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15 de dezembro de 2006

Quem foi que disse que a vida é bela?

Caminho neste caminhar na beira do zulmarinho. Pouco importa é verão ou inverno, pólo norte ou pólo sul. Caminho por gosto de te falar das coisas que eu sei ou que me chegam no marulhar desse mar que nos perfuma da sua maresia e nos acompanha ao longo dos passos.
Tu que me segues, lado a lado, outras vezes à frente, outras atrás outras sei que estás mas não te vejo, já me ouviste falar de tudo, saudade, lágrimas, raivas, nostalgias, sentimentos sentidos e não escritos nas páginas de um jornal. De tudo. Vou falar-te mesmo mais de quê? Mas como sabes que eu gosto de falar, tu insistes em me acompanhar neste vagabundando de lá e para cá, deixando marcas na areia das mil cores.
A vida não é como este passeio. Ela não foi projectada para a gente ser feliz. Essa vida de felicidade só existe na publicidade. Não sabias? Então me ouve nesse teu silêncio cúmplice de quem parece sabe as coisas que eu irei dizer.
Mesmo antes da gente nascer a gente já está numa luta de corta, abafa e afoga. São as enzimas, macrófagos, proteínas e outras inas a marcarem o nosso destino. Depois que a gente põe a cabeça e o corpo de fora obrigam-nos logo a chorar. Ainda chamam a isso o choro da felicidade. Pode alguém ser feliz se chora? Depois é vacinas, injecções e mais não sei o quê para evitar estes e outros vírus, bactérias e outras espécies.
Já sei, estás a pensar que nos entretantos há momentos de felicidade.
Mamar deve ser um acto de felicidade. Mas naquela idade a gente nem está a pensar nisso. Depois não deixam. Só mesmo naquela idade. Isso é felicidade?
A gente para começar a andar dá cada bate cu que até que chora as lágrimas que escorrem na cara. Isso é ser feliz? Bem, depois a gente quer ser polícia, avestruz, bombeiro, artista de circo. E todos logo nos querem contrariar. Depois a gente quer explorar esse mundo e só se ouve gritos de não. Os dois buracos simpáticos na parede de casa, tão ali à nossa altura. Mas NÃO! Se se acatar esses nãos todos um gajo fica apático e sem nada para fazer.
Depois se entra na escola, logo alguém te põe alcunha, serás excluído por estes e por aqueles numa empatia empírica que acho nunca vais descobrir o porquê. Aquela colega que tu achas a mais linda de todas as lindas não te vai ligar nenhuma. Dá-se mal com uma ou outra disciplina e logo te vais achar um idiota, sem talento, sem saber se quer o que vai ser o plano inclinado da tua vida.
Na adolescência tem-se o pior pai e mãe do mundo. É mesmo azar ter estes pais que a gente tem. Todos te querem impor ideias e ninguém está aberto às tuas próprias ideias, mesmo que tu não tens a certeza absoluta delas. Nessa altura desejas todas as garotas do mundo sem saber que terás, se tiveres sorte, direito a uma.
Um dia descobre a vida adulta e os cartões, créditos, chaves, telefones, agendas, datas que são importantes e que tu nunca te lembras senão tarde de mais, que os dias são mais curtos do que eram afinal de contas e os meses mais longos do que a realidade.
Depois envelheces, aparecem as doenças que nem as injecções todas que levaste te salvam. Se aguentaste até aí ileso, tas feito porque te aparece tudo ao mesmo tempo que nem tens tempo de recuperar duma e já estás na outra, num destruir lento dos teus sonhos e pesadelos.
Me ouve só, que o que afinal conta mesmo são os intervalos, aqueles momentos em que a vida não está afim de te destruir nem enlouquecer. Era bom que a gente tenha aproveitado todas as janelas abertas, todos os amigos, os poemas escritos num esconderijo, o nome da garina escrita em todos os cadernos, o atirar pedras ao mar em momentos de descontracção e ver quantas vezes ela sobrevoa-o, as mesas dos bares na roda dos copos. Afinal a lista é grande e espero que me tenha aproveitado dessas janelas todas.
Como vês ainda há o que falar. Me acompanha enquanto eu tiver ainda forças.

Sanzalando

4 comentários:

  1. Está magnifico. Parabens. Para mim, bateu o da "areia..."
    WF

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  2. Quem disse que a vida é bela?
    Não foste tu?!
    SJB

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  3. Desisti de por aqui comentário identificado, deppois de vários dias a tentar e sem o conseguir.
    Mas isso também não interessa.

    Fico apenas feliz por apenas ainda haver o que falar.
    Continua a falar.

    Beijos

    I.

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  4. Viva Carlos:

    Este teu texto está perfeito.
    É um resumo muito completo do que se passa na realidade.
    Desejo-te um óptimo fim de semana.
    Um abraço,

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