Pouco passava das 15:30 horas de segunda feira. Dia caótico de segunda feira na urgência, o que me é normal. Entra o INEM pela reanimação dentro trazendo um trabalhador da construção civil literalmente como se fosse um espeto. Grande aparato, grande alvoroço e juntam duas equipas de enfermagem, os que iam sair e os que entravam. Lá tive que usar a minha voz de comando de modo a haver orientação e ordem num trabalho que nem eu ainda tinha conseguido imaginar no meu cérebro as imagens tridimensionais que via. Um ferro, usado na construção de pilares, com cerca de 8 mm de diâmetro que entrava abaixo da grelha costal à direita e saia na face externa da coxa esquerda. Estávamos ali com cerca de 1 metro de ferro que percorria o interior daquele sinistrado tal qual um espeto. Felizmente os colegas no trabalho, que auxiliaram a equipe da VMER, não ousaram retirar o sinistrado pela via como entrou mas sim optaram por cortar . Interessa dizer que o sinistrado caíra de um andar superior e entrara em queda num pilar que estava a ser construído.
Feito o reconhecimento exterior, tendo os parâmetros vitais estabilizados, pedidos necessários feitos há que levar ao bloco e tratar o que houvesse para o fazer. Não havia hipótese de fazer nenhum exame de imagem pois o ferro iria deturpar qualquer imagem na sua proximidade. Como eu dizia, fazemos um tac in loco.
No bloco, seguindo a rotina habitual, feitas as observações mais pormenorizadas decidi avançar pela abertura abdominal e ver os estragos e a maneira como retirar aquele corpo estranho que nos incomodava no posicionamento para além de tudo o mais. Duas lesões no intestino delgado, identificadas e marcadas para mais tarde reparar. Agora temos aqui o problema maior, o ferro rasgou a veia cava e faz de clampe, isto é, rasgou e faz pressão de modo que não há sangue a voltar para o coração vindo da extremidades inferiores. Cada vez que mexíamos no referido era um lago que subia que nem mar em maré cheia.
O meu colega gritava de pânico ao mesmo tempo que empalidecia de susto. Eu pensava e acho disparei a pulsação para níveis inimagináveis. Eu não queria transparecer o pânico em que estava pois tinha de pensar rápido e resolver a situação.
- Zé, vamos deixar o ferro aqui, vamos coser a veia cava e depois então retiramos o ferro. Olha, tem um rasgadura no fígado.
O Zé, meu colega e ajudante nesta cirurgia dizia para mandarmos o doente para Lisboa.
- Não, Zé. Ele não ia chegar lá porque não há retorno venoso. Temos que ser fortes, Zé. Respira e tudo vai correr bem.
Mimas, enfermeiro experiente estava a meu lado e dava-me força e estímulo para continuar. No fígado fiz um tamponamento com compressas grandes e agora viro-me para a cava. Na verdade apetecia-me cavar dali para fora mas o doente não ia gostar.
Sutura na cava feita, mexido o ferro e verificámos que não sangrava. Mas e agora tiramos o ferro pela coxa ou pela parte superior do abdómen? O ferro era irregular, tipo estriado.
- Mimas arranja lá um alicate da Ortopedia. pedi eu enquanto pensava.
Veio o alicate de pressão, ajustamos ao ferro na porção inferior , na coxa.
- Mimas, vai puxando devagar enquanto eu e o Zé verificamos aqui o interior.
- Zé, toma conta do Fígado para não estragarmos mais. Eu tomo conta aqui da veia cava. eu dizia isto mas convicto que não seria assim tão fácil retirar aquele metro de ferro rugoso sem estragar mais.
Não foi fácil mexer. A força feita levava e o ferro. Com tentativa e modificações lá conseguimos ir tirando o ferro sem males maiores. Finalmente o ferro saíra e tinham decorrido apenas três horas. Era preciso verificar tudo novamente e reparar os danos identificados.
O Zé recuperou e ajudou mais a partir do momento que tirámos o ferro. Fizemos todas as reparações possíveis, lavamos para aí com uns 15 litros de soro, e encerramos deixando uns drenos pelo caminho.
Pós-operatório sem um único incidente.
Uns tempos mais tarde ele apareceu-me em visita ao hospital e contou-me que quando fora à sua terra natal, Cabo Verde, tinha levado as fotografias que eu lhe dera e que havia pedido para alguém tirar (não tinham ainda inventado os telefones que fotografam), e passaram a chamar-lhe o Reencarnado
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