A Minha Sanzala

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14 de fevereiro de 2024

meus retalhos 23

Ainda não era meio-dia duma segunda feira de inverno. A urgência deitava doentes para a rua porque não cabiam na sala de espera. A gripe tinha atacado e a força do pessoal também estava na mó de baixo. Doentes espirravam e o pessoal tossia, e vice-versa. Mas estávamos ali para o que fosse preciso e quando o fosse. A boa disposição disfarçada lá estava nos piropos, nas respostas e até apenas no olhar. 
Joaquim, enfermeiro com muitos anos de casa e mais os que tivera na tropa numa guerra que não era a dele, dizia que o inimigo atacava quando a gente não espera. E a gente ria com a vontade de mandar tudo para as urtigas. Doía-me o peito da tosse. O nariz da enfermeira estava mais vermelho que o do palhaço. Joaquim, apesar do frio mantinha a sua farda branca de manga curta. Apesar das dores do corpo, do pingo do nariz ele dizia que se não foi bala também não é vírus que lhe atira ao chão. Ele estava a ser a nossa força, ele era a descontração, a piada na ponta da língua e era quem mais sabia que gripes e afins não são com caldos de galinha. Para ele era mais avinha-te, abifa-te e abafa-te. No caso dele era mesmo só mais avinha-te. Então naquele dia acho ele tinha abusado da dose. A certa altura estávamos todos à procura do Joaquim. Desaparecera. Misteriosamente, entenda-se. Nunca ele se tina ausentado sem avisar. Ou a mim, seu amigo desde a minha chegada ou os colegas, muito cumplices de histórias passadas.
As horas passaram e o Joaquim nada. Vamos manter o nosso silêncio e continuar a procurar. Combinamos meia dúzia de nós que o conhecíamos bem. Pensávamos.
Hora de mudança de turno e nada. Continuei e os colegas dele se foram. Nem um recado chegou. 
No dia seguinte continuávamos na mesma. Terminava o meu turno na urgência e fui para a enfermaria. Preocupado. Não era hábito. 
Uns dias mais tarde soube. Ele tinha uma doença incurável e resolvera fazer tratamento à sua maneira. Muito álcool e até esquecer o que já há muito havia esquecido, a vida.
Fomos a sua casa, resolvemos levá-lo, assim a modos que contrariado porem sem violência. Resolvemos tudo, falámos com todos e todos foram um só, incluindo o Joaquim que ficou connosco mais dois anos, mesmo sem piadas, mesmo sem calores mas sempre pronto para nos acompanhar nas noites de folia. Nós éramos jovens e o Joaquim com as suas estórias era o nosso aglutinador. Enfermeiro à moda antiga.
30 anos depois ainda o recordo com saudade e com ciúme de não lhe ser um igual na disposição


Sanzalando

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