30 de junho de 2025

Cheguei ao Porto 13 e se calhar acabei aqui

E quando penso que já não sei mais nada do tempo que esqueci, esquecendo a fome, a saudade, as tristezas de amor imperfeitos, amuos por carência ou por birra, risos porque algo inesperado aconteceu, vem à memória como uma fotografia um flash.

O relógio da Torre dos Clérigos marcava uma hora qualquer de uma tarde encalorada na frieza das tardes do Porto, eu brincava com a BIC, a bata já cinzentamente branca porque faz quatro anos que deixara de ser nova e respirei fundo. Ainda sentia na garganta o cheiro a éter e a desinfetante que mais não era um conservante cadavérico, o formol, esse odor que se entranhava na roupa, na alma e se respirava até desparecer da memória. Era o quinto ano de Medicina na Universidade do Porto e, naquela tarde de outubro de 1983, tinha acabado de assistir à minha primeira autópsia.

No anfiteatro anatómico, nas bancadas gastas de madeira estavamos, demasiado perto mas suficientemente afastados e era o silêncio, só interrompido pelo arranhar das canetas no papel em apontamentos dos mais ousados. Eu trazia sempre o mesmo caderno azul, comprado numa papelaria da Rua de Cedofeita. A capa já se esfolava nos cantos, mas ali dentro estavam todos os apontamentos que não confiava à memória nem à perfeição da letra que mais tarde me esforçaria para ler, se me lembrasse.

A autópsia marcara-me. Não pela violência do corpo exposto, mas pelo rosto sereno que parecia quase sorrir, como se o rapaz deitado na mesa de aço tivesse chegado a algum entendimento com as milhentas lombrigas vivas que ondulavam quando a monitora abrira o intestino.

Alguém ao meu lado parecia tinha caído de elevador, assim numa câmara lenta que nem deu para percebe e ter reflexos para a apanhar no meio do caminho. Estava inerte no chão sujo, ou velho, daquele anfiteatro quando lhe atirei o olhar. Não, não socorri porque logo vieram dois colegas mais velhos fazê-lo. Eu estava hipnotizado naquela cena macabra de abrirem um intestino ao mesmo tempo que eu via um rosto sereno que até parecia sorrir

Depois da aula, atordoado e com a mente cheia de filmes sem película, sentei-me no Piolho, reabri o meu caderno de apontamentos e só deus poderia saber o que lá estava escrito. Eu gatafunhei e acho que nem eram palavras nem desenhos. Bebi uma Cimbalino e fui para o lar. À hora do jantar, cerca das 19, na cantina de Engenharia entrei e o cheiro a sopa de legumes fez-me lembrar o formal e desconsegui comer. Pousei o tabuleiro e pela Alferes Malheiro regressei ao lar. Em jejum mas com sabor a formol. Sentei-me perto duma janela, abri o caderno e escrevi, na folha da aula da:

“Para viver com a morte ao lado, é preciso ter coragem e algum amor.” Se calhar era o princípio de um romance. Mas se era, ali acabou porque só resta essa frase.

Nos dias seguintes passei horas a observar médicos que pareciam não ter medo de nada. Na minha cabeça mantinha-se a cena fixa do anfiteatro da Aula de Medicina Legal. Àquela imagem juntei o meu receio: o dia em que não pudesse fazer nada por alguém.

Fazia tempo que essa dúvida não aflorava o cérebro. Agora martelava e ainda por cima com fotografia mental.

À noite, frente à telenovela prometi-me que havia de aprender a nunca ficar indiferente. Porque ser médico, mais do que decorar nomes latinos ou saber palpar um abdómen, era guardar humanidade, mesmo que, às vezes, doesse.

Fechei o caderno azul e nunca mais o abri até hoje onde me fui buscar no armazém da memória.



Sanzalando

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