço, mas de alegria. Era como redescobrir um pedaço esquecido da vida.
A partir daquele dia, o passeio de bicicleta virou ritual. Ver o mundo passou a ser hábito. Nalguns dias ia ao parque, noutros explorava as ruas onde nunca tinha passado. Às vezes conversava com gente nova; outras vezes pedalava em silêncio, apreciando o vento no rosto e a certeza de que nunca é tarde para começar alguma aventura.
E assim, descobri que a reforma não era o fim do caminho — era só o começo de um pedal mais leve, mais livre e cheio de pequenas descobertas. Tinha um mundo enorme para conhecer
5 de dezembro de 2025
o segredo do morro de salalé
Nas vastas terras avermelhadas da banda, mesmo onde fica a Vila que já foi Arriaga e que agora lhe chamam de Bibala, tinha um imbondeiro generosamente grande que até parecia a fortaleza do Morro de Salalé que ficava na ponta da sua sombra. Não era apenas um monte de terra, mas uma arquitetura gigantesca, uma torre de argila pura que parecia tocar o céu. Tão antigo quanto a memória da primeira chuva, ele era a casa de milhões de salalés, os pequenos obreiros que, ao longo de séculos, teceram aquela maravilha. Apetecia fazer um telhado para evitar o desmoronamento em dia de chuva no sopé da Chela.
Para o povo das aldeias à volta, o Morro não era só um ninho de insetos. Era o guardião do silêncio, o lugar onde a sabedoria dos mais velhos se misturava ao murmúrio incessante da natureza. Ninguém lhe tocava, pois dizia-se que lá, onde a argila era mais fina e o sol mais forte, residia o espírito de Nzinga, a rainha-mãe dos salalés, que podia conceder um único desejo a quem fosse puro de coração.
Havia na aldeia uma jovem chamada Kianda, conhecida pela sua curiosidade indomável. Enquanto os outros jovens temiam o Morro, Kianda sentia-se atraída por ele, sonhando em descobrir o segredo da rainha Nzinga. O que ela desejava não era riqueza nem poder, mas sim a capacidade de ouvir a terra, de compreender os sussurros do vento que pareciam carregar histórias esquecidas.
Num ano, a seca apertou o povo da Bibala. A água dos poços secou, e os rios encolheram-se como os cabelos dos velhos cansados. O desespero abateu-se sobre a vila. O velho Soba lembrou-se então da lenda de Nzinga e do desejo que ela podia conceder.
Kianda, movida pela compaixão, decidiu ir.
À luz da lua crescente, ela iniciou a subida. O Morro, liso e duro como pedra, parecia observá-la. Sentia os pequenos salalés a correrem por debaixo da superfície, como um coração a palpitar. Ao chegar ao topo, o ar tremeu. Não havia um palácio de rainha, nem um trono de ouro, apenas um único buraco no cume, por onde soprava um bafo quente e perfumado a terra.
Kianda ajoelhou-se e, com a voz quase sussurrada, pediu: "Rainha Nzinga, não peço por mim. Peço para que a minha gente possa ouvir onde a água se esconde, para que saibam onde cavar e onde a vida espera."
O silêncio que se seguiu foi mais alto do que qualquer grito. Sugundos depois, do buraco, subiu um ténue pó de terra avermelhada que a envolveu. Kianda desceu o Morro, vazia de esperança, mas com um estranho zumbido nos ouvidos.
Ao chegar à aldeia, notou algo novo. Quando fechava os olhos, conseguia sentir a paisagem. Ela ouvia o barulho fresco da água subterrânea a correr, como o som de um tambor distante, vindo de uma zona de mato seco.
Guiada por este novo "ouvido da terra", Kianda levou os homens para lá. E cavaram. E cavaram. Até que, finalmente, a água jorrou, pura e abundante, salvando Bibala da seca e da morte certa.
Kianda nunca mais regressou ao topo do Morro. Ela não precisava. A rainha Nzinga tinha-lhe concedido não um desejo, mas um dom: a capacidade de ser a voz da terra.
A partir desse dia, o Morro de Salalé não foi só o guardião do silêncio, mas também o sussurro da esperança. E Kianda, a "mulher que ouve a água", tornou-se a nova guardiã da sabedoria, lembrando a todos que, mesmo nos mais pequenos obreiros da natureza, se esconde o maior dos milagres.
