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2 de abril de 2023

Confissões sobre a vida de um Cirurgião - a tiróide e o zulmarinho

A Minha apresentação na despedida do CHUAlgarve

Confissões sobre a vida de um Cirurgião - a tiróide e o zulmarinho

 

Começo por agradecer a presença de todos. Desculpem-me o incómodo, desculpem qualquer coisinha.

Tudo o que eu aqui disser é cientificamente provado, mesmo que não haja estudos, por quanto é verdadeiro.

Procurarei não referir nomes, porque são tantos aqueles a quem devo o que sou, que a omissão de apenas um seria para mim motivo de grande tristeza e imperdoável indelicadeza.

Enquanto vos falo, passam ali uns slides, maneira arcaica, antiga, de dizer que serei acompanhado por imagens no ecrã deste anfiteatro. Algumas imagens poderão ferir os mais sensíveis, mas foram captadas por mim, ou com as minhas máquinas, mesmo antes de haver estes aparelhos que agora também servem para telefonar. Outras slides são acasos, palavras ou momentos da minha História.

(A vida de um Cirurgião é penosa sob o ponto de vista físico, mental, familiar e social.)

Começando pelo nascimento. Fui nascer a 283 km de casa, onde vivia o meu avô paterno, enfermeiro chefe num Hospital. A razão foi simples: existência de maternidade nesse hospital.

Com esta polémica actual com as maternidades, nota-se que eu naquela altura já estava atualizado. Sou um dinossauro com software actualizado. Mas nasci em casa dum familiar porque havia futebol: Benfica -Sporting por Lisboa e o meu pai tinha de ouvir o relato, porque naquele tempo não havia ainda a TV.

A RTP dava os primeiros passos por cá enquanto eu gatinhava por lá. Em rodapé: Ela foi criada no dia que fui baptizado. Coincidências.

A primeira complicação do nascimento é a vida e esta é a primeiral causa de morte.

Dai que eu diga que cada instante deva ser vivido com a intensidade que merece. Hoje, emocionado, agradecido, tenho até medo de dar intensidade ao meu coração já cheio.

Como sempre pensei, a monotonia é desmotivante, a leitura é inimiga da ignorância e o saber melhora a qualidade do pensamento. Este tem sido o meu mote, o meu mantra de vida. Eu sou assim!

A vida está cheia de ‘por acasos’, de momentos inexplicáveis, de pausas e ciclos. Assim é a História da minha vida.  Quase na hora de fechar mais um ciclo.

É possível apagar a minha história? A minha resposta é simples e categórica: Não! De todo impossível. Pode ser esquecida, pode ser até florida, diminuída ou aumentada, adulterada, porém nunca apagada e tenho dúvidas que possa haver uma segunda edição.

A amplitude da minha história é tão grande quanto é a minha vida, pelo que se torna impossível de conhecer neste instante de pausa. Pausa porque refletimos sobre mim, sobre o que fiz, o que faço e o que farei.

Este momento marca-me?

Só se eu fosse imbecil é que não me marcaria.

A imbecilidade é uma escolha e eu não a quero. Reflito, medito, penso e se for necessário corrijo. Não posso apagar o passado, mas tenho capacidade mental para corrigir e retificar num qualquer momento. No hoje de agora posso dizer que chego aqui com a consciência tranquila.

Como todos, também tenho dias complicados e dias simples, dias altos e baixos, dias no meio da multidão e outros na mais sólida solidão.

Sei que quem procura a felicidade de ‘per si’, só encontra nós, alguns aparentemente impossíveis de desatar, complicações e confusões. Porém digo que a felicidade é uma das mais raras e bonitas complicações desta vida. Mas é ela que nos encontra, e é através da esperança. Quem a perde a esperança raramente encontra a felicidade.

Ora, eu sempre tive e mantenho a esperança e é por isso que dou comigo tantas vezes a olhar o Zulmarinho, esse mar que me liga à minha terra natal, à espera dum sinal ou só à espera como se olhasse para dentro de mim.

Coisas simples simplificam-me a vida e eu mantenho a esperança de assim permanecer, simples, sorrindo e vivendo. Só morrerei em último caso e contra a minha vontade.

Outro complemento da vida é o ‘por acaso’.

Por acaso nasci e vivi onde o fiz. E também foi por acaso que naquela altura temporal fui um jovem ‘revolucionário’, que viveu coisas que por acaso não tiveram um outro desfecho.

Por acaso vim para Portugal estudar e mais uma vez, por acaso, fui parar ao Porto.  Lisboa era fervilhante de actividade política, de amizades complicadas e interesses que quase de certeza me levariam para outros caminhos que não o estudo de Medicina.

Como se vê, é fácil ter esperança e viver por acaso. Mesmo que isso dê muito trabalho.

Também foi por acaso que fiz a especialidade em Santarém, que tal como o Porto eu nem sabia que existia. Fui feliz e consegui atingir o objectivo traçado: Ser Cirurgião e ter o espírito aberto dos ‘velhos’ cirurgiões dos Hospitais Civis de Lisboa.

Por acaso não me torturo pelo que poderia ter feito, pelo que poderia ter sido nem por onde podia ter andado. Há tanto caminho ainda que posso percorrer. Não tenho feridas por cicatrizar.

Na Cirurgia aprendi que pode haver muitas técnicas, mas só há duas maneiras de operar: Bem e Mal. Opto sempre pela primeira. Tenho a capacidade mental de escolher, chamar ou dizer não, quando sei que não sou capaz.

