recomeça o futuro sem esquecer o passado

Podcasts no Spotify

1 de maio de 2024

meus tempos outros

Estava sentado debaixo do caramanchão de buganvílias que um dia resolveste fazer no teu quintal, avó. Elas estavam plantadas em metade de barril de vinho que chamavas de cilha. Esse caramanchão faz uma lixeira que a tua filha todas as 6 horas da madrugada vem varrer para que tu não notes ou é só mania dela de ocupar o tempo sem perder o pensamento da razão? Não sei mesmo já, se são só as flores ou se também as folhas se deixam cair num desanimar de tempo. Num repente me lembrei de ti, avó.
E o avô que vinha no seu fato, do seu sempre trabalho, nas suas horas sempre certas, me atiraste os braços e eu te disparei uma pergunta com a minha voz de criança, de meia dúzia de anos:
- Que me trouxeste?
-Nada. Me responde invariavelmente porque sabias que eu ia lhe revistar todos os bolsos e ia, invariavelmente, encontrar um caramelo, um rebuçado ou uma chuinga num dos seus bolsos. Sempre num bolso diferente para dificultar a minha paciência e aguçar o meu apetite
De imediato te retribuía com um beijo. Era o preço que eu tinha que te pagar por esta carícia.
Me lembro que todas as noites desse tempo de criança, me acompanhavas ao quarto e antes de te recolheres ao teu, conferias a minha posição e me aconchegavas a roupa de cama. Se alguma coisa não estava do teu agrado chamavas a avó para compor ou mudar. 
Me lembro que isso durou uns poucos anos. Hoje, ao recordar tudo isso sinto o desejo que tudo voltasse numa repetição moderna, actualizada e de preferência com muitos capítulos. Foram muitos insuficientes, esses poucos anos.
Hoje, caminhando ao longo do zulmarinho, eu grizalhado, me custa saber que não estás aqui, que não me vais fazer as cócegas que adoravas fazer quando me apanhavas distraído num olhar para um futuro indefinido através da janela da velha marquise, não me vais perguntar se fiz os trabalhos da escola, não me vais fazer as perguntas de História e nem vais pedir à avó para fazer o leite creme que descansa na janela da cozinha para não comermos ainda quente que faz mal na barriga.
Um dia assim, que já nem me lembro que tempo fazia, deixei de te ver. Assim o mais do mesmo que já tinha acontecido com o meu pai, estava a acontecer-me com o meu avô. Me lembro de ver a avó chorar. Não sei se mais alguém chorava lágrimas que se vissem, mas tenho a certeza que muitas lágrimas caladas ganharam liberdade. A mim me disseram só que tu tinhas partido e agora eras mais uma estrela do céu. Eu, nessa noite, escolhi a estrela que eras tu. Já te mudei de posição no céu algumas vezes, mas ainda lá estás para eu te olhar e te falar as nossas coisas.
É avô e avó, também a vossa filha já não limpa o quintal, não porque a buganvília deixou de deixar cair as flores e as folhas mas porque ela foi ter convosco e me deixou aqui a recordar lembranças dos meus tempos de criança.. 


Sanzalando

Sem comentários:

Enviar um comentário