4 de dezembro de 2025
eu e o mar
Era ainda cedo quando cheguei à praia. A areia ainda estava fria e o vento da manhã trazia consigo o cheiro fresco de mar. Fiquei ali parado, quieto, como se tivesse medo de assustar o mar, de lhe acordar num acordar sobressaltado, daquelas calemas que vão até na falésia da fortaleza e suja a estrada de terra, pedras e mar..
O horizonte era uma linha azul infinita que parece é recta mas é curva tal e qual a terra o é. Olhos arregalados, porque sempre me disseram que o mar era grande, mas ninguém dissera que era também vivo. As ondas vinham e iam como se respirassem, e cada uma parecia querer contar-me um segredo.
Sentei-me na areia e fiquei a ouvi-las. A primeira onda contou-me sobre peixes que brilhavam como estrelas debaixo d’água. A segunda falou de barcos que cruzavam mundos. A terceira… a terceira só suspirou, como quem carrega uma saudade antiga.
- O que foi? — perguntei-lhe.
A onda não respondeu, recuou muda após tocar-me os pés suavemente. Levantei-me e entrei alguns passos no mar. A água estava fria, mas não assustadora.
- Eu não entendo — disse baixinho. — Mas prometo voltar para ouvir mais.
E foi aí que o mar, pela primeira vez, sorriu-me, com uma onda pequena e morna que me chegou aos joelhos. Era como um abraço, pensei.
Naquele dia, descobri que o mar não se vê apenas com os olhos. Vê-se com a alma, e ouve-se com o coração. E por isso, desde então, sempre que a vida me parece grande demais, eu volto à praia, sento-me na areia fria e deixo o mar contar-me mais um pedaço da sua estória infinita.
3 de dezembro de 2025
Programa 96 - K'arranca às Quartas
Programa de Rádio com palavras, livros e música - 26 de Novembro - tal e qual como se fez em directo para ouvir indirectamente aqui ou em qualquer outro lugar, aos cortes ou de seguida. A opção é sua.
uma esplanada na minha cidade
Na minha pacata cidade, aninhada entre o deserto e o mar, havia uma esplanada que parecia uma janela do tempo. Não era um lugar qualquer; era um ponto de encontro onde as gerações se entrelaçavam, um testemunho vivo de que o tempo, embora implacável, também podia ser generoso.
Depois do almoço o lado esquerdo da esplanada pertencia aos "Velhos Sábios". João Trindade Junior, Figueiras das Ameijoas, João Aldrabão, Artur Gomes, e mais uns quantos. Sentados em cadeiras de chapa, gastas mas confortáveis, os senhores todos com cabelos grisalhos e alguma brilhantina, olhares serenos falavam do dia. O cheiro do café e as páginas dos jornais amarrotados contrabalançavam a conversa ao tom de desafio. Ali, o João Aldrabão, um pescador que não sei se lá foi alguma vez, até parecia o Raul Gomes, pai do Artur, a falar de peixes que eram tão grandes que acho não cabiam no barco onde iam e mais com histórias de mar para dar e vender, jogava xadrez verbal com o João Trindade, benfiquista de gema, despachante de alfândega e ar muito sério porém sorriso que mostrava o desafio. Nestes tempos sem pressa, o melhor remédio é uma boa prosa e um café forte, costumava dizer o Sr.Reis, enquanto observava o movimento da rua com um sorriso enigmático e via o seu café cheio.
O lado direito eram jovens. Uns já considerados adultos outros ainda adolescentes. Era um ponto de aprendizagem, com o lado contrário e também de má linguagem, num corte e custura que nem velhas alcoviteiras. Todos eram passados a pente fino. À tarde, a esplanada começava a ganhar uma nova energia. Aos poucos, os jovens da cidade começavam a aparecer, paulatinamente ocupando o lado esquerdo porque eles eram homens de trabalho. A maior parte estudantes, uns ainda com livros outros já sem eles, gastavam o tempo até terem tempo de ir para o Áero-Clube jogar bilhar, na maior parte das vezes ao perde- paga.
A Esplanada da Oásis deixou de ser apenas uma esplanada do café, tornou-se um símbolo de união, um lugar onde o passado e o futuro se encontravam no presente. Era um lembrete de que, apesar das diferenças de idade e de experiência, todos partilhavam a mesma humanidade, a mesma necessidade de conexão e a mesma sede de histórias para contar e ouvir. E assim, na pacata cidade, a esplanada continuou a ser um refúgio, um porto seguro onde as gerações se encontravam, aprendiam e celebravam a beleza da vida em todas as suas fases.
