Meus pés avançam no carreiro levantando uma nuvem de pó que faz séculos é levantada quando aqui passa gente. A gente passa, o pó levanta e paira uns segundos no ar e depois volta a se deitar. Sucessivamente assim quando passa gente aqui no carreiro. Quantas pessoas já passaram aqui? Este carreiro, me disseram, existe desde que a terra se arredondou.
Que vale mesmo é que eu nunca trago sapatos engraxados ou de verniz. Eles iam ficar bonitos, iam, iam, mas estes sapatos de tacão alto, assim da altura das circunstâncias, até que dão jeito, não fosse o buraco das meias solas já gastas faz mais que tempo. Bem, com isto já me esquecia que estava a dizer que caminho no carreiro que levanta pó quando alguém passa e, de cabeça baixa para esconder as lágrimas que os meus olhos deixam cair, já que vou a caminho dum enterro.
É pesado a gente ir assistir ao enterramento de um outro. No nosso a gente é obrigado a ir, mas no outro a gente vai e… Grande responsabilidade nos nossos ombros ser testemunha duma coisa dessas. Saltam à memória todo um conjunto de recordações, gargalhadas dadas nos momentos mais diversos e que apenas vão ficar na minha memória porque a dele já só é memória da memória que tinha. Ele já não vai levantar mais poeira quando passar neste carreiro nem vai mais me dizer que carrega nos ombros a responsabilidade de fazer parte do meu passado.
Mas porque é que eu estou a lacrimejar parece sou feito de manteiga? Ele não era assim nem gostava que eu fosse assim. Me levava a ver as coisas com o brilho que todas as coisas bonitas têm, mesmo as que ele embelezava para dar colorido na sua e na nossa vida. Ele morreu mas não me morreu a memória que eu vou continuar a ter dele. Prometo!
Era mais velho e estava cansado mas não é justo que se apague assim num sem avisar que de manhã não acordou mais do sono que dormiu durante a noite. A gente ainda tinha mais coisas para conversar, eu tinha mais caminhos para aprender. Mais velho não devia falecer. Devia mesmo só estar sentado num canto a nos esperar para ensinar quando a gente precisa.
Mas eu caminho no carreiro levantando o pó e escondendo as lágrimas que eu não queria chorar enquanto vou na casa do kota Zacarias lhe dizer o último adeus que ele não vai ver. O último que ele viu foi na semana passada quando nos sentamos debaixo da mangueira e ele me contou que as piores pulgas são as que picam e a gente não lhes consegue catar. Mas hoje é um adeus que ele não vai ver. Acho mesmo é só um adeus da minha parte para ele e não tem volta no regresso.
Me custa a acreditar que é o corpo fraco do mais velho Zacarias que está ali vestido de fato de é Domingo, deitado na cama a dormir um sono tão pesado que não vai dar nem para me dizer olá filho como ele sempre dizia quando eu chegava. Eu lhe faço uma vénia quando me apetecia era mesmo lhe abanar até ele acordar. Lhe pergunto de pensamento como é que ele está e a resposta se chegou da mesma forma não foi captada. Ele imovilmente está de olhos fechados a pensar. É que só pode. Quem é que mais me vai fazer recordar as estórias que eu não vivi quando ainda não era nascido? Me vão deixar aqui nesse mundo com os mais novos? É muita responsabilidade para um mais velho que ainda é novo que nem eu.
Kota Zacarias vai virar pó que nem o pó do carreiro que me trouxe até aqui na casa dele? Não pode nem só para pensar quanto mais para ser verdade. Acorda só mais um bocado e me ensina a arte de sobreviver no tempo em que não há tempo para ouvir, me ensina que o meu presente é somatório dos meus passados corrigido com a previsão de futuro. Conta só para mim todas as estórias que sabes de memória que nunca existiram e que eu fico horas a te ouvir parecem eles são de verdade.
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