A Minha Sanzala

no fim desta página

10 de fevereiro de 2007

Um conto de S. Tomé

Hoje mesmo que caminho sentado quase na ponta da ilha olhando para lá da linha recta que é curva tentando ver a linha que divide o norte do sul. Mas vais ver ela hoje está pintada da cor do céu, pelo que não lhe consigo distinguir. Foi então que me lembrei que me tinham contado um conto que eu lhes conto:





O MENSAGEIRO


O sol brilhava, intenso, naquela manhã de domingo, na praia junto à fortaleza velha. Estirados sobre a areia, os garotos brincavam, descontraídos, com a água morna do mar da Praia Perigosa, que nem pelo nome lhes parecia meter qualquer receio.

- Eh pá! Água está tão fixe hoje que coisa não dá gente vontade de sair de praia! – Bube gostava dos dias assim, o sol todo aberto no céu espelhando-se nas águas calmas da baía, o vento brando, os falcões voando baixo, atentos a um ou outro peixe mais distraído.

- Está fixe, mas mais fixe ainda é logo quando gente ir pá Correia…- Cache antegozava o prazer da tarde nos confins do mato, o verde luxuriante da paisagem, o bulício à volta do quintal da festa…

- Mas é melhor gente ir cedo, porque quintal vai estar cheio depois de caça…- disse Kununo, em tom prudente. Os outros presumiram logo que falava do tchiloli, sua paixão comum, e todos sabiam como ele que era após a cena da caça que o tchiloli ganhava animação própria, o desfile ininterrupto das personagens,


a sequência mágica dos sons, o enredo da estória prendendo um a um todos espectadores.

- Chê, gente tem que ir desde princípio? Eu digo vocês, se fosse só p’ra mim gente via só parte de fim… - retorquiu Mingo, como sempre irrequieto nos seus onze anos. Ainda que se tratasse do tchiloli, custava-lhe estar parado horas a fio num mesmo lugar.

Eram horas de partir. O sol já perdia brilho quando, bordejando a praia pelo seu flanco sul, começaram a caminhar despreocupadamente pela avenida. Por mais que os pudesse tentar a vontade de ganhar algum dinheiro, no código por todos respeitado domingo não era dia de trabalho e, por isso, tomaram logo o pequeno atalho que os conduzia à Chácara, onde habitualmente se concentravam para comer e descansar após as lides da venda.

O sono, porém, os enganara. A tarde já ia um tanto ou quanto avançada quando tomaram o caminho da Boa Morte, rumo à Correia, pelo que tinham de se apressar para não perderem o melhor da festa.

A meio do percurso começou a chegar-lhes a música viva e mágica que, vinda do quintal pejado de bananeiras e jaqueiras do

velho Nenené, invadia toda a área em redor, infiltrava-se pelos quintés, para finalmente se perder algures nas grotas que conduziam ao vale. A pequena clareira do mato era o palco onde contracenavam os actores, e os assistentes, de tanto conhecerem a peça, quase que se confundiam com aqueles na arte de representar.

A uma rápida troca de olhar, compreenderam que tinham chegado no momento próprio. Aqueles acordes eram inconfundíveis, pelo que fizeram a correr a última parte da caminhada para viverem em pleno o que estava para acontecer.

A multidão comprimia-se, entusiasmada, em redor do pequeno espaço. A animação chegava ao rubro. Por entre a poeira que se levantava do chão, Bube e os amigos conseguiam ainda assim espreitar a figura franzina do Moçu Kata, todo de branco vestido, toalha de linho presa ao pulso, escapulindo-se à obstinada perseguição que lhe movia Reinaldos de Montalvão. À medida que o miúdo driblava os intentos da temível personagem, a assistência exultava, crescia o ritmo da música bem como os aplausos dos presentes.

Bube vivia como sempre um momento especial. A paixão pelo tchiloli vinha-lhe desde muito cedo, quando pela mão da

mãe, em Madre de Deus, indiferente ambos aos raios inclementes do sol, passavam horas a fio embevecidos ao som arrebatador dos tambores e dos pitu doxi.

De uma coisa não podia haver dúvidas: ele e os amigos, meninos endurecidos pelas pelejas da rua, gostavam do garoto de onze anos que desafiava a figura mais tenebrosa da corte baixa, as roupas negras, o bigode insistentemente repuxado com gestos bruscos, as passadas largas como as do galope de um cavalo em plena pista. Sentiam-se bem ao assistir à luta tão desigual e, como tinham sensivelmente a idade do Moçu Kata, era como se o exemplo deste os estimulasse a enfrentar a vida dura nas ruas da capital, a algazarra dos carros, o frenesim dos vendedores entrechocando-se nos passeios:

- Chê, freguês, não sai nada? Vê, caldo está quase cabá …!

Bube habituara-se àquela agitação desde que, dois anos antes, a mãe sucumbira a um acidente junto à igreja da Conceição, em que ele próprio escapara por milagre. Tia San Doquê, uma mulher de feitio inconstante, ainda o recebera em casa nos primeiros tempos, mas durou pouco a convivência entre ambos: ela era amiga da bebida, quando não havia ússua entrava na cacharamba e vice-versa, o ar néscio e os olhos de um vermelho

lúgubre fixos sobre ele a anunciar violência iminente. Quando assim era, batia-lhe com persistência e raiva, como se fosse ele a razão de ser de uma vida que há muito se transviara e perdera qualquer sentido. Daí, a fuga para a liberdade da rua.

Uma vibrante exclamação corta, de súbito, o ar. Um lampejo de frustração invade por momentos os assistentes. Na luta do fraco contra o forte, eis que os factos apostam em trazer-lhes de regresso ao mundo real. Uma vez mais parece ter-se cumprido o destino: o Moçu Kata é preso, rebuscam-lhe os bolsos e sacam-lhe a misteriosa carta, motivo da perseguição. Sai vencedor o odioso Reinaldos.

Os garotos entreolharam-se, entristecidos. Mais do que qualquer outro, Bube está desolado. Invade-o a desilusão e a raiva pelo desfecho, embora já conhecido. Uma lágrima furtiva irrompe-lhe pelo canto dos olhos. Sabe que costuma ser assim, “desde que o tempo foi tempo”, como lhe dizia a mãe, de que nunca se esquecia.

Mas lá bem dentro de si mantinha aceso o desejo de que o mais fraco pudesse um dia triunfar, para contentamento dele e de muitos. Será que nem no mundo fascinante do tchiloli, em que, num acto de justiça, o Rei chega mesmo a condenar o próprio

filho, poderia acontecer, uma vez que fosse, que Reinaldos perdesse para o pequeno mensageiro?

Passava das sete da tarde quando deixaram Correia. A noite ameaçava cair, mas curiosamente crescia neles a esperança de que, um dia, tudo poderia vir a ser diferente.


Albertino Bragança


Sanzalando com MC

1 comentário:

  1. Viva Carlos:

    Vim lêr a tua estorinha... do costuma :-)

    Como dizia o outro:
    - "Já nos safemos!"

    Um abraço,

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