2 de dezembro de 2025
o meu papagaio de papel
Numa ensolarada tarde de verão, na minha cidade de ventos do deserto onde a minha avó dizia que o que estragava tudo era o vento leste, vivia eu que além de adorar chuinga também gostava de papagaios de papel. Sempre sonhei em ter o maior e mais bonito papagaio de papel, e que voasse tão alto que pudesse tocar as nuvens.
Um dia, enquanto saboreava um gelado comprado no Tico-Tico, de morango ou baunilha por serem tão diferentes eu agora não me lembro, tive uma ideia brilhante. "E se eu fizesse um papagaio de papel que parecesse um gelado gigante?" Usei a imaginação e desenhei na cabeça um papagaio de papel com listras vermelhas e brancas, uma ponta castanha como se fosse o cone e um delicioso aroma de morango e baunilha voando no ar.
Passei a semana a desenhar e a construir o meu papagaio de gelado. Usei papel colorido, varetas leves feitas de caniço e muita cola feita de farinha. A minha mãe, habilidosa, ajudou a cortar e construir a cauda, que ela fez parecer um a derreter, escorrendo em cores berrantes.
Finalmente, o dia do papagaio ficar pronto chegou. Levei o meu papagaio de gelado para o campo aberto, perto do campo do Benfica, lá para o lado dos estaleiros do Guerra, onde não havia postes nem antenas nem outros empecilhos. Ali era eu e o meu papagaio que era diferente de todos os outros que eu já tinha visto. Ele era grande, colorido e tinha a forma de um delicioso gelado. Não, já tinha feito joeiras coloridas mas agora eu queria um papagaio de papel como um dia vi num qualquer filme de matiné, possivelmente feito em Macau ou arredores. Eu agora tinha um papagaio de papel. Joeira era para os outros.
Segurei o fio de sapateiro com firmeza e, com um empurrão do vento, o papagaio de gelado subiu no céu. Ele dançou e girou, as cores berrantes brilhavam ao sol. Náo tinha ninguém para olhar o meu papagaio de papel, original e lindo. O papagaio subiu cada vez mais alto, até parecer um pequeno gelado a voar em direção ao sol.
Enquanto o papagaio voava, senti uma onda de felicidade. Eu tinha criado algo único, algo que trazia alegria. Veio uma rajada mais forte, dei-lhe guita, ele subiu e rodopiou numa volta gigante e se desfez com estrondo quando bateu na areia dura do velho acampamento do Guerra. O meu papagaio de papel feito em forma de gelado tinha 'derretido' ao sol da minha alegria
30 de novembro de 2025
Mulher bonita não perde oportunidades
Diz-se, por aí, que mulher bonita não perde oportunidades. Que o mundo se abre, generoso, quando ela passa, como se portas se movessem sozinhas, guiadas apenas pelo som dos saltos no chão, pelo caminhar como quem voa numa passarela. Mas a verdade, a verdadeira, raramente se mostra nessa superficialidade.
Porque, na maior parte das vezes, a mulher chamada “bonita” aprendeu cedo que o brilho do olhar atrai luz e também muitas sombras. Aprendeu a medir as palavras, a escolher batalhas, a perceber que a beleza que se lhe atribui é uma carta que joga a favor apenas quando não contradiz ninguém, quando não confronta, quando não exige.
Tantas descobrem ainda jovens que os elogios são créditos que o mundo cobra depois com juros: risos forçados em diálogos que não queria ter, convites que não podia recusar, expectativas que não tinha como cumprir.
Mas também descobrem outra coisa: que a beleza que se lhes atribuí pode ser uma ponte. Muitas decidem atravessar essa ponte com a própria bagagem, a ambição, o estudo, a coragem, as quedas que poucos veem. Não aceitam nada só porque se acham bonitas.
Crescem a ouvir que mulher bonita não perde oportunidades. Hoje, passados os anos, muitas sorriem ao pensar nisso.
Não perde, não.
Ela cria.
Ela luta.
Ela exige.
Ela escolhe.
Porque a verdadeira oportunidade não está no olhar dos outros sobre ela — mas na maneira como ela se vê.
E, quando uma mulher percebe que a sua beleza é apenas uma das muitas forças que carrega… aí sim, o mundo inteiro se torna pequeno para o tamanho das suas possibilidades.
