Transpirado de tanto exercício, porque hoje no parque infantil fiz piruetas no escorrega grande, patinei no ringue, quase voei no cavalo de baloiço e no baloiço propriamente dito eu acho sonhei ia fazer um 360 graus.
Afinal de contas eu era um menino deslocado. Orfão de pai na idade em que apenas tinha uma ténue ideia da vida, cedo comecei a bulir e a gastar nos AC que acho era o que melhor havia na vida de então. Acho que o bilhar também era brilhante. Às vezes era rude mas quase sempre um doce engano de gente.
Um dia lhe conheci e o 360 se fez na vida. Ela, estudante aplicada e pouco apaixonada nas relações, porém dura nas traições e vagabundagens que fazia num cada vez mais raramente, me fez rodopiar que todos me passaram a olhar com outros olhos e a ver que afinal eu existia para além da vagabundagem. Escondidamente ia escrevendo. Versos, dizia eu. Minha mãe os lia e bem me dizia ao mesmo tempo que ia confirmar as notas às escondidas, não estivesse eu a inflacionar. Esta palavra acho ainda não tinha sido inventada mas agora me falta uma qualquer velha palavra para descrever essa desconfiança. Mas surpresa, a nota falada era a verdadeira e já não era preciso contar estórias de enganar. Os versos saiam num diariamente, positivos, tristes, melancólicos ou difíceis de explicar e classificar. Mas a minha mãe do alto da sua baixeza me elogiava.
E a sebenta encarnada se ia preenchendo mesmo com ela a negar um amor directo. Mas o olhar, as palavras poucas então ditas eram interpretadas como aguarda que um dia o dia vai chegar. E outro poema nascia como nasciam os olhos negros brilhantes enevoados pela lágrimas que caiam em surdina no entardecer triste da volta pela cidade.
Todos os dias eu lhe pensava e lhe escrevia. Um dia lhe vou dar a sebenta vermelha e ela não vai ter coragem de dizer não. Mas disse nim. Acho não acreditou na boa fé das palavras pesadas e medidas escritas em letra redonda de qualquer alguém pode ler. Mas não me desligou o sorriso em cada cruzamento de olhar. Mantive a esperança e mais letras soltas fui rabiscando em papeis avulsos que fui perdendo com o tempo. Já não lhes coleccionava porque sabia não tinha coragem para voltar a lhes dar.
Sonhei sonhos de abraços e beijos e aos amigos contei as amarguras desse amor. Eu tinha mudado porque ela me tinha moldado.
Acho, hoje passado tempo que dava para cobrir de pó um deserto de sonhos, eu acho ela tinha medo que eu lhe fizesse com que ela deixasse de ser o centro.
Guardei o sorriso por trás duma mascara inexpressiva, segui o rumo da vida que tinha desenhado nos poemas coleccionados e aprimorado nos que estavam avulso e cheguei longe do que a minha mãe alguma vez tinha imaginado.
Por acaso, e me lembrei agora, nunca perguntei na minha irmã se ela me tinha imaginado voar assim no alto dum monte como homem alado dos livros de heróis.
Mas lhe perdi o sentido e a visão. Todos os dias, faz anos, lhe penso e me imagino largar tudo para lhe abraçar sabendo que ia ter como barreira um muro de indiferença maior que a dita Muralha da China. Mas pensar não é pecado e não é doença contagiosa por isso não faz mal.
Todos os dias me deito sobre um sonho que não realizei.
Sanzalando