Confissões
sobre a vida de um Cirurgião - a tiróide e o zulmarinho
Começo por agradecer a
presença de todos. Desculpem-me o incómodo, desculpem qualquer coisinha.
Tudo o que eu aqui disser
é cientificamente provado, mesmo que não haja estudos, por quanto é verdadeiro.
Procurarei não referir nomes,
porque são tantos aqueles a quem devo o que sou, que a omissão de apenas um seria
para mim motivo de grande tristeza e imperdoável indelicadeza.
Enquanto vos falo, passam
ali uns slides, maneira arcaica, antiga, de dizer que serei acompanhado por
imagens no ecrã deste anfiteatro. Algumas imagens poderão ferir os mais
sensíveis, mas foram captadas por mim, ou com as minhas máquinas, mesmo antes
de haver estes aparelhos que agora também servem para telefonar. Outras slides
são acasos, palavras ou momentos da minha História.
(A vida de um Cirurgião é
penosa sob o ponto de vista físico, mental, familiar e social.)
Começando pelo nascimento.
Fui nascer a 283 km de casa, onde vivia o meu avô paterno, enfermeiro chefe num
Hospital. A razão foi simples: existência de maternidade nesse hospital.
Com esta polémica actual
com as maternidades, nota-se que eu naquela altura já estava atualizado. Sou um
dinossauro com software actualizado. Mas nasci em casa dum familiar porque
havia futebol: Benfica -Sporting por Lisboa e o meu pai tinha de ouvir o
relato, porque naquele tempo não havia ainda a TV.
A RTP dava os primeiros
passos por cá enquanto eu gatinhava por lá. Em rodapé: Ela foi criada no dia
que fui baptizado. Coincidências.
A primeira complicação do
nascimento é a vida e esta é a primeiral causa de morte.
Dai que eu diga que cada
instante deva ser vivido com a intensidade que merece. Hoje, emocionado,
agradecido, tenho até medo de dar intensidade ao meu coração já cheio.
Como sempre pensei, a monotonia
é desmotivante, a leitura é inimiga da ignorância e o saber melhora a qualidade
do pensamento. Este tem sido o meu mote, o meu mantra de vida. Eu sou assim!
A vida está cheia de ‘por
acasos’, de momentos inexplicáveis, de pausas e ciclos. Assim é a História da
minha vida. Quase na hora de fechar mais
um ciclo.
É possível apagar a minha história? A minha resposta é simples e
categórica: Não! De todo impossível. Pode ser esquecida, pode ser até florida,
diminuída ou aumentada, adulterada, porém nunca apagada e tenho dúvidas que
possa haver uma segunda edição.
A amplitude da minha história é tão grande quanto é a minha vida, pelo que
se torna impossível de conhecer neste instante de pausa. Pausa
porque refletimos sobre mim, sobre o que fiz, o que faço e o que farei.
Este momento marca-me?
Só se eu fosse imbecil é
que não me marcaria.
A imbecilidade é uma
escolha e eu não a quero. Reflito, medito, penso e se for necessário corrijo.
Não posso apagar o passado, mas tenho capacidade mental para corrigir e
retificar num qualquer momento. No hoje de agora posso dizer que chego aqui com
a consciência tranquila.
Como todos, também tenho
dias complicados e dias simples, dias altos e baixos, dias no meio da multidão
e outros na mais sólida solidão.
Sei que quem procura a
felicidade de ‘per si’, só encontra nós, alguns aparentemente impossíveis de
desatar, complicações e confusões. Porém digo que a felicidade é uma das mais
raras e bonitas complicações desta vida. Mas é ela que nos encontra, e é através
da esperança. Quem a perde a esperança raramente encontra a felicidade.
Ora, eu sempre tive e
mantenho a esperança e é por isso que dou comigo tantas vezes a olhar o
Zulmarinho, esse mar que me liga à minha terra natal, à espera dum sinal ou só
à espera como se olhasse para dentro de mim.
Coisas simples
simplificam-me a vida e eu mantenho a esperança de assim permanecer, simples,
sorrindo e vivendo. Só morrerei em último caso e contra a minha vontade.
Outro complemento da vida
é o ‘por acaso’.
Por acaso nasci e vivi
onde o fiz. E também foi por acaso que naquela altura temporal fui um jovem ‘revolucionário’,
que viveu coisas que por acaso não tiveram um outro desfecho.
Por acaso vim para
Portugal estudar e mais uma vez, por acaso, fui parar ao Porto. Lisboa era fervilhante de actividade política,
de amizades complicadas e interesses que quase de certeza me levariam para
outros caminhos que não o estudo de Medicina.
Como se vê, é fácil ter esperança e viver por acaso. Mesmo
que isso dê muito trabalho.
Também foi por acaso que fiz
a especialidade em Santarém, que tal como o Porto eu nem sabia que existia. Fui
feliz e consegui atingir o objectivo traçado: Ser Cirurgião e ter o espírito
aberto dos ‘velhos’ cirurgiões dos Hospitais Civis de Lisboa.
Por acaso não me torturo
pelo que poderia ter feito, pelo que poderia ter sido nem por onde podia ter andado.
Há tanto caminho ainda que posso percorrer. Não tenho feridas por cicatrizar.
Na Cirurgia aprendi que
pode haver muitas técnicas, mas só há duas maneiras de operar: Bem e Mal. Opto
sempre pela primeira. Tenho a capacidade mental de escolher, chamar ou dizer
não, quando sei que não sou capaz.