29 de novembro de 2025
numa tarde de sol
Numa tarde ensolarada, o que não era coisa rara na minha cidade, um grupo de crianças animadas decidiu ir ao parque infantil. Não, desta vez não era para chatear o Sr. Sousa, era mesmo para brincar nos baloiços, no escorrega ou no cavalinho que quase parece a querer sair dos ferros que o prendiam. Lá estava a com seu vestido vermelho, o Tó e o seu irmão Marzé, e o, bem como a, e mais uns tantos outros que éramos dez. Todos cheios de energia, o que eu penso era próprio da idade.
Assim que chegaram, a correu diretinho para o escorrega. "Quem chega primeiro?", gritou ela, e escorregou com um uhuuu! O Marzé foi logo atrás, com um sorriso enorme no rosto. Era o mais novo mas talvez o mais destemido.
Depois de muitas descidas no escorrega, todos vimos a alto nos baloiços. "Olha como eu voo alto!", enquanto dava mais balanço num jogo de corpo e pernas. O e a juntaram-se a ela, e logo os três estavam a baloiçar tão alto que parecia que iam tocar nas nuvens ou simplesmente fazer 360 graus à volta do suporte. Esses mesmo pareciam artistas de circo.
Depois de tanto baloiçar, os três decidiram sentar na área da areia que circundava os baloiços. Tal era o cansaço. Faziam montinhos ou buracos. Ganhavam tempo para respirar com calma. Tirando estes três, os outros sete calçaram os patins e foram para o ringue patinar. Era a minha praia, já que para artista de circo e seus trapézios metiam-me medo.
Afinal de contas era apenas um dia de sol, numa cidade do sul e todos nós tínhamos idade para isso. Hoje, acho eu, nenhum dos que por ainda andam vão ao parque infantil e ao que sei também ainda não há o parque geriátrico
28 de novembro de 2025
poema à sandes de atum
Era uma vez, nuns tempos distante, um jovem muito parecidinho comigo, o típico adolescente que passava horas a jogar bilhar num tal de Aero Clube ou mergulhado nas águas azuis do seu mar, navegando nos sonhos e inspirações e nas horas ocupadas ia ao Liceu.. Mas tinha uma paixão secreta: a poesia. E, para o desespero da mãe, essa paixão manifestava-se nos momentos mais incalculados e inesperados.
Um dia, enquanto tentava escrever um poema épico sobre a melancolia de um sanduíche de atum ou de qualquer outra conserva, viu-se em apuros. Ele estava atrasado para a escola e a sua mãe, estava prestes a explodir.
"Vais faltar à escola outra vez?!", gritou, com a paciência esgotada como um último verso antes do chapadão.
Num relâmpago de inspiração poética, respondeu:
"Ó, mãe, não sejas assim,
Pois a musa me abraça,
Em versos de atum,
Estou quase no fim
Deixo a carcaça
em troco de verso algum.
Mande-me lá um."
Mãe, acostumada com os devaneios poéticos deste seu filho, apenas suspirou. "Se não apareceres aqui agora, vou-me embora e ponho-te porta fora!"
Com esta ameaça velada, desceu correndo, ainda murmurando versos sobre a efemeridade do pão com manteiga que já nem tinha atum e muito menos sardinha.
No Liceu, a situação não era muito diferente, tinha o hábito de recitar os seus poemas em voz alta, sem se importar com o lugar ou a ocasião. Durante a aula de matemática, enquanto o professor explicava a fórmula do X ao quadrado levantou a mão.
"Dr. Coutinho, posso recitar um poema sobre a beleza dos números primos?", perguntou, com os olhos brilhando e cara de felicidade.
O professor, que já conhecia a "veia artística", respondeu com um sorriso cansado: "por favor, deixe os números primos em paz por um momento e tente entender o valor de 'x' nesta equação."
Mas não desistiu. No recreio, aproximou-se dum grupo de colegas que conversavam perto da cantina.
"Ó, bravos guerreiros da escola, Que correm pelo areal, Com a fúria de um leão, E a graça dum pavão, Deixem-me lhes recitar, Um poema sobre a glória, De um golo em câmera lenta, nesta bebida sedenta que escrevi na minha velha sebenta!"
Os colegas, acostumados com as suas performances, apenas riram e continuaram a conversa. Apenas um deles, talvez o Beto ou o Manel, a memória já não ajuda, atirou: "devias escrever um poema sobre como chutar a bola no recreio da escola e quem sabe, aprender que a vida não é só escrever?
