Era manhã de sábado, e a cidade ainda espreguiçava-se entre o cheiro a café e o barulho das carrinhas a descarregar pão, fruta fresca e outras iguarias. Eu, de auscultadores na cabeça e aparelhos digitais e computador à frente, montava uma pequena mesa improvisada no que já fora um talho no mercado já apinhado de gente. Um estúdio portátil, quase ao ar livre, porque o mercado é grande porém é coberto, com mais ruído de vida do que cabos organizados.
Transmitir rádio em directo na rua é como abrir a janela da casa para deixar entrar quem passa. Não há paredes, não há isolamento acústico, só a vida a acontecer, sem filtros e sem rede de protecção. Enquanto ajustava os botões e revia ligações, uma criança parou para olhar, um amigo mais velho indignado perguntou o que eu fazia ali, outro veio mesmo dar-me um abraço. Chegaram os músicos. Um casal que se comprometeram a tocar umas quantas músicas para animar a emissão ao vivo e a cores de uma rádio que saiu à rua. Mais ligações e novo teste de som. Tudo pronto para ir para o ar quando for hora de o fazer,
Alguém desconhecido e um pouco atónito disparou:
- Isto é televisão?
Sorri. Expliquei-lhe que não, que era rádio, que se ouvia mas não se via. Ficou intrigada: "Então fala-se para o ar e alguém do outro lado ouve?" Era isso mesmo. Rádio a sério. Ainda a há. Embora também estivéssemos a transmitir com imagem para uma rede social. Mas não é essa a minha praia
Toca o genérico mas o som não sai da minha mesa e não entra no computador e portanto não chega ao estúdio. Improviso e mando uma música para o ar. Refeito do susto, resolvido o botão que se havia desligado por obra e graça dum qualquer fantasma, estávamos no ar, como se diz na gíria radiofónica. Apresentações feitas. A rádio na rua é assim: agenda-se uma coisa, e acontece outra ainda melhor que obriga a pensar, imaginar e resolver.
O primeiro entrevistado foi a convidada agendada, contou ao que vinha, o que queria. Falava bem e se prolongou no tempo, fazendo esquecer que o tempo é contado quando o programa tem hora para começar e outra marcada para acabar. A gente entusiasma-se e segue livre, animado e despreocupado.
As pessoas, de saco carregado paravam, olhavam, sorriam e seguiam, o trânsito pedonal à nossa frente de vez em quando engarrafava. Por sorte nossa ninguém levou buzinas nem outros barulhos que poderiam virar vírgulas inesperadas, e a branca às vezes fazia o microfone engolir-se num silêncio inesperado. Mas a verdade é que esse caos é a beleza: é o som da vida a misturar-se com a voz. Outros convidados foram aparecendo, falaram livre e claramente e por vezes tinham de ser cortados porque o tempo é inimigo da gente.
Os músicos, pacientes tocaram duas músicas numa harmonia de espanto. Aplausos e mais umas quantas entrevistas. Alguém olha para o relógio e o mercado cheio a passar despercebido. Estava onde eu queria estar. A fazer Rádio na Rua e em directo.
Fazer rádio em directo na rua é estar vulnerável, aberto ao imprevisto, um vizinho que reclama, um aplauso espontâneo de quem ouve e reconhece a sua própria história a passar nas ondas, um amigo que te acena. Uma opinião que se regista.
Quando desliguei o transmissor, horas depois, ficou um eco dentro de mim: a sensação de que a rádio não pertence só ao estúdio, mas à rua, às pessoas que não pedem para ser ouvidas mas que têm tanto para contar.
Naquele sábado, mais do que uma emissão, senti que tinha aberto uma praça invisível, onde todos cabem.
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