Nunca procurei lugares de
liderança porque para mim liderança não é um lugar, é uma atitude, é um modo de
ser no estar. Eu sou apenas esta personagem que está aqui à vossa frente.
De 1984 a 2023 fui
crescendo e hoje dou comigo aqui, para falar de Retalhos da Vida de um Médico,
fosse eu Fernando Namora, distinto escritor médico que já saiu desta vida mas
que a sua obra, vasta e bem feita, não o deixa ser esquecido. Meritoriamente.
Eu, por acaso, não tinha
uma única tiroide operada quando acabei a especialidade, e muito suei no meu
exame de saída por esse motivo. Por acaso desse exame, por esse problema, fez
com que no Hospital de Santarém passasse a operar Tiroide em vez de as mandar
para Lisboa.
Quando aqui cheguei,
1996, pedi ao então Director do Serviço que me ensinasse. Boa hora o fez.
Agradeço.
A tiroide foi um gosto
que aprendi a gostar. Não era a minha primeira opção, pelo que disse, era-me
até muito amarga, mas na altura não havia escolhas. Cirurgião era o mais
próximo do Supremo, só que o supremo não sabia operar. Cirurgião que se preze
sabia tudo e tudo devia saber fazer.
Daqui a pouco falarei uns
números que aqui são isso mesmo: números. Mas nunca me esqueci e nem me esqueço
que atrás desses números existem uma pessoa que, para além da doença, tem
sentimentos: de angústia, de raiva, de tristeza ou revolta; ou simplesmente
carência afectiva. Isso também fez de mim quem sou.
Mesmo que digam que o
mais próximo do psicopata seja o cirurgião, aquele que sente prazer em cortar
um ser igual, que se vangloria do facto, que chega a casa feliz porque fez e
aconteceu, eu nunca poderei esquecer aquele olhar no momento da alta, aquele
sorriso quando estou à cabeceira, aquele mimo que recebo em qualquer lugar por
reconhecimento.
Mas voltando o fio à
meada, não descurei nunca outra qualquer patologia, órgão ou sistema que faz
parte do currículo do Cirurgião Geral. Mas se gostava do todo da cirurgia
geral, fui acompanhando os tempos e aperfeiçoando a técnica, promovendo a
‘especialização’, o pormenor, a diferença, de modo que o doente estivesse
consciente de que as complicações fossem cada vez menores, o seu risco mais
atenuado e a sua qualidade de vida melhorada porque eu estava mais capaz. Tinha
mais treino.
Tive a oportunidade de
tutelar três internos da formação específica. Um, no segundo ano anunciou-me
que a vida de cirurgião era muito mais pesada que a sua inicial ideia, pelo que
mudou e foi para outra especialidade onde sei tem ganho o apreço dos seus
pares. Dois foram-me seguindo e hoje são Cirurgiões que me orgulham. Não são a
minha cópia, porque sou inimitável, único, mas posso garantir que estão aptos a
me operar se eu necessitar.
Voltando ao título e não
vos quero deixar defraudados.
O cancro da Tiroide
representa 1 % das patologias oncológicas mas a sua incidência tem vindo a
aumentar quer no homem quer na mulher, com predomínio nesta. Não se sabe a
causa.
A patologia tiroideia,
oncológica ou não, é muitas vezes silenciosa e outras vezes indirectamente
sintomática, pelo que o tratamento cirúrgico pode levar o doente a pensar que é
desnecessário, que é demasiado agressivo ou simplesmente ineficaz. Há que ter o
bom senso e boa capacidade de comunicação para fazer entender o propósito do
tratamento.
Não esquecer que o dever
primeiro do cirurgião é manter a qualidade de vida, se a não poder melhorar.
Como diz o povo: para pior antes assim.
Agora falo em números.
Olhando para os registos do CHUA, unidade de Portimão, só a partir 1998 poderei
considerar fiáveis.
Fiz 21.157 consultas, 7.868 são novos doentes.
Operei 5.365 cirurgias em
Cirurgia Geral e cerca de 100 na Ginecologia ou Obstetrícia, Urologia, ORL e
Ortopedia.
Para não maçar digo-vos
que há um slide por aí com números de vários capítulos mas sublinho apenas 248
Tiroidectomias sendo que 197 foram totais e 151 lobectomias.
Nas cerca de 100 fora da
cirurgia, algumas por solicitação da minha experiência, outras porque sempre me
considerei o eterno interno e sempre estive disponível.
Se tive complicações? Claro. Só quem não faz não as
tem.
Todas elas me marcaram,
todas elas deixaram-me cicatrizes que jamais conseguirei esquecer,
principalmente as que foram fatais para o doente. Poderia dizer aqui o nome de
todos os que na cirurgia electiva complicaram de modo fatal mas guardo-os na
memória e no coração.
Também quero que fiquem
com uma ideia que sempre me norteou: Eu não sou aquilo que tenho, sou mesmo
aquilo que fiz e faço.
Lembrem-se que quando
partimos desta vida só levamos uma muda de roupa e não somos nós quem nos veste
mesmo que tenhamos feito essa escolha.
Deixados os números e
tristezas passemos ao zulmarinho
Esse Zulmarinho onde me
perco nas palavras simples, nos trocadilhos, nos recados ou nas memorias e que me
acaricia no seu ondular, me deixa continuar a ter os meus sonhos, a cumprir os
meus desejos e, quem sabe um dia, será a minha estrada de imaginação.
Obrigado a todos
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