A Minha Sanzala

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23 de fevereiro de 2007

Grito

São umas tantas horas da tarde. Não preciso saber exactamente quantas são porque o tempo foi feito para gastar e eu lhe gasto como me apetece. Podia estar sentado numa das muitas esplanadas que já passei, bebendo uma e outra coisa bem gelada. Mas não. Estou sentado no meio de uma rotunda, em plena Maianga, olhando para as acácias não floridas mas verdejosamente verdes. Estou aqui e umas e outras pessoas que passam devem-me olhar e dizerem-se que está ali um doido especado num fazer nada. Mas como não lhes ouço não me importo e não lhes respondo, pois até nem sei se alguém se deu ao trabalho de olhar-me. Estou aqui porque me apetece estar aqui, auscultando pelo meio o fervilhar da cidade, nos carros que sobem, nos que se deslizam para baixo. Não estou a fazer de sinaleiro. Nem quero saber para onde se dirigem. Não me movo. Olho apenas o que sinto.
Acho que não deve haver um grito mais desgarrado que um sussurro duma consciência intranquila.
É o que sinto quando tento controlar tudo, sobretudo o que oculto no mais profundo do meu coração. Assim num repente, quase como do nada, aparece alguma coisa na minha memória, sentimento reprimido, amarras silenciosas e abafadas. Pode ser um aroma, um calor afogado na humidade, uma imagem retida e amarfanhada no teu âmago.
Depois acabo por ficar em branco, num literal e pictórico quadro cheio de vazio, nó de garganta apertado num entupimento quer ascendente quer descendente. Se tiver um pouco de sorte poderá transformar-se em lágrima, vertendo-se silenciosamente nos contornos vincados da cara, dor surda, facada sem faca no estômago.
Aqui está um espaço em branco na minha mente, incapaz de deixar-me raciocinar na fluidez dos acontecimentos, um fogo no coração incapaz de ser apagado.
Não é que um problema sem solução deveria deixar de ser um problema?
Por isso estou aqui, nesta rotunda, afogado nos dióxidos de carbono, suores transpirados nos labores, pregões das kitandeiras tentando livrar-se do refugo da manhã.
(Dis)penso-me.

Sanzalando

2 comentários:

  1. "Enquanto há força

    Enquanto há força
    No braço que vinga
    Que venham ventos
    Virar-nos as quilhas
    Seremos muitos
    Seremos alguém
    Cantai rapazes
    Dançai raparigas
    E vós altivas
    Cantai também

    Levanta o braço
    Faz dele uma barra
    Que venha a brisa
    Lavar-nos a cara
    Seremos muitos
    Seremos alguém
    Cantai rapazes
    Dançai raparigas
    E vós altivas
    Dançai também

    José Afonso, anos 70"

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  2. Gritas, katé pareces um tal fatela Edvard Munch. Ele não se dis(pensava)em gritar. Ele tinha vício mesmo de gritar, mas gritar bem alto, em plenos pulmões. Até que um dia foi gritar na doca de Oslofjord, de costas para o pôr-de- sol. Azar o dele, a mãe natureza,já bué de farta de tamanha gritaria, se tomou de brios e lhe mandou um baita grito, o chamado grito infinito, que o amareleceu de imediato. Bem, com o susto, e o desespero, a sua chipala empalideceu mesmo e ficou tipo múmia peruana, até à eternidade. O fotógrafo retratrista estava lá, que não me deixa mentir.
    Bj, Uliude

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