Nunca procurei lugares de liderança porque para mim liderança não é um lugar, é uma atitude, é um modo de ser no estar. Eu sou apenas esta personagem que está aqui à vossa frente.

De 1984 a 2023 fui crescendo e hoje dou comigo aqui, para falar de Retalhos da Vida de um Médico, fosse eu Fernando Namora, distinto escritor médico que já saiu desta vida mas que a sua obra, vasta e bem feita, não o deixa ser esquecido. Meritoriamente.

Eu, por acaso, não tinha uma única tiroide operada quando acabei a especialidade, e muito suei no meu exame de saída por esse motivo. Por acaso desse exame, por esse problema, fez com que no Hospital de Santarém passasse a operar Tiroide em vez de as mandar para Lisboa.

Quando aqui cheguei, 1996, pedi ao então Director do Serviço que me ensinasse. Boa hora o fez. Agradeço.

A tiroide foi um gosto que aprendi a gostar. Não era a minha primeira opção, pelo que disse, era-me até muito amarga, mas na altura não havia escolhas. Cirurgião era o mais próximo do Supremo, só que o supremo não sabia operar. Cirurgião que se preze sabia tudo e tudo devia saber fazer.

Daqui a pouco falarei uns números que aqui são isso mesmo: números. Mas nunca me esqueci e nem me esqueço que atrás desses números existem uma pessoa que, para além da doença, tem sentimentos: de angústia, de raiva, de tristeza ou revolta; ou simplesmente carência afectiva. Isso também fez de mim quem sou.

Mesmo que digam que o mais próximo do psicopata seja o cirurgião, aquele que sente prazer em cortar um ser igual, que se vangloria do facto, que chega a casa feliz porque fez e aconteceu, eu nunca poderei esquecer aquele olhar no momento da alta, aquele sorriso quando estou à cabeceira, aquele mimo que recebo em qualquer lugar por reconhecimento.

Mas voltando o fio à meada, não descurei nunca outra qualquer patologia, órgão ou sistema que faz parte do currículo do Cirurgião Geral. Mas se gostava do todo da cirurgia geral, fui acompanhando os tempos e aperfeiçoando a técnica, promovendo a ‘especialização’, o pormenor, a diferença, de modo que o doente estivesse consciente de que as complicações fossem cada vez menores, o seu risco mais atenuado e a sua qualidade de vida melhorada porque eu estava mais capaz. Tinha mais treino.

Tive a oportunidade de tutelar três internos da formação específica. Um, no segundo ano anunciou-me que a vida de cirurgião era muito mais pesada que a sua inicial ideia, pelo que mudou e foi para outra especialidade onde sei tem ganho o apreço dos seus pares. Dois foram-me seguindo e hoje são Cirurgiões que me orgulham. Não são a minha cópia, porque sou inimitável, único, mas posso garantir que estão aptos a me operar se eu necessitar.

Voltando ao título e não vos quero deixar defraudados.

O cancro da Tiroide representa 1 % das patologias oncológicas mas a sua incidência tem vindo a aumentar quer no homem quer na mulher, com predomínio nesta. Não se sabe a causa.

A patologia tiroideia, oncológica ou não, é muitas vezes silenciosa e outras vezes indirectamente sintomática, pelo que o tratamento cirúrgico pode levar o doente a pensar que é desnecessário, que é demasiado agressivo ou simplesmente ineficaz. Há que ter o bom senso e boa capacidade de comunicação para fazer entender o propósito do tratamento.

Não esquecer que o dever primeiro do cirurgião é manter a qualidade de vida, se a não poder melhorar. Como diz o povo: para pior antes assim.

Agora falo em números. Olhando para os registos do CHUA, unidade de Portimão, só a partir 1998 poderei considerar fiáveis.

Fiz  21.157 consultas, 7.868 são novos doentes.

Operei 5.365 cirurgias em Cirurgia Geral e cerca de 100 na Ginecologia ou Obstetrícia, Urologia, ORL e Ortopedia.

Para não maçar digo-vos que há um slide por aí com números de vários capítulos mas sublinho apenas 248 Tiroidectomias sendo que 197 foram totais e 151 lobectomias.

Nas cerca de 100 fora da cirurgia, algumas por solicitação da minha experiência, outras porque sempre me considerei o eterno interno e sempre estive disponível.

Se tive complicações? Claro. Só quem não faz não as tem.

Todas elas me marcaram, todas elas deixaram-me cicatrizes que jamais conseguirei esquecer, principalmente as que foram fatais para o doente. Poderia dizer aqui o nome de todos os que na cirurgia electiva complicaram de modo fatal mas guardo-os na memória e no coração.

Também quero que fiquem com uma ideia que sempre me norteou: Eu não sou aquilo que tenho, sou mesmo aquilo que fiz e faço.

Lembrem-se que quando partimos desta vida só levamos uma muda de roupa e não somos nós quem nos veste mesmo que tenhamos feito essa escolha.

Deixados os números e tristezas passemos ao zulmarinho

Esse Zulmarinho onde me perco nas palavras simples, nos trocadilhos, nos recados ou nas memorias e que me acaricia no seu ondular, me deixa continuar a ter os meus sonhos, a cumprir os meus desejos e, quem sabe um dia, será a minha estrada de imaginação.

 

Obrigado a todos

 



Sanzalando

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