Ele muito parecinho comigo, era terrível no futebol, sendo a bola redonda e devido ao ar dentro, lhe fugia como diabo da cruz, apenas sorriu e murmurou: "A poesia é a bola da alma, e o meu chuto é a metáfora da calma!"
Apesar das brincadeiras e da incompreensão alheia, não se abalava. Ele continuava a escrever seus poemas, sobre tudo e sobre nada, sobre o amor e a dor, sobre a vida e a morte, e até sobre a importância de usar meias limpas.
Um dia, a escola organizou um concurso de talentos. Ele, é claro, se inscreveu para recitar os seus poemas. Todos tentaram dissuadi-lo. Colegas de sala, de recreio e até a afamília.
"Tens a certeza que queres fazer isso? Talvez seja melhor outra coisa qualquer, fazer uma magia ou ficar simplesmente a assistir", foi o que mais ele ouviu.
"A poesia é a magia da alma, o instrumento do coração! Eu preciso mostrar ao mundo a beleza das palavras!", respondeu, com a convicção de um poeta em ascensão.
No dia do concurso, subiu ao palco, um pouco nervoso, mas com a cabeça erguida e um ar profissional. A plateia, composta por alunos, pais e professores, estava em silêncio. Ele respirou fundo e começou a recitar um de seus poemas mais recentes, sobre a importância de ser ele mesmo.
"No meio da multidão,
Em busca de aprovação,
Não te percas, ó alma,
Em caminhos alheios,
Pois a verdadeira beleza,
Está em ter a certeza,
De que cada verso, é uma flor
Uma rosa ou outro símbolo de amor!"
A princípio, houve um silêncio constrangedor. Mas, aos poucos, as pessoas começaram a rir. Não era um riso de escárnio, mas um riso de admiração e carinho. Foram-se deixado levar pela paixão e pela sinceridade do poeta e declamador.
Ao final do poema, a plateia explodiu em aplausos. surpreendido e emocionado, não conseguiu conter as lágrimas. Ele não tinha ganho o concurso, mas tinha conquistado algo muito mais valioso: o respeito e o carinho de seus colegas e professores.
A partir daquele dia, continuou a ser o poeta da escola, mas agora, com um toque de reconhecimento. Os seus colegas até começaram a pedir para ele escrever poemas sobre seus próprios dramas adolescentes, desde a paixão não correspondida até à dificuldade de tirar notas boas em química.
E, o adolescente armado em poeta, muito parecido comigo, continuou a espalhar a beleza das palavras por onde quer que fosse, mostrando a todos que a poesia pode estar em tudo, até mesmo em um sanduíche de atum.
27 de novembro de 2025
O Grande banho da Marginal
Era um daqueles dias quentes em Moçâmedes, em que até as lagartixas, osgas e carochas procuram uma sombra. Eu, todo animado, decidi que nada melhor do que um mergulho na Marginal para refrescar a cabeça. Calcei as minhas chinelas, que mais tarde soube chamarem-se as havaianas mas naqueles tempos eram simplesmente chinelos de plástico, já meio gastas para não queimar os pés no asfalto quente que até parece derrete.
- Só queria cumprimentar o mar - disse, tentando manter a dignidade enquanto um grupo de miúdos ria ali perto.
Não satisfeito, tentei de novo. Entrei devagarinho, calculando a maré, não escorregando nas pedras e afundei o meu corpo para fora da zona pedregosa. Respirei fundo mas assim num de repente fui atirado por outra onda desprogramada contra as pedras, hexágonos e assim ligeiramente esfolado olhei surpreendido com o boiar das minha chinelas que mais tarde eu ia saber eram havaianas irem mar fora. Elas se aguentaram no mar e eu atirado para as pedras. Elas não queriam ia à agua. Mundo contrariado.
Enquanto os miúdos, que se tinham aproximado, gritavam:
— Tio! As tuas sandálias são mais rápidas que a tua natação!
Ri com vontade de chorar e com a camisa, que sobrara porém enxarcada, caminhei para casa num andar tipo saltinhos para demorar menos tempo cada pé no chão.
Mas a verdade é que, apesar das quedas, das ondas teimosas e das sandálias fujonas… sai dali com um sorriso, andar novo e com a lição que mergulhar na marginal não era boa ideia, antes na praia que era ali tão perto. Porque banho na Marginal de Moçâmedes é assim mesmo: se não cair, não valeu!
