Já é noite cerrada e eu aqui sem dormir. Há um odor dentro da minha cabeça que nem eu mesmo consigo desvendar a origem. Não sei se os remorsos fedem assim, nem se o ódio pode cheirar tão forte. Não sei se a nostalgia apodrecida pode ter este cheiro, mas penso que não. Levanto-me da cama e com os pés descalços calcorreio os ladrilhos gelados da madrugada. Segue-se-me o cheiro. Atiro os olhos num deus dará, como quem se quer distrair. Imagino um vestido curto duma qualquer jogadora de ténis dos anos setenta do passado século, sinto a textura dum biquíni azul do tempo em que os biquínis tinham tecido e não eram meras fitas. O odor segue-me.
Atiro a toalha ao chão. Pensei apenas é claro, que não sou pugilista para ter essas atitudes. Também não vai ser a esta hora que eu vou desistir. Sou forte e lembro-me dos teus lábios, da tua boca, dos teus olhos e reacendo a chama em mim. Mas como que por descuido recordo-me da tua voz autoritária, teu nariz empinado, tuas mãos em riste e lá se vai a minha bravura e se me chega o odor que até parece mais forte.
Volto a deitar-me num abraço à minha almofada desejando que o amanhã, hora de acordar, se adie num eternamente mais tarde possível como se fosse um remédio santo milagreiro.
Largo tudo. Vou zerar a minha vida numa inspiração divina. Comédia, pensarás tu. Sério sério acho que já faltou mais. Não dormir deixa-me assim. Sentir este odor desconhecido me piora. É noite o que se agrava. E ainda acho que deve estar sueste.
Lentamente as horas passam e os paralíticos ponteiros do relógio se colaram num estático ponto. Só para me irritar.
Hora de largar a almofada. Sentado na cama recapitulo. O odor só podia ter vindo da despaixão. Levanto-me vergado no cansaço e esqueço a máscara da simpatia. Acho mesmo que hoje vou só andar com a minha cara mesmo, vou deitar-me numa praia e sonhar que eu vivia nos anos 50 do passado século, um pouco antes de ter nascido.
Sanzalando