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15 de março de 2006

Uma estória verdadeira (72)

Eu aqui na terra em que dei os primeiros passos e os primeiros trambolhões, onde tive a primeira paixão, para não exagerar e não ser mentiroso não digo que a única. Num quarto de Hotel, dá para ver todo o filme da minha vida a passar no tecto branco transformado em tela do imaginário. O que vale é que mesmo só eu via. Cada segundo. Cada passeio, cada rua, cada pedra me lembrava uma estória. Aqui deitado e a reviver o passado sem saudosismo mas a ver que eu não podia ter existido se não tivesse esse tempo nas minhas costas, se eu não carregasse comigo esse peso dos anos. Era um filme que teve um intervalo, longo por sinal. Neste cinema deu para puxar o filme para trás as vezes que me apeteceu, saltar cenas, ver em câmara lenta. Era o meu filme interactivo. Nem deu para sentir que o dia estava a chegar. Ouvi o romper da aurora. Doce e suave como sempre aconteceu na minha cidade.
Há hora combinada tomou no silêncio a alvorada. Tocou é forma de dizer pois quem já está mesmo habituado a levantar de madrugada não precisa nem de despertador para tirar o corpo de cima das molas que formam o colchão. Sorridente me levantei como se tivesse dormido uma noite sem intervalos. No calendário marcava 2 de Novembro. Feriado Nacional. Dia de eu ter o encontro adiado quase trinta anos. Não podia faltar esse encontro. Jamais me perdoaria se faltasse, jamais me olharia no espelho. Pequeno almoço de 1 estrela tomado no Hotel e lá fomos nós no nosso Tico que ansiosamente nos esperava estacionado na porta. Virámos na Rua dos Pescadores, subindo a grande subida dos futebois de antigamente em que muda aos dois e acaba aos quatro para que não sejam sempre os mesmos a jogar ao sabor da descida. Deu para parar na frente da que eu sempre considerei a minha casa. Desde os 4 anos, desde o dia que aquele com quem eu tinha encontro marcado hoje deixou de aparecer, deixou de fazer a companhia que estava habituado e que mesmo sendo puto tinha na lembrança alguns pormenores. Toda reconstruída que eu tive a ousadia de dizer que estava melhor agora do que quando a deixei. É que está mesmo bonita. Me gabo agora de dizer que eu morei na cada agora mais bonita da minha cidade. As outras casas me vão desculpar, mas eu sinto eu digo e não há meias medidas. Depois, virei para a esquerda, Casa de Saúde que agora é Hospital Pediátrico lá estava. Igual. A casa do Martins, a que eu pulava o muro das minhas traseiras para lá ir brincar com os meus cambas, é agora um apêndice do Hospital pediátrico da frente. Já não tens as figueiras de figos de pingo de mel de outros tempos. Depois voltamos à esquerda novamente, passámos em frente do meu primeiro liceu que antes fora escola industrial e comercial e antes ainda tinha sido escola de pesca. Agora, mantendo a sua genética é um colégio da minha amiga Té que ainda não tive oportunidade de ver e abraçar nos muitos beijos que lhe tenho para dar. Fomos descendo a rua. Aqui era isto e ali era aquilo. Aqui morava fulano e ali sicrano. Eu sei tudo de cor parece foi ontem eu estive aqui. Mas não podia haver paragens. O encontro estava marcado e não podia adiar. Fomos só descendo mesmo até que no Bairro da Facada tivemos que virar na direita e depois na escola 49 virámos na esquerda e seguimos até lá.


Sanzalando em Angola
Carlos Carranca

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