A tradição não perdoa. Mesmo que com
exame marcado para um dos dias a seguir, dava pelo menos uma volta à Ribeira,
bebia um copo no Palácio de Cristal. Era um ritual sagrado comer sardinha
assada e pão, bater com o alho-porro na cabeça de estranhos, lançar um sorriso
tímido ao amor eterno daquela noite, e fingir que o cansaço das noites de
estudo não pesava. E naquela altura pesava. Deslembo-me.
Naquela noite, deixávamos a bata,
como quem queria dizer ao mundo: “Hoje, sou só mais um.” No meio das
marteladas, ninguém se lembrava das tensões arteriais, dos exames de bioquímica
ou das rondas nas enfermarias. Éramos jovens, invencíveis, com os corações
cheios e os bolsos vazios.
Recordo-me de uma noite de São
João em que um dos nossos — Armando, sempre mais poeta do que futuro médico, decidiu
fazer um brinde em pleno tabuleiro inferior da ponte D. Luís. Gritou para o
Douro, copo de plástico em riste:
"À saúde dos doentes e à loucura dos sãos!"
E rimos todos, com aquele riso
fácil que só os 20 anos e uns tantos finos depois permitem.
Havia um encanto em ver a cidade
acesa, em ver as varandas com manjericos e quadras tolas, os velhos a dançar
com as crianças, os namorados a perderem-se nos becos. E nós ali no meio, entre
a responsabilidade que se aproximava a passos largos e o desejo de sermos, por
mais um instante, apenas estudantes com cheiro a sardinha na roupa e fogo no
coração.
No dia seguinte, voltávamos à
rotina com olheiras fundas e cheiro a fumo no cabelo. Mas sabíamos, sabíamos
mesmo, que aquela noite nos curava de um ano inteiro de cansaço. Acordávamos
como que renascidos.
Afinal, também isto é Medicina:
saber quando parar, rir, dançar, viver. E São João, naquele Porto dos anos 80,
era a nossa melhor receita para esquecer tantos amores sofridos, tantas
sebentas lidas, tantas noites de fome e saudade.
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