Fora do hospital, o Porto
continuava a ser Porto: cinzento, encantador, húmido, cheio de cafés onde
discutíamos doenças e poesia como se fossem a mesma coisa. A vida era-nos
barata porque o mês era sempre mais comprido que a bolsa, o que nos obrigava a
viver sem gastar e o tempo era nosso, a esperança andava à solta, como uma
bicicleta sem travões nas calçadas ingremes da cidade, nos passeios da Ribeira
ou nos jardins dos Aliados.
Faz pouco tempo, passei pelos
mesmos corredores, agora reformados e cheios de tecnologias, procuro aquele
cheiro do éter — não por nostalgia, mas porque me lembra quem fui: um estudante
perdido, apaixonado, pela ideia de cuidar e pela vida em si mesmo. E lembro-me
que, apesar de tudo o que mudou, a essência da Medicina continua a ser a mesma:
estar ali, de verdade, para o outro. Foi um tempo que gostei-me, mas que agora
prefiro ver do lado de fora, de modo a ter tempo de apagar os fogos que
incendiei nos momentos em que não fui suficiente. Cicatrizo-me devagar, célula
a célula como se me regenerasse em humano ser.
Mas regressemos a 1980, ao tempo
dos sonhos e grande efeitos e pensamentos, ser estudante de Medicina no Porto
era como viver entre dois mundos: de um lado, o rigor dos corredores frios do
Hospital de São João; do outro, a cidade vibrante, cheia de segredos e excessos
e em nenhuma noite isso se tornava mais claro do que na véspera de